O genocídio fez parte do cotidiano colonial belga. Após o processo de independência política das ex-colônias, o genocídio continuou presente na República Democrática do Congo (RDC), Ruanda e Burundi, como uma má herança fruto de desdobramentos políticos e sociais que tiveram origem justamente durante o imperialismo capitalista colonial. Comecei a me interessar pelo tema por esta razão: como um pesquisador do histórico migratório congolês e da diáspora congolesa, precisei ter contato com a história do Estado Livre do Congo, período no qual Leopoldo II, rei belga, por causa dos excelentes lucros que obtinha com o extrativismo da borracha e do marfim, deixou um rastro de sangue na África Central e também com o genocídio ocorrido em Ruanda em 1994, fato que levou mais de 1 milhão de pessoas a procurar refúgio do lado congolês da fronteira no referido ano, além de ter colaborado – e muito – para a queda do ditador Joseph Mobutu, que comandou a atual RDC por mais de 3 décadas.
Apesar dos exemplos dados por mim no parágrafo anterior parecerem distantes, tanto geograficamente, quanto temporalmente, entender o que é genocídio e aprender sobre aspectos de outras matanças em massa cometidas de forma sistêmica contra povos ou grupos mundo afora podem nos ajudar a compreender e refletir sobre situações que ocorrem hoje, agora, no Brasil e nem mesmo temos idéia que podem ser classificadas como genocídio. Por isso, publico esta série de entrevistas – As facetas do genocídio -, que tem como intuito, justamente, discutir genocídio. A primeira entrevista desta série será com Rafael Coca de Campos.
Rafael é bacharel, mestre e doutorando em história pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), onde é orientado por Omar Thomaz Ribeiro, antropólogo que, sem dúvida alguma, é um dos grandes africanistas brasileiros. Suas pesquisas focam no período colonial angolano, passando por temáticas como estudos fronteiriços, a etnia Kuvale e o trabalho do antropólogo, escritor e cineasta Ruy Duarte de Carvalho.
Felipe Honorato: Rafael, qual é, exatamente, a definição de genocídio, dentro das ciências humanas e do direito – vamos aqui, por uma questão prática, excluir o direito das ciências sociais – ?
Rafael Coca de Campos: A resposta a esta questão exige um entendimento claro a respeito da própria origem do conceito de genocídio. Em seu livro Axis Rule in Occupied Europe, de 1994, o advogado polonês Raphael Lemkin apresenta pela primeira vez o termo. Lemkin havia feito parte, durante o período entre guerras, de comissões internacionais cuja finalidade era a elaboração de uma legislação criminal internacional coesa e consistente, capaz de dar conta de crimes de guerra, crimes contra a humanidade, etc. Quando formulou o conceito de genocídio, portanto, no contexto da Segunda Guerra Mundial, Lemkin tinha como horizonte a criação de mecanismos internacionais capazes de atuar na prevenção e punição de diversos crimes cometidos pelo regime nazista. Posteriormente, as ideias contidas em sua obra são reelaboradas quando da redação da Convenção para a Prevenção do Crime de Genocídio, de 1948. Por que falar sobre Lemkin? É preciso que se tenha clareza quanto à origem eminentemente jurídica do conceito de genocídio, ou seja, não existe somente uma relação de diferença entre a definição no campo do direito e a definição no campo das ciências humanas: há também uma relação de genealogia, se quisermos. Essa relação, evidentemente, coloca diversos problemas para o emprego do conceito como categoria heurística, fato evidenciado pelos diversos usos políticos do termo durante o período de descolonização e da Guerra Fria. Isto se dá, entre outras razões, porque a nomeação de um processo de violência como genocídio implica, pelo menos do ponto de vista formal, a atuação por parte dos países signatários da carta das Nações Unidas. Há, com efeito, implicações legais e políticas de grande envergadura envolvidas. De um outro ponto de vista, muitos estudos contemporâneos sobre processos de violência extrema tem indagado a respeito dos limites do conceito. O que, afinal, ele explica? Ou ainda, podemos nos questionar em que medida a constatação da existência de um genocídio não deve ser uma consequência do trabalho do cientista social, e não seu objetivo último. O conceito deve nos ajudar a compreender, e não julgar, e aqui reside o ponto nevrálgico da diferença entre as ciências humanas e o direito. O Artigo II da Convenção de 1948 define genocídio como “atos cometidos com a intenção de destruir , total ou parcialmente, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso”. Aqui, portanto, a noção de intencionalidade é central. Da perspectiva da análise acadêmica, a intencionalidade só pode ser auferida e compreendida dentro de um quadro muito complexo de desenvolvimentos históricos, construções ideológicas, projetos de desenvolvimento, competição internacional e formas específicas de categorização e essencialização de grupos sociais. Ainda assim, do meu ponto de vista, no que tange aos estudos sobre genocídio, o número de definições é quase equivalente ao número de autores, sem que com isso, como afirma o historiador Dirk Moses, possa haver qualquer consenso a respeito de uma definição “verdadeira”. Meus próprios estudos sobre o tema me inclinam a assumir a existência de um tipo de genocídio marcadamente moderno, associado aos projetos de expansão e competição imperial e à consolidação dos estados nação a partir sobretudo do século XIX.
