Deputada ameaçada de morte aguarda desde abril por escolta no Rio de Janeiro; mulheres são maioria entre deputados ameaçados
Confira a entrevista
Em que contexto se deram as ameaças que motivaram a sua escolta em Brasília e o pedido de proteção também no Rio de Janeiro?
Talíria Petrone: Desde o início, enquanto figura pública, são muitas ameaças e violências de diferentes formas. A última se insere nesse contexto, que vai desde ameaças nas redes sociais – lamentavelmente cada vez mais comuns – com injúrias raciais, como “negra nojenta, volta para a senzala”, e outras como “você merece uma 9 milímetros na nuca” ou “as milícias vão te matar que nem Marielle”, até ameaças concretas no Rio de Janeiro. Tivemos muitas ligações para a sede do PSOL com ameaças de morte por parte de um homem que inicialmente foi identificado, mas depois não foi mais encontrado pela polícia; fizemos monitoramento de pessoas armadas no comitê de campanha. Tive escolta por um tempo no Rio de Janeiro, depois da execução da Marielle – escolta inclusive da Polícia Militar, vinculada à Secretaria de Segurança Pública. Quando me elegi deputada, até chegamos a pensar em procurar o Depol, mas não fizemos esse movimento porque não queríamos, é ruim para a vida ter escolta. O que aconteceu foi que, há mais ou menos dois meses e meio, no feriado da Páscoa, eu estava em Brasília e o Depol entrou em contato: a Polícia Federal havia orientado que eu fosse protegida porque havia um risco. Em seguida, fizemos algumas reuniões com a Polícia Federal em Brasília e no Rio de Janeiro, e a informação que a polícia passou – não foi ela quem interceptou, recebeu de um outro órgão que não podia dizer qual – é de que havia na deep web a construção de um plano de execução [contra a deputada], e não posso dar muitos detalhes porque é um conteúdo que está sob investigação. A partir daí, o Depol tomou a decisão de me fornecer proteção em Brasília, até por orientação da PF, e o Rodrigo Maia enviou um e-mail para o governo do Rio orientando que fossem tomadas providências no estado, por um entendimento de que é atribuição do Poder Executivo fazer a minha escolta naquele território. Esse primeiro ofício não foi respondido, e tempos depois foi enviado um segundo, porque continuei cancelando agenda, fiquei um tempo em Brasília sem voltar ao Rio – esse também não foi respondido. Fizemos um terceiro pedido, enquanto bancada do PSOL, mais uma vez sem resposta.
Há um jogo de empurra entre governo do Rio de Janeiro e Polícia Federal para a realização da escolta no Rio de Janeiro?
Isso é muito nebuloso enquanto legislação, e é uma questão de procedimento em segurança pública. Essa semana tivemos, inclusive, uma reunião com o Departamento de Polícia Legislativa sobre o assunto, porque eu poderia, por exemplo, pedir para a minha escolta se estender ao Rio de Janeiro – queria muito registrar que o Depol, desde o início, foi excepcional. Só que o Rio de Janeiro tem características muito específicas, com uma realidade de domínio armado do território por milícias, então há o entendimento de que o Depol não tem essa atribuição e nem pernas para isso; em termos técnicos, o ideal é que fosse alguém do estado. Perguntei à Depol e até ontem não havia nenhum documento formal enviado pelo governo do estado negando a escolta – já que eles foram acionados formalmente, é formalmente que deveriam responder. Responderam à imprensa com uma nota [no texto, o governo diz que encaminhou a demanda à PF do Rio por se tratar de “pleito na esfera federal”] – inclusive demoramos para acionar a imprensa, não queríamos fazer alarde porque não é uma situação confortável para mim nem para minha família. A Polícia Federal, por sua vez, afirma que não é atribuição dela. Havíamos pensado em fazer uma reunião com o Ministério da Justiça e o estado do Rio de Janeiro para pensar uma solução objetiva.
Estou cancelando agenda, estou limitando meu exercício parlamentar, e isso é uma afronta muito grande à democracia. Fui eleita para exercer meu mandato plenamente e isso não tem sido possível. Hoje, estou completamente vulnerável no Rio de Janeiro, porque nenhum órgão de segurança me orienta sobre qual passo dar. É muito grave que só dois meses e meio depois o governo do estado se pronuncie e se pronuncie para a imprensa – não fui eu quem pedi [a proteção], foi o presidente da Câmara. Quem tem estabelecido contato permanente comigo é o Depol, e ontem tivemos, inclusive, uma reunião com a Procuradoria-Geral da Câmara para que possamos dar conta [do problema], porque, depois da negativa do Witzel, se ampliaram muito as brechas nas redes, acabei ficando mais vulnerável, essa é a realidade. Estamos preparando uma peça que inclua esses elementos para ser enviada ao governo do Rio, ao comandante da Polícia Militar no Rio e à própria Polícia Federal. É um documento mais detalhado sobre esse histórico de violência. Nesse momento, não há uma resposta institucional sobre a minha proteção no Rio de Janeiro.
Quando está no Rio, que medidas toma para se proteger, além da restrição do seu cronograma?
Hoje tenho um carro blindado alugado pelo partido e pelo mandato, com a verba parlamentar, e a gente sai com mais militantes, mais assessores. Além de restringir a minha agenda, limito tarefas da minha própria equipe, porque preciso sair com uma equipe maior.
