Por Manuela Rached Pereira / Ponte Jornalismo
Omar Garcia relata o que aconteceu há 5 anos em Iguala, quando seis pessoas foram mortas e mais de 40 sequestradas pela polícia, e fala de resistência na América Latina
Já era noite no povoado mexicano de Ayotzinapa, há exatos cinco anos, quando o estudante Omar Garcia recebeu uma ligação que anunciava o início de mais um massacre cometido por forças de segurança do Estado na história recente do México. “Um dos meus companheiros gritava no telefone: ‘estamos em Iguala, a polícia está atirando em nós e um já morreu’”, conta.
O que ocorreu em 26 de setembro de 2014 em Iguala, pequeno município do estado de Guerrero, viria a ser conhecido tempos depois como o “caso Ayotzinapa”, que resultou em seis mortos, 43 estudantes desaparecidos, milhares de pessoas em protesto pelo mundo, e que permanece até hoje sem respostas.
Após o telefonema que recebeu, Omar e 30 outros estudantes da Escola Normal Rural Raúl Isidro Buergos, em Ayotzinapa, deixaram às pressas seus dormitórios estudantis e viajaram rumo à Iguala, a pouco mais de duas horas dali, para encontrar com os cerca de 100 normalistas que, horas antes, saíram da região em excursão para conseguir mais ônibus no município vizinho que os levassem até a Cidade do México.
O objetivo dos estudantes, a maioria secundaristas, que deixaram Ayotzinapa na tarde do dia 26, era participar de uma manifestação que acontece anualmente há décadas na capital mexicana no dia 2 de outubro, em memória ao histórico massacre de Tlatelolco, onde centenas de manifestantes foram assassinados pela polícia em 1968.
O que seria um protesto contra a repressão e negligência estrutural de autoridades mexicanas a estudantes, camponeses, indígenas e ativistas no país, se transformou em mais um episódio de assassinatos e desaparecimentos forçados envolvendo forças do Estado na América Latina.
Naquela noite, cinco ônibus foram retidos e tomados pelos normalistas, mas, antes mesmo de saírem do estado de Guerrero, foram alvejados por patrulhas policiais. Três civis que transitavam pela região e três normalistas morreram com os tiros, enquanto outros 43 estudantes de Ayotzinapa foram raptados pela polícia.
A convite da Escola Comum, escola de governo que busca formar lideranças políticas entre jovens de baixa renda das periferias de São Paulo, Omar Garcia esteve na capital paulista na última semana para participar de debates sobre casos de violência estatal na América Latina.
À Ponte, o estudante relatou o que testemunhou há cinco anos em Iguala, contextualizou o cenário político em que ocorreram os massacres no México e falou sobre a luta de movimentos sociais no país “contra o esquecimento, pela memória e pela justiça”.
Confira abaixo a entrevista:
Ponte – Para entendermos melhor o contexto das execuções e dos desaparecimentos em Iguala, você poderia explicar o que são as escolas normais rurais no México e qual a relação delas com os camponeses do país?
Omar Garcia – Eu estudei numa escola normal rural. No México existem apenas 17 normais rurais atualmente. Mas quando se fundaram, em 1920 [a partir do fim da Revolução Mexicana], eram cerca de 40 escolas. Ou seja, em cada estado do país, que tem 32 estados, havia pelo menos uma escola normal rural. Essas escolas contam com internato e terras para cultivo, e são organizações estudantis que formam professores. São escolas politizadas, com uma ideologia de esquerda, e que sabem da realidade social do México e do mundo. Os estudantes das normais rurais vêm do campo e cresceram nesse contexto. Quando se formam, eles também são enviados às comunidades rurais para dar aulas e, muitas vezes, se tornam líderes rurais nesses locais. A população rural do México não é muito diferente da população de outros locais da América Latina. Normalmente, não contam com serviços básicos, como educação, saúde, água potável, eletricidade. Não há clínicas nas comunidades e é muito difícil o acesso deles a esses lugares. Então, [os normalistas] vivem e entendem as causas camponesas, por isso sua ligação com os povos do campo e com os povos indígenas também.
– O que reivindicam os estudantes normalistas no México?