FH: Há fatores / características que são comuns a ambientes pré-genocídio e que podem indicar que certa região está a beira de um genocídio?
RCC: O fundador da organização Genocide Watch, Greg Stanton, elaborou uma espécie de termômetro da escalada genocidária. Podemos partir deste esquema. Segundo Stanton, expressões abertas de ideologia excludente, negação de genocídios passados, governos autoritários que reprimem oposição, organização de milícias fanáticas e construção de armas de destruição em massa caracterizam formações sociais potencialmente genocidas. Assume-se, portanto- e esta é uma escala amplamente utilizada por ONGs- que um genocídio pode ser impedido em cada uma destas etapas, as quais precedem extermínio e negação: classificação, simbolização, desumanização, organização, polarização, preparação. Do meu ponto de vista, esta construção bastante formalizada apresenta elementos absolutamente centrais. Entretanto, sua estrutura abstrata impede que se percebam certas nuances importantes: por exemplo, os processos de classificação de determinadas populações podem preceder em muitos anos a desumanização dos grupos classificados, assumindo que esta venha a acontecer. Ainda que haja indícios de que uma situação potencialmente violenta esteja na iminência de ser desencadeada, não existe nenhuma relação necessária entre as etapas do processo. Há ainda o problema das políticas de interpretação e nominação dos processos sociais. Quando o genocídio de Ruanda teve início, muitas das interpretações sobre o conflito produziam uma verdadeira suspensão temporal das relações políticas e sociais daquela região, de modo que Tutsis e Hutus eram apresentados como grupos tribais com um passado imemorial de animosidades, sem que se fizesse qualquer referência às políticas de classificação levadas a cabo por sucessivos regimes coloniais e pós coloniais. Situação semelhante ocorreu na Bósnia. O que eu quero dizer com esse exemplo é, em primeiro lugar, que as representações e o repertório conceitual disponíveis para a interpretação de conflitos são profundamente dependentes de agendas políticas específicas, de modo que a própria nomeação das etapas de um processo de escalada de violência depende da agenda daquele que nomeia. Em segundo lugar, acho que somente um conhecimento profundo da história e da geopolítica de um contexto permite a constatação de um potencial latente para a violência. Mesmo assim, como historiador, fui treinado a nutrir um profundo ceticismo com relação à capacidade das ciências humanas em elaborar previsões.Contudo, não tenho como não pensar na Caxemira atual com grande apreensão. Eu acredito que devemos estar atentos para qualquer situação na qual grupos sociais específicos são colocados em posição de progressiva vulnerabilidade biológica, cultural e institucional.
FH: Tive a oportunidade de, em 2018, cursar uma disciplina com seu orientador, Omar Thomaz Ribeiro. Nela, ele falou da importância que os rumores tiveram no desencadeamento do genocídio na Bósnia, em 1995. Gostaria que você, por favor, falasse um pouco mais sobre essa situação específica – do genocídio ocorrido na Bósnia e do papel que os rumores tiveram dentro deste genocídio – e também discutisse se os rumores são uma dessas características que fazem parte de um ambiente pré-genocídário.