Em poucos dias, a Câmara entrará em recesso parlamentar. Como você se sente tendo que voltar ao Rio sem a garantia de proteção?
No primeiro mês do mandato, fiquei mais em Brasília, mas tenho voltado [ao Rio] porque minha vida não pode parar, tenho minha família, meu companheiro, a vida no Rio de Janeiro. Mas isso tem restringido minha circulação pelo espaço público, tenho ficado mais em casa e, quando saio, tento ir acompanhada e voltar rápido. Tem o elemento de não saber de onde a ameaça vem. No Rio de Janeiro, temos muito cuidado em áreas de milícia, mas não saber de onde vem alguém com interesse na minha morte, já que na deep web é difícil a identificação, é algo que me deixa mais vulnerável e com uma gama muito maior de possibilidade de ataques. Sou uma pessoa muito da rua, e antes dessas violências se aprofundarem, ia de bicicleta para a Câmara de Vereadores de Niterói. Eu que sou do espaço público tenho optado por ficar no espaço privado. É uma restrição ao exercício parlamentar e à minha possibilidade de ser quem sou.
Sérgio Sampaio, diretor-geral da Câmara, afirmou que a responsabilidade de proteção de parlamentares é da Polícia Federal e não do Depol, que estaria desfalcado por conta das escoltas. Você sente isso no dia a dia da Câmara?
Estamos vivendo um momento de aumento da violência política. O Brasil já é o país que mais assassina lideranças de direitos humanos no mundo [segundo relatório da organização Global Witness, o Brasil registrou o maior número de assassinatos de defensores de direitos humanos e socioambientais em 2017], e a violência política se ampliou também no meio urbano. A execução da Marielle é um exemplo disso, ela não é vítima de violência urbana, mas de uma execução política no centro de uma capital. Há um clima geral, na minha opinião estimulado pela política do ódio, que amplia a violência política como um todo. E isso aumenta a demanda do Departamento de Polícia Legislativa, que, segundo a direção, não tem agentes para dar conta dessa crescente violência política. Isso reflete justamente o que queremos enfrentar: um retrocesso democrático.
Dos pelo menos 6 deputados federais escoltados pelo Depol devido a ameaças, quatro são mulheres: há você, do PSOL, e mais três do PSL, ou seja, parlamentares de lados opostos do espectro político. Como analisa esse fato? Seu caso tem a ver com os casos de outras deputadas?
Não conheço o caso das outras deputados, mas, de fato, o corpo da mulher no espaço político incomoda muito. Isso provoca ódio em diferentes esferas, ódio esse, queria reforçar, incentivado por uma política de produção de inimigos que é infelizmente um rompimento com o Estado Democrático de Direito. É preciso ampliar a participação de mulheres na política, mas a mulher que o faz é vítima de violência, e isso limita que outras mulheres ocupem a política, então vivemos um ciclo de subocupação desse espaço por nós. Ao mesmo tempo, quem faz essa ocupação fica solitário. Eu gostaria muito que elas [as demais deputadas ameaçadas] se somassem ao enfrentamento à misoginia da qual são vítimas, porque o ataque a mulheres eleitas é um ataque à democracia, seja de qual espectro político for. É muito importante que compreendamos a origem disso: por que mulheres na política provocam tanto ódio? Há a construção de uma lógica patriarcal em nosso país, a lógica colonial não é um detalhe, é muito marcada por violência, é escravocrata, patriarcal, fundamentalista. Ela produz um entendimento de que nosso lugar não é na política e, se a ocuparmos, podemos ser vítimas de violência. É o mesmo mecanismo que leva ao estupro: é o corpo que pode ser tocado. A misoginia está muito explícita nessas violências políticas.
O ex-deputado Jean Wyllys, seu colega de partido, sofreu inúmeras ameaças durante sua trajetória política e renunciou à atividade parlamentar porque não se sentia seguro – deixou inclusive o país. Agora, ele é acusado de ter vendido o mandato a seu suplente, David Miranda, marido do jornalista Glenn Greenwald. Como você vê tudo isso?
O Jean está sendo mais uma vez violentado na sua existência enquanto homem gay e figura pública. Isso é muito grave, é a expressão do atual estágio da democracia brasileira. Ela é jovem, incompleta, não estava amadurecida como em alguns outros países, mas estávamos lutando para radicaliza-la. Me parece que há uma tentativa de interromper essa luta. Um juiz que interferiu num processo que mudou o curso eleitoral, que joga com a parte acusatória, é uma afronta ao Estado Democrático de Direito. Seguimos como se estivéssemos na normalidade, mas isso não é normal; não é normal uma vereadora eleita ter sido executada há quase um ano e meio e a gente não ter uma resposta do Estado. Não é normal um parlamentar eleito viver como o Jean vivia, com as violências que sofria, e não só abandonar o mandato por não ser possível conviver mais com as ameaças, como sair do país – é um parlamentar exilado. A democracia brasileira não está num estágio de normalidade. Temos que interromper esse ciclo antidemocrático urgentemente, e não estamos falando de direita e esquerda, se trata de democracia ou barbárie. É a fronteira perigosa que tem sido rompida pelo presidente da República desde sua campanha com falas que estimulam essa violência.