Precarização do trabalho aumenta com reforma trabalhista no Brasil, mas já era realidade para maioria das mulheres; no país vizinho, condições impostas por empréstimo junto ao FMI também elevam endividamento das argentinas
“Vivas, livres e sem dívidas”
Na Argentina, dados do Ministério do Trabalho publicados em 2018 apontam que 40% das argentinas economicamente ativas estavam desempregadas ou em trabalhos informais. Virginia Franganillo, socióloga e presidente do Observatório de Gênero e Pobreza na Argentina, destaca que a agenda econômica sempre esteve presente nas demandas feministas, especialmente em momentos de crise. No entanto, ela lembra que, mesmo depois de crises severas nas últimas décadas, houve dificuldade em garantir a implementação das propostas do movimento.
“No que diz respeito aos cuidados, nós somos muito baratas para o Estado. A força dos Estados maternalistas na América Latina é enorme. Tarefas que garantem o bem-estar deveriam ser oferecidas pelo Estado, mas são as mulheres que as realizam”, explica. “Assuntos que estão na essência do feminismo, como a divisão sexual do trabalho, serviram para a revolta, para a mudança cultural, mas não conseguimos modificar nem uma vírgula em termos econômicos. E sabemos que, em termos econômicos, as tarefas de cuidado são essenciais.”
O presidente Mauricio Macri chega ao fim de seu quarto ano de mandato com uma disparada na cotação do dólar, que se intensificou com o resultado das eleições primárias no país, em agosto, que indicaram que o atual presidente não deve se reeleger em outubro. O anúncio de que o governo pretende renegociar os prazos de pagamento da dívida de US$57 bilhões com o Fundo Monetário Internacional (FMI), adquirida durante o governo de Macri, aumentou o clima de incerteza sobre uma possível moratória.
Mas os problemas da economia argentina não começaram com o período eleitoral. A inflação acumulada entre julho de 2018 e de 2019 foi de 54,4%, segundo o Indec. Dados do segundo semestre de 2018, os últimos que o instituto divulgou, indicam que 32% das pessoas estão abaixo da linha da pobreza no país.
Natsumi Shokida destaca que uma das estratégias do governo foi conceder linhas de crédito vinculadas à Anses (INSS argentino) para dar empréstimos a beneficiárias da AUH (Bolsa Universal por Filho, na sigla em espanhol) – programa em que mulheres são de 95% a 98% de titulares, segundo a economista feminista. “Em média, hoje as mulheres que recebem a AUH estão endividadas entre quatro e cinco vezes mais que o valor do que recebem por mês. A estratégia para garantir que essas pessoas consigam chegar ao fim do mês é endividá-las”, aponta.
Para Verónica Gago, doutora em Ciências Sociais e co-autora do livro Una lectura feminista de la deuda, é importante fazer uma conexão entre a dívida do país e o perfil de endividamento das pessoas. “Dívidas que eram contraídas antes para investimentos ou situações excepcionais agora são contraídas para comprar alimentos, medicamentos e pagar serviços básicos, como luz, água e gás”, afirma. “As condições que o FMI impôs ao país para conceder o empréstimo têm impacto direto no aumento de tarifas, no preço de medicamentos e alimentos, e também na prestação de serviços públicos.”
Nesse cenário de endividamento, a responsabilidade das mulheres com a sustentabilidade da casa faz com que as argentinas estejam mais vulneráveis a contrair empréstimos, muitas vezes fora de instituições formais ou até mesmo legais, com juros altíssimos ou risco de vida.
Os últimos quatro anos na Argentina foram marcados também pelo fortalecimento da agenda econômica na pauta dos movimentos feministas do país, que desde 2015 ganharam projeção internacional com as marchas do movimento “Ni Una Menos” e a mobilização em torno do debate parlamentar sobre a legalização do aborto, rejeitada pelo Senado em agosto de 2018.
Com o lema “queremos [estar] vivas, livres e sem dívidas”, presente no subtítulo do livro que Verónica Gago assina com Luci Cavallero, as feministas argentinas conseguiram conectar a pauta da violência machista com a autonomia econômica e o impacto da crise sobre as desigualdades de gênero. “Foi uma espécie de pedagogia feminista popular para entender o que essas violências significam. Dizer que o feminismo tem que falar do problema financeiro foi uma grande aposta. Tem que deixar de ser um assunto do qual só os homens falam na televisão”, conta Verónica.
No caso brasileiro, a agenda econômica vem acompanhada de um forte conteúdo de disciplinamento, em articulação entre o Ministério de Economia, comandado por Paulo Guedes, e a agenda ideológica do governo sobre gênero.
“A agenda ultraliberal acompanha a legitimação de uma visão patriarcal da sociedade, que cria uma disputa ideológica permanente. Não é que as mulheres tenham que voltar pra casa, porque a economia não pode prescindir do seu trabalho remunerado. O que existe é um reforço da responsabilização das mulheres, tanto pelo trabalho, quanto pelas atribuições familiares, com um modelo de família que é heteropatriarcal”, avalia Tica Moreno.
Enquanto na Argentina, o movimento feminista tomou a dianteira na crítica à política econômica de Macri – a primeira greve geral do governo do atual presidente, em outubro de 2016, foi convocada pelas mulheres -, no Brasil as organizações de mulheres precisam também lidar com uma onda conservadora que tenta normalizar a retirada de direitos adquiridos.
“Como o neoliberalismo foi uma resposta para uma crise anterior, o ultraliberalismo, que já descarta a democracia como algo útil, faz parte desse momento do capitalismo de tentar sair da crise sob a perspectiva deles. A reação patriarcal é parte disso”, conclui Moreno.