RCC: Uma inquietação permeia a interpretação de grande parte dos processos genocidários, sobretudo aqueles nos quais há adesão e participação ativa por parte da sociedade civil: como entender a circunstâncias que levam pessoas a denunciar, matar e violentar sexualmente outros indivíduos com os quais mantiveram relações de vizinhança e amizade durante anos? Nos casos de Bósnia e Ruanda, desencadeados em 1994, documentos absolutamente perturbadores explicitam não somente a adesão em massa da população, como também a perpetração de verdadeiras atrocidades contra pessoas conhecidas. No momento específico da elaboração dos projetos nacionalistas croata e sérvio, que se segue ao colpaso da antiga federação yogoslava, se produz uma intensa propaganda voltada à disseminação de um tipo de identidade nacional fundamentada em categorias étnicas. Estes projetos nacionais elaboravam narrativas a partir da mobilização e instrumentalização de eventos do passado, os quais remetiam tanto aos conflitos durante a Segunda Guerra Mundial como à batalha da Kosôvo no século XIV. Nestas narrativas, o Outro – croata ou sérvio, dependendo do caso, mas sobretudo os muçulmanos- era entendido como uma ameaça em potencial para a formação dos estados nacionais. Tanto sérvios como croatas elaboravam uma imagem de iminente violência por parte dos outros grupos. Entretanto, as narrativas oficiais não implicam de maneira direta na adesão por parte da população. Neste contexto os rumores são uma peça fundamental para a produção de um dos elementos mais persuasivos e mais perniciosos do genocídio: o medo. Em Foca, por exemplo, o comandante sérvio Marko Kovac descrevia a tomada da cidade como uma defesa contra os muçulmanos da Bósnia, acusando-os de matar recém nascidos e violar crianças sérvias, bem como de castrar a população masculina. Na mesma cidade, um professor de escola primária dizia que os muçulmanos enganavam os sérvios, desarmavam-nos e os enforcavam. Em um contexto de violência, medo e apreensão causadas pela guerra, ou seja, um contexto de profunda crise social, estes boatos serviam de alguma forma como catalisadores da corrosão do tecido social. Desta forma, os vizinhos passam a ser compreendidos como pertencentes a um grupo profundamente ameaçador, cujos intentos mais profundos preconizavam a destruição, o extermínio, a violação, etc. Os boatos e rumores, portanto, atuam como elementos estruturantes de um imaginário social de violência.
FH: Rafael, agora queria lhe fazer uma pergunta um tanto quanto complexa: há uma obra muito importante do Mahmood Mamdani chamada “When victims become killers”. É um livro que fala especificamente do genocídio ocorrido em Ruanda, em 1994, mas que, em certo momento, traça uma relação entre o Holocausto, que foi o genocídio principalmente de judeus na Alemanha Nazista, e o genocídio dos povos Herero, um genocídio também promovido pelo Estado Alemão, só que em um contexto colonial. Você poderia, por favor, fazer uma contextualização ao leitor sobre estes dois genocídios e explicar qual relação existe entre ambos?
RCC: Desde as últimas décadas do século XIX, o estado colonial alemão estabeleceu diversos tipos de relações com as populações africanas do Sudoeste Alemão (atual Namíbia). Os Herero eram, neste contexto, uma população pastoril com estrutura política relativamente centralizada, e integravam circuitos econômicos na região central da colônia. As tensões entre estes últimos e os colonizadores diziam respeito sobretudo à ocupação de terras férteis, ao gado e ao controle sobre a mão de obra. Existem muitas interpretações sobre o início do conflito, em janeiro de 1904: rumores aparentemente infundados sobre escassez de terras entre colonos alemães, tensões em torno da concessão de mão de obra para as minas da África do Sul. É certo que, em 12 de janeiro de 1904, uma situação envolvendo Hereros e colonos alemães desencadeia um processo repressivo por parte dos colonizadores. Em um primeiro momento, quando o encarregado das operações era Theodor Leutwein, o conflito se assemelhava a uma guerra colonial. Entretanto, o fracasso de Leutwein em encontrar uma solução culmina na indicação de Lothar Von Trotha como comandante das operações. Em outubro de 1904, Von Trotha emite uma ordem autorizando o extermínio da população Herero, através do fuzilamento ou da expulsão da população para o deserto do Omaheke, no qual milhares de indivíduos morreram de sede e exaustão. Ao fim das operações, os sobreviventes foram colocados em campos de concentração, nos quais as condições de vida eram absolutamente precárias, sendo os internos submetidos a experimentos médicos e obrigados a trabalhar em obras públicas ou para colonos alemães. Pouco mais de trinta anos mais tarde, com a ascensão de regime nazista, diversas populações europeias passam a ser objeto de uma política eugênica e racista. Durante a década de 1930, diversas medidas normativas passam a ter como objeto os judeus situados nos territórios controlados pelo regime. A historiografia diverge quanto ao momento no qual o extermínio dos judeus se constitui como estratégia central para lidar