– Lutamos para reivindicar todas as causas sociais. Não só a luta camponesa, mas também a luta dos professores, dos sindicatos, dos trabalhadores. Em geral, da classe oprimida. No México, não são só os camponeses que têm problemas, mas também existem problemas entre os indígenas, de assassinatos de líderes sociais, de defensores de direitos humanos e de quem se opõe a projetos neoliberais, como a mineração ou a construção de empresas hidroelétricas, que em nada beneficiam às populações rurais. Nós lutamos para dar visibilidade a todos esses problemas, para que a política do estado neoliberal deixe de despejar as pessoas de seus patrimônios, de suas terras, de contaminar os rios, de acabar com os nossos bosques, e que deixem de nos assassinar, sobretudo.
– Como você classificaria a atuação das forças de segurança estatais no México?
– A atuação das forças do Estado, das forças de segurança, é brutal contra os movimentos sociais, contra as pessoas que saem para se manifestar. Sejam estudantes, camponeses, trabalhadores, sempre há a força do Estado presente, porque essa é a única linguagem que conhecem. Eles sabem que as causas dos povos são legítimas, mas não estão em condições de resolvê-las, porque não é do interesse das autoridades mexicanas resolver esses tipos de problemas. Resolvem muito rápido a dos empresários, quando os concedem grandes territórios para que as mineradoras canadenses e britânicas entrem, mas quando um camponês ou estudante pede ajuda ao governo, lhe fecham a porta. Ou seja, a única resposta que eles têm, normalmente, é a repressão.
– O que você presenciou na noite de 26 de setembro de 2014?
– No contexto que comentei, que as [escolas] normais rurais sempre participam dos protestos sociais, naquele 26 de setembro, nós [estudantes normalistas] estávamos reunindo condições de logística para pedir uma manifestação que aconteceria no dia 2 de outubro de 2014. Essa manifestação acontece todos os anos, de 1968 até a data de hoje. Em 1968, o governo mexicano assassinou muitos manifestantes na Cidade do México, na capital do país. Então, todo ano os estudantes se organizam para lembrar essa data. É uma luta contra o esquecimento,pela memória e pela justiça.
– Pelo que protestavam em 1968?
– Em 1968, os estudantes estavam manifestando contra a violência da polícia, mas também por melhores condições de vida, pela autonomia das universidades e por educação pública, sobretudo. As demandas eram muito concretas e muito locais. Nem sequer eram uma questão de nível nacional. Claro que, quando a polícia começou a reprimi-los, virou um movimento nacional. Em 1968, o 2 de outubro foi só um dos ataques brutais que os estudantes sofreram, pois já haviam sofrido ataques nos meses anteriores e nos meses posteriores continuaram os ataques do governo. Então, se lutava por democratizar a universidade pública e para acabar com a violência governamental.
– O que antecedeu os desaparecimentos e o massacre de Iguala?
– No dia 26 de setembro, os estudantes de Ayotzinapa e de outras universidades estavam tomando ônibus de empresas para utilizá-los durante alguns dias, com o objetivo de atravessar para a Cidade do México. Uma vez que a manifestação terminava, os ônibus ficavam livres. Muita gente acredita que os sequestramos, mas claro que é um acordo com os motoristas e com as empresas. Eles sabem que todos os anos fazemos isso. É uma tradição. Tratamos bem os motoristas e, inclusive, pagamos a eles o que corresponderia a esses dias [de trabalho]. Aos ônibus cuidamos e fazemos manutenção. Ou seja, é sim uma ação fora da lei, mas tampouco é uma ação que justifique a violência do Estado. Sobretudo, porque o Estado tem uma dívida muito grande com os estudantes desde 1968 e, além disso, no México há liberdade de expressão e de manifestação. O que aconteceu é que quando estávamos fazendo isso, a polícia nos reprimiu, nos atacou com tiros e matou seis pessoas. Três delas, meus companheiros e outros 43 levaram em suas patrulhas. Desses 43 estudantes, não sabemos nada até hoje. Nós, os demais, tivemos que correr e buscar refúgio atrás das casas, dos prédios, esconder embaixo dos caminhões, ônibus ou carros e correr pelas montanhas e bosques. Eu sou um dos sobreviventes e sou testemunha, junto com os outros sobreviventes, que a polícia levou os meus companheiros. E também vi o exército mexicano naquela noite patrulhando e perseguindo estudantes. Houve muitos feridos, inclusive, um deles meu amigo Edgar, que foi ferido a bala. Atiraram na cara dele e toda a parte da sua boca se desprendeu. E durante todo aquele caos, levando feridos com a gente, a polícia nos perseguia e seguia disparando.
