Em um ano, estará eu jogo o poder local – capilar e presente. Bolsonarismo quer torná-lo mais primitivo e violento, mas enfrentará resistências sociais. Partidos de esquerda saberão acolhê-las? Ou se fecharão em suas máquinas e certezas?
por Áurea Carolina
As eleições de 2020 serão um teste decisivo para os rumos políticos do Brasil. De um lado, o bolsonarismo poderá consolidar e expandir sua capacidade de captura institucional a partir de uma entrada inédita nas câmaras municipais e prefeituras, em um processo difuso de interiorização capaz de articular novos arranjos entre os setores conservadores. De outro, as forças progressistas deverão exercitar práticas de abertura e confluência para reconquistar a esperança das maiorias sociais, contrapor o apelo bolsonarista e produzir alternativas eleitorais viáveis. Resultante do confronto entre os dois campos, por mais que outros também possam se configurar, o poder local terá sua importância acentuada na transição histórica que estamos atravessando.
Tenho insistido que o bolsonarismo ultrapassa a figura do presidente da República e podia ser caracterizado antes mesmo da emergência do fenômeno eleitoral que o consagrou na sociedade brasileira. É um traço da cultura e das relações que combina a degradação das condições de vida com o culto individualista e meritocrático, a aversão à convivência na diversidade, o descrédito total na política e nas instituições, a agenda moralista de costumes e os afetos violentos enraizados na nossa formação racista, patriarcal e colonizada, tudo isso embalado por soluções salvacionistas e voluntaristas.
O bolsonarismo cresceu à medida que os governos progressistas não conseguiram dar respostas às necessidades concretas e cada vez mais exigentes da cidadania, em um contexto agravado pelo golpe jurídico-parlamentar-midiático de 2016 e determinado pelo recrudescimento dos sistemas de massacre social em escala planetária. Contraditoriamente, a frustração com as promessas da democracia, estampada de forma emblemática nas multidões das jornadas de junho de 2013, suscitou tanto a vingança contra o regime quanto a luta por efetivação do ideal democrático. Embora o saldo parcial dessa história recente seja a vitória da vingança, estende-se por todo o país uma constelação de iniciativas dedicadas à construção de experiências de democracia real.
É nesse quadro que as próximas eleições municipais serão travadas, com algumas novidades. Projetam-se em direção ao sistema político, ao mesmo tempo, um ativismo mais organizado e capilarizado dos setores conservadores e uma reconfiguração acelerada das lutas populares e das forças progressistas, em meio a uma crise partidária generalizada. Para ambos os campos, há uma necessidade consciente de ocupação dos espaços de poder.
Entre os setores conservadores, a crise partidária poderá levar a uma queda do sucesso eleitoral do bolsonarismo, se não for forjada uma relação mais estratégica com as regras do jogo e os partidos de aluguel disponíveis. Enquanto jogadores experientes têm muito mais recursos e habilidades para operar a máquina, novos sujeitos chegam à disputa, a partir do apelo bolsonarista, sem esse repertório. O problema é que os velhos controladores estão com dificuldades de prevalecer sem o fôlego renovado das narrativas e das práticas bolsonaristas, de modo que precisam parasitar esse ativo.
Não custa frisar que o bolsonarismo tem sobrevida para além do desgaste da família Bolsonaro e das intrigas dentro do seu partido de ocasião, o PSL. Também há uma atualização do seu significado que não depende somente de notícias falsas e discursos de ódio. Os grupos identificados com essa cultura estão empregando mais racionalidade na sua ação política, com resultados práticos importantes. Estão se movimentando para ocupar conselhos profissionais, organizações comunitárias, conselhos de direitos, conselhos tutelares, órgãos judiciários, direções de escolas, colegiados diversos… E certamente atuarão com mais força nas eleições municipais, desde que saibam manejar as condições partidárias locais para alavancar as suas candidaturas.
Esse trabalho poderá pressionar alguns partidos de baixo para cima, com a eleição de novas lideranças, perturbando os controles internos já estabelecidos. Ainda que isso não modifique as estruturas convencionais em um primeiro momento, no médio prazo poderá desencadear rearranjos no pacto conservador, com ganhos para a consolidação do bolsonarismo nas instituições. Fato é que existe um grande potencial eleitoral nesse campo, mas os partidos de direita interessados podem não estar preparados para aproveitar essa “oportunidade”.
Na verdade, a concentração partidária é ruim para a expansão do projeto bolsonarista. Sendo a lógica bolsonarista, por natureza de método e concepção, mais suscetível a fraudes eleitorais, como está demonstrado no escândalo das candidaturas laranjas no PSL, é plausível que a sua estratégia eleitoral seja intencionalmente distribuída em diferentes partidos. Quando a “casa cair” em algum deles, restarão outras opções.
Junto às forças progressistas, ocorre um descompasso entre a aceleração das suas múltiplas movimentações por ocupação da política institucional e a letargia dos partidos de esquerda e centro-esquerda. Os partidos mal conseguem interagir com os grupos de inovação política do próprio campo. Não só reproduzem vícios de competição interna e autoconstrução como, muitas vezes, afugentam, desprezam ou instrumentalizam novas lideranças com potencial eleitoral. Para piorar, não parece haver um trabalho consequente de estruturação de base desses partidos para contrapor o avanço bolsonarista, principalmente em municípios do interior.
Não obstante, novas dinâmicas das lutas populares e tentativas de aproximação entre as forças progressistas têm pautado a urgência de abertura dos partidos do campo para as exigências democráticas do século 21. Para sobreviver, esses partidos terão que dialogar com linguagens e práticas autônomas da sociedade civil e, se quiserem continuar relevantes, precisarão democratizar suas estruturas e hibridizar seu funcionamento como partidos-movimentos.
As grandes esperanças de renovação política no campo progressista têm surgido de segmentos que raramente assumiram posições de poder no século 20: são mulheres, pessoas negras, indígenas, pessoas LGBTI, moradores de periferias, jovens, artistas, ambientalistas, mães, educadores populares, cicloativistas, trabalhadores rurais, religiosos, produtores agroecológicos… Redes de cidadania ativa estão cada vez mais interconectadas e presentes nos territórios, mas enfrentam enormes barreiras para incidir sobre as instituições. Mesmo assim, também têm conseguido (re)conquistar espaços diversos, neutralizando parte da investida dos grupos bolsonaristas. Certamente apresentarão excelentes opções de candidaturas nas eleições municipais, mas terão de superar a retranca dos partidos e racionalizar mais a sua ação política.
Os partidos do campo progressista ainda precisam fazer um dever de casa que não é nada trivial. Se não houver disposição genuína de cooperação e aliança entre eles, os setores conservadores poderão tirar vantagem da sua costumeira dispersão. É fundamental que esses partidos façam um esforço de aliança e fortalecimento mútuo nas eleições de 2020 e para além das eleições, ajudando o campo a se viabilizar eleitoralmente e a mover a resistência democrática no cotidiano.
É nas cidades que essa mudança pode se concretizar. A perspectiva de retomada da democracia brasileira, com a derrota do bolsonarismo e uma inflexão no campo conservador, requer a sustentação de uma outra cultura política, que faça sentido para as pessoas desde a proximidade. A chave está na colaboração entre as lutas, na diversidade, na solidariedade, no compartilhamento do poder, na politização da vida. Esses valores estão no coração do ideal democrático que o campo progressista tem a obrigação de defender. A nossa resposta diante de tamanha encruzilhada será cobrada nas eleições de 2020.