com essa população, no entanto, é certo que a partir de 1942 grande parte dos esforços nazistas se dirigem ao genocídio, mesmo que tal diretriz implicasse a fragilização de frentes de batalha. Podemos apontar diversas relações pertinentes entre os dois processos genocidários. Hannah Arendt é uma das primeiras intelectuais a identificar com grande sofisticação a relação entre o imperialismo europeu e os regimes por ela designados totalitários. As relações entre os dois processos, para ser esquemático, podem ser percebidas a partir de dois pontos de vista convergentes. Do ponto de vista estrutural, estamos diante de situações de expansão da fronteira imperial, justificadas e dinamizadas por uma ideologia racista que, tal qual formulada por Von Trotha e Hitler, expressava uma guerra racial. Esta dinâmica supunha a possibilidade, ou ainda, a prerrogativa de eliminação brutal de todos os grupos humanos que se opusessem à plena expressão das aspirações nacionais alemãs. Judeus e Hereros foram, então, objeto de uma política de extermínio em decorrência de características tidas como intrinsecamente nocivas. Ainda, podemos pensar na brutalidade das campanhas de expansão do chamado “espaço vital ” durante o regime nazista, operações de alargamento da fronteira oriental que resultaram no extermínio brutal de milhões de indivíduos. Do ponto de vista histórico, muitos autores entendem que o genocídio Herero serviu, de certa forma , como um laboratório para as atrocidades subsequentes: a experiência dos campos de concentração, campos de trabalho forçado, bem como a possibilidade do genocídio como tecnologia de gestão populacional. É emblemático, neste sentido, que Eugen Fischer, médico responsável por experiências médicas com internos dos campos de concentração Herero, tenha tido como um de seus mais proeminentes alunos Josef Mengele, conhecido pela crueldade de seus experimentos com Judeus em Auschwitz.
FH: Ainda sobre o genocídio do povo Herero: por que o Estado alemão se recusa a assumir sua responsabilidade no evento? Você vê chances de que os Herero recebam algum tipo de reparação da Alemanha?
RCC: Não acho que o estado alemão se recusa a reconhecer a responsabilidade pelo genocídio. Bom, é certo que o caso Herero não é mencionado como genocídio. Em 2004, pela primeira vez, o ministro de cooperação econômica internacional alemão, Heidemarie Wieczorek-Zeul, se desculpou pelos crimes coloniais cometidos. Entretanto, a questão do pedido de reparação empreendido pelos Herero é muito complexa. De certa forma, pode-se dizer que o estado alemão reconhece sua responsabilidade do ponto de vista moral, porém não do ponto de vista legal. Os processos movidos pelos Herero contra duas instituições financeiras, bem como contra o estado alemão, foram recentemente rejeitados pelas cortes norteamericanas responsáveis. Por um lado, os alemães consideram que os recursos investidos em termos de desenvolvimento econômico no estado namibiano desde a independência são suficientes para compensar todos os malefícios decorrentes do colonialismo- ainda que, sendo os Herero uma minoria no contexto nacional, estes não se beneficiam de maneira satisfatória. Por outro lado, há uma questão jurídica bastante sutil. Como o crime de genocídio não figurava em tratados internacionais no início do século XX, ocorre que a base dos processos movidos pelos Herero tem de ser estruturada a partir dos tratados internacionais em vigor no período de perpetração do extermínio. Neste sentido, pode-se argumentar que os tratados ratificados pela Alemanha no final do século XIX, os quais previam a promoção da “civilização” entre os africanos, foram desrespeitados. É possível também afirmar que, segundo a legislação internacional em vigor na época, ainda que os Herero não tenham, enquanto nação- terminologia do período- ratificado estes tratados, eles seriam beneficiários dos mesmos pela Doutrina da Terceira Parte Beneficiária: caso uma nação não signatária obtivesse direitos através de tratados ratificados por outras partes, gozaria dos benefícios destes tratados a menos que, explicitamente, manifestasse posição em contrário. Desta forma, segundo certos autores, é plausível afirmar que o genocídio Herero, ainda que não possa ser juridicamente categorizado enquanto tal, caracterizou uma violação, pelo estado alemão, das disposições da Convenção da África Ocidental de Berlim, 1895, da Convenção Anti-Escravidão de 1890, bem como das leis costumeiras sobre a guerra codificadas na convenção de Haia de 1899. Contudo, outros analistas argumentam que a via judicial não é a mais profícua neste caso, uma vez que, a despeito das diversas menções aos Herero como uma nação presentes nos documentos coloniais alemães, a legislação internacional não pode reconhecer os mesmos enquanto uma unidade nacional. Ainda, os casos de pedidos de reparação internacional de sucesso compartilham características ausentes no caso Herero: perpetradores vivos e identificáveis, vítimas e/ou descendentes vivos e presentes, forte pressão política por reparação. Os caminhos judiciais, assim, parecem bastante incertos para os Herero.