– Vocês esperavam essa reação dos policiais?
– Para mim e meus companheiros, foi muito difícil aquela noite porque não sabíamos por qual razão estavam nos atacando assim, se nunca haviam feito isso. Quando muito, chegavam a nos bater, nos levavam para a prisão, e só. Então, quando não encontramos no dia seguinte os nossos companheiros na prisão, começamos a entender que se tratava de um desaparecimento forçado e que, claro, feito pelas autoridades mexicanas.
– Como foi a repercussão do caso entre a sociedade mexicana depois do massacre?
– Uma vez que souberam que se tratava dos estudantes de Ayotzinapa e que havia sido a polícia que havia nos atacado, a sociedade mexicana saiu às ruas a manifestar-se e a exigir que o governo dissesse onde estavam os meninos. Os meios de comunicação também nos deram muita cobertura, os internacionais, sobretudo. Pela primeira vez no país se formou um movimento muito grande para denunciar e para exigir que os desaparecimentos forçados acabem, que acabe essa prática de Estado. Começaram a surgir mais vítimas e pessoas buscando covas clandestinas, exigindo que também os seus familiares desaparecidos aparecessem. Não era a primeira vez que as famílias se manifestavam, elas já vinham lutando pelos seus desaparecidos, mas ninguém os via, os visibilizava. Não havia câmeras, não havia meios de comunicação que se interessassem pelo tema. E quando as famílias de Ayotzinapa, dos meus companheiros, saíram fortes e unidas às ruas, os estudantes sobreviventes e muitos movimentos da sociedade mexicana também saíram para dizer “já basta”.
– Qual foi a resposta que o governo de Enrique Peña Neto deu ao caso na época?
– Quando o governo de Enrique Peña Neto viu a resposta da sociedade, quando viu que o movimento estava muito grande, começou a inventar mentiras sobre o que havia ocorrido aos meios de comunicação, a quem pagam muito dinheiro. Começaram a dizer que os nossos companheiros eram narcotraficantes e que por isso nos haviam atacado. Nosso movimento começou a ser desacreditado e diziam que nossos companheiros já estavam mortos, que haviam sido encontrados em covas clandestinas, que haviam queimado todos os corpos em um lixão. A investigação se fez muito rápida, supostamente eficiente, mas não estava certo, claramente o que buscavam era uma saída midiática. Buscavam dizer algo rápido à sociedade mexicana para desativar o movimento, para conter um pouco o descontentamento social que estava surgindo em torno do caso. Saíram investigações muito importantes sobre grandes propriedades até então desconhecidas do presidente e de sua esposa, e de atos de corrupção de seus aliados. Começaram a surgir outros temas que também atingiam o governo de Enrique Peña Neto. O governo tinha toda a sociedade contra ele. Por isso, inventaram que os nossos companheiros haviam morrido. Tudo isso foi mentira porque a Comissão Interamericana de Direitos Humanos mostrou as inconsistências dessa investigação. Para nós, a reação do governo mexicano foi muito ruim, muito equivocada e muito injusta. Para nós foi uma gozação. Trataram de zombar da inteligência do povo mexicano, que tinha certeza que não era assim que havia ocorrido as coisas.
– Como estão os familiares dos desaparecidos hoje?
– Os familiares dos meus companheiros são camponeses, são donas de casa, não estudaram, vieram do campo e, tampouco, tinham muito conhecimento político ou estavam envolvidos em movimentos sociais. Por isso, tiveram que aprender e se esforçar para manifestar uma consciência social, mas também por sua dignidade, para encontrar seus filhos. Tem sido longa a luta dessas famílias. São 5 anos de mobilizações, de excursões pelo México e outros países. Nesse processo, ocorreram mortes entre os familiares de nossos companheiros, que ficaram doentes ou já estavam doentes e pioraram. Morreram no caminho, sem saber o que passou com seus filhos. Pioravam com o desespero, o estresse, a dor de não encontrar a seus filhos. Também são vítimas diretas dos acontecimentos. Mas ainda assim as famílias que continuam aqui seguem firmes com a força que resta para dizer “não vamos nos ajoelhar, não vamos parar, vamos continuar até o final para encontrar os nossos filhos”.
– Como estão as investigações hoje?
– As investigações com o governo atual não avançaram muito. Deram bons sinais, firmou-se um decreto presidencial para que todas as autoridades contribuam com a investigação, se confirmou uma comissão para a investigação da verdade do caso, se confirmou uma fiscalização especial para ele e voltaram alguns dos especialistas internacionais para continuar a investigação. Há uma narrativa distinta do governo, já não se criminaliza, já não se desacredita no movimento, pelo contrário, se reconhece que há um problema sério no país que tem que ser resolvido. Então, eu acredito que há bons sinais, mas ainda há poucos avanços.
– Você sente que a busca pelos desaparecidos de Ayotzinapa ganhou força ao longo dos anos?
– Eu acredito que todos os movimentos crescem e diminuem, segundo as circunstâncias próprias do país, das forças políticas e etc. Nosso movimento foi muito grande nas ruas e isso diminuiu muito. Mas também não tínhamos vínculos e agora temos. Então, eu não gosto de medir nossa força pelas manifestações nas ruas. Isso é acessório, é uma simples demonstração de força. Para mim, o que me satisfaz é que hoje as famílias têm muitos vínculos com muitas pessoas no país e na América Latina e no mundo, que as apoiam. E isso é o que vai mantê-las de pé por mais tempo, até que se descubra o que aconteceu com os nossos companheiros. Então, posso dizer que vamos muito bem como movimento social. No entanto, apesar do nosso movimento ser grande, forte e ter uma rede imensa de solidariedade, isso se torna pouco importante quando medimos os resultados. Ou seja, enquanto acharmos que somos grandes, somos pequenos, porque não conseguimos encontrá-los, não conseguimos saber o que houve com eles.
– Quais são as suas expectativas para o governo de Manuel López Obrador?
– Finalmente chegou um governo de esquerda no país. É o primeiro na história do México desde a revolução mexicana, desde Lázaro Cárdenas, em 1934. Há muitas expectativas, muita esperança, muito apoio da população. Há três dias, no dia 15 de setembro, uma multidão de pessoas saiu em grito de independência em apoio ao presidente. É o primeiro que não gritam “assassino”, que não gritam que é uma fraude e que chegou ao poder por uma fraude eleitoral. Mas também se sabe, pela história do México e pela história da América Latina, que a esquerda falhou muitas vezes. Expectativas muito grandes são criadas, mas realmente não fazem muito. Para o nosso movimento está muito claro que não há como apostar toda a nossa esperança no governo, que devemos manter o movimento nas ruas, com os protestos e o vínculo com outras forças sociais, porque é o que pode garantir que o novo governo faça bem as coisas. Se confiarmos demais, podemos cometer um erro.
– Você citou um vínculo com outras forças sociais. Isso envolve os zapatistas?
– Sim. No México, existem muitos movimentos e muitas forças políticas. Há diferentes referências de luta, a maioria ainda vanguardistas. A esquerda vanguardista sobrevive há muitas décadas e há quem siga lutando pelo socialismo, mas existe outra referência, que são os zapatistas, que nem sequer falam de socialismo ou comunismo, mas da construção de autonomia, da autodeterminação dos povos, da autogestão em todas as esferas da vida pública. Os zapatistas são um dos maiores movimentos que nos apoiou desde o princípio. Nós sempre fomos bem recebidos em suas comunidades indígenas e, junto aos zapatistas, ao Congresso Nacional Indígena, por todo o país. Eles nos deram muita visibilidade a nível internacional porque os zapatistas também têm muitos coletivos e muitas redes de apoio a nível internacional.
– O que representa a luta dos familiares e sobreviventes de Ayotzinapa para o México e para o mundo hoje?
– Eu acredito que Ayotzinapa se tornou um exemplo vivo de como os movimentos, mesmo com todas as dificuldades, com todas as suas contradições internas, devem sempre se manter unidos. Para mim, representa muito acompanhar as famílias, falar com outras pessoas de outros países porque, ainda que sejam grandes os esforços, ainda que tenham poucos resultados e gerem pouca simpatia e pouca ajuda concreta, representa uma possibilidade de mudar algo no nosso sistema de justiça do México, para que não se volte a repetir um caso como o de Ayotzinapa. Também quero esclarecer que não se trata só de 43 estudantes, mas de um problema generalizado no país e na América Latina, onde milhares de pessoas, líderes sociais e ativistas são assassinados e desaparecem todos os dias.