FH: Você poderia, por favor, falar um pouco da importância e do pioneirismo, para os estudos sobre genocídio, do livro “É isto um homem?”, do autor italiano Primo Levi?
RCC: Primo Levi era um químico, vivendo as condições extremas da existência humana em Auschwitz. Ainda assim, sempre que leio “É isto um homem?”, me sinto diante de uma espécie de etnografia do campo de extermínio. Em um certo sentido, é possível dizer que Levi tinha como objetivo não somente mostrar a especificidade do horror promovido pelo regime nazista, mas também alertar a sociedade para o fato de que a suposta civilização da qual tanto nos orgulhamos não foi capaz de extirpar o elemento de barbárie existente no ser humano. Existe na obra do autor um engajamento no sentido da compreensão, junto a um esforço de impedir que tal atrocidade tenha novamente lugar. Acho que aqui reside uma característica fundamental da obra para os estudos sobre genocídio. Eu disse acima que também Raphael Lemkin, cuja obra sobre o nazismo é contemporânea a “É isto um homem?”, tinha por objetivo a criação de mecanismos que pudessem impedir o surgimento do horror. Talvez exista então uma espécie de pioneirismo- que será articulado também por Hannah Arendt, e muito posteriormente por autores dos estudos comparativos sobre genocídio: ou seja, a ideia de que determinados tipos de processo políticos e sociais podem produzir uma suspensão normativa capaz de dar origem a contingentes de seres humanos matáveis, meros corpos destituídos de direitos e dignidade. Ora, Levi explora as ambiguidades morais que permeiam a existência no campo, os efeitos que uma tal situação produz em vítimas e perpetradores, as famosas zonas cinzentas, nas quais os preceitos e normas de conduta mais caros se confundem com a crueza da luta pela sobrevivência biológica. Neste sentido, podemos ver com clareza sua influência em obras de grande destaque, como Homo Sacer, de Giorgio Agamben, bem como no estudo extremamente original de Christopher Browning sobre o batalhão policial de reserva 101 na Polônia. Por fim, é preciso assinalar a importância deste gênero de texto, os testemunhos. Ora, a própria resistência inicial à publicação da obra indica a existência de um trauma coletivo, ou seja, a experiência concentracionária- ou, de maneira mais geral, a experiência de situações de violência extrema- constituía um objeto de esquecimento ativo. Primo Levi, portanto, expõe em seu texto as chagas ainda vivas da desumanização que reside potencialmente em determinados regimes políticos, uma ideia potencialmente perturbadora, imbuída de um alerta.
FH: No contexto colonial angolano, contexto que você pesquisa, ocorreram genocídios? Se sim, cite e dê uma breve contextualização destes eventos.
RCC: Sim. Em meu mestrado, eu estudei um genocídio ocorrido no sul de Angola. O sul de Angola pode ser entendido, a partir de meados do século XIX, como uma região politicamente aberta. Isto implicava na existência de um espaço geográfico e político sobre o qual nenhum grupo- aí incluídos o próprios portugueses- exercia qualquer tipo de jurisdição formal. Pois bem, em meados do século XIX, convergem para a região populações pastoris africanas expulsas da região de Benguela pelo exército português, bem como um grupo de colonos por sua vez também expulsos, do Brasil, em virtude dos desdobramentos da Revolução Praieira em Pernambuco, entre 1848 e 1850. O colonialismo português passava, no século XIX, sobretudo a partir da independência do Brasil, por um processo de reconfiguração político-ideológico cujas consequências se projetarão até a elaboração do projeto colonial das primeiras décadas do século XX. A relação afetiva e os anseios políticos devotados à ocupação e exploração dos territórios africanos se fortalecem e, portanto, a presença de uma comunidade de colonos no sul de Angola, a ser acrescida posteriormente por outros fluxos migratórios de europeus, assinalava uma perspectiva de exercício de jurisdição sobre o território. Não é difícil imaginar, então, que o século XIX foi marcado, no sul de Angola, por intensos conflitos entre as populações pastoris e a comunidade de colonos brancos. Como ocorre em diversos contextos africanos marcados pela presença de populações pastoris, as práticas de razia- ou apropriação de gado alheio sancionada por códigos endógenos- eram recorrentes e regiam parte das relações sociais entre os africanos da região. Com a colonização portuguesa e, nas primeiras décadas do século XX, o esforço de desenvolvimento de uma indústria pecuária na região, deflagram-se conflitos entre os colonos e as populações pastoris africanas, consideradas selvagens, insubmissas e inclinadas ao roubo de gado. As tensões se desenvolvem a tal ponto que, em 1940, grupos designados de mucubais pelos portugueses passam a servir de bode expiatório aos problemas econômicos e administrativos do sul de Angola, sendo portanto objeto de uma política de extermínio, eufemisticamente designada como “caça” pelo exército português. Ao final das operações, em 1941, mais de 50 por cento da população mucubal havia sido morta, tendo os sobreviventes sido embarcados como trabalhadores forçados para as ilhas de São Tomé e Príncipe, depois de terem sido confinados em campos de concentração.
FH: Agora, para finalizar, gostaria de te fazer uma pergunta que será replicada a todos os entrevistados nesta série de entrevistas: há grupos que defendem que, hoje, há um genocídio da população negra em curso no Brasil. Você concorda com isso? Se sua resposta for positiva, destaque pontos em que o genocídio da população negra no Brasil se aproxima de outros casos que foram discutidos durante esta entrevista. Muito obrigado!
RCC: O termo genocídio, no contexto da situação da população negra brasileira, diz respeito, do meu ponto de vista, a uma situação de extrema precariedade e vulnerabilidade vivenciada por grande parte dos negros no país. O meu conhecimento sobre a sociedade brasileira me faz pensar na noção de “sociedades extremamente violentas” , desenvolvida por Christian Gerlach, ou seja, sociedades nas quais vigora um contexto capaz de engajar impunemente diversos agentes na perpetração de atos de extermínio. Quando me refiro a atos de extermínio, não faço referência somente às operações mais diretas de execução sumária de grupos populacionais, mas também ao desenvolvimento de circunstâncias capazes de produzir uma taxa altíssima de mortalidade, previstas no Artigo II da Convenção para a Prevenção e Punição do Crime de Genocídio: causar sérios danos corporais ou mentais aos membros do grupo; deliberadamente impor ao grupo condições de vida com o intuito de ocasionar a sua destruição física total ou parcial; impor medidas com a intenção de prevenir nascimentos no grupo; transferir de maneira forçada crianças do grupo para outro grupo. É expressivo, neste sentido, o evento do massacre do Carandiru de 1992, no qual 111 detentos foram sumariamente executados. Ora, em primeiro lugar, as condições estruturais da sociedade brasileira criam uma situação na qual a maioria da população carcerária é negra. Além disso, é espantoso pensar que atuação da polícia militar, a despeito da justificativa de contenção de uma rebelião, representou um emprego absolutamente desproporcional de violência. Em uma reportagem realizada alguns anos depois do massacre, alguns vizinhos do presídio são interpelados sobre a sua percepção a respeito dos detentos. Um senhor explicitamente diz: “saiam pelos bueiros como ratos”. Esse tipo de desumanização só é possível em uma sociedade que cria clivagens abruptas o suficiente para que determinados grupos possam ser percebidos como uma presença ameaçadora, indesejável e, por fim, descartável. Os diversos dispositivos de gestão populacional que tem como consequência a vulnerabilização e precarização dos negros no Brasil podem ser inscritos e situados em um desenvolvimento histórico, e tocam todos os aspectos da existência social desta população, como destaca o Caderno Sisterhood, de fevereiro de 2019. Não sei, contudo, se este caso se aproxima de algum dos discutidos anteriormente. O contexto histórico atual é absolutamente diferente, ou seja, os sucessivos genocídios produzem mudanças legais e simbólicas importantes, as quais tendem a causar maior constrangimento e impor limites ao emprego da violência. Talvez seja mais interessante pensar em como uma sociedade extremamente violenta como a brasileira tende a criar condições para a ocorrência de políticas de extermínio contra diversos grupos : pensemos na situação atual das populações indígenas, com a crescente pressão por parte dos agentes do agronegócio para a ocupação de suas terras, a impunidade dos assassinatos de lideranças e as constantes ameaças de morte sofridas. De todos os lados, são proferidos discursos de ódio que tendem a cristalizar diferenças, propondo a eliminação a qualquer custo dos indivíduos e grupos que supostamente representam uma ameaça a um projeto de desenvolvimento nacional.