O direito ao trabalho possui papel fundamental na garantia da humanidade do indivíduo, independente da nacionalidade ou local de origem
Por Juliana Mary Yamanaka Nakano
Do ProMigra, em São Paulo
No Brasil, para um indivíduo ser contratado com vínculo de emprego é necessário que se emita uma Carteira de Trabalho e Previdência Social (“CTPS”) para que sejam anotadas determinadas informações e se garantam os direitos do trabalhador decorrentes do serviço prestado. A CTPS é solicitada perante o Ministério da Economia (extinto Ministério do Trabalho e Emprego).
Na perspectiva dos migrantes, logo ao chegar em um novo país, a busca por um emprego é urgente para que a pessoa se estabeleça de forma digna, com garantia de sustento para custeio de moradia, de alimentação, de transporte, e de outros direitos humanos básicos. Ocorre que, ao solicitar a emissão da carteira de trabalho e conseguir entrar no mercado formal de trabalho, muitos migrantes têm enfrentado sérias dificuldades, principalmente em relação ao agendamento do horário.
Essa dificuldade em realizar a emissão da carteira de trabalho não pode ser considerada “normal”. A situação narrada contraria vários princípios e normas de nosso ordenamento, além de violar diversos direitos como o direito ao trabalho, o direito de igualdade em relação a brasileiros, o direito de regularização documental e a própria dignidade do migrante que chega ao Brasil.
Aos indivíduos em sociedade deve ser garantido o direito ao trabalho. Isto porque, o trabalho é uma das maiores formas de inserção social e deve ser tutelado de maneira a efetivar todas as garantias legais dele decorrentes, com atenção especial às comunidades mais vulneráveis. Pessoas que chegam ao Brasil, seja buscando melhores condições de vida que em seus países de origem, seja fugindo de perseguição requerendo o refúgio, devem ter seus direitos protegidos.
O direito ao trabalho, então, possui papel fundamental na garantia da humanidade do indivíduo. Isto porque, o modelo capitalista é impulsionado pela produção de riquezas pelo labor humano e, portanto, inegável que o labor tem papel central nos arranjos sociais, sobretudo diante de novas formas de marginalização social – como é o caso das geradas pelas migrações.
Em relação ao tema, além de normas brasileiras, existem diplomas internacionais como a Convenção n. 97 da Organização Internacional do Trabalho sobre trabalhadores migrantes – em vigor no Brasil desde 1966 – que prevê especificamente o direito do trabalho em igualdade de condições aos nacionais de cada país, incluindo a questão de salário e jornada.
No campo do ordenamento jurídico pátrio não é diferente. A Constituição Federal, em seu art. 5º assegura aos indivíduos a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. O princípio da igualdade também é expressamente mencionado na Lei de Migração, a qual determina em seu artigo 4º que “Ao migrante é garantida no território nacional, em condição de igualdade com os nacionais, a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, bem como são assegurados: I – direitos e liberdades civis, sociais, culturais e econômicos;(…)”
Além dos direitos individuais estabelecidos, também devem ser garantidos aos migrantes no Brasil os direitos sociais, tão importantes para assegurar a igualdade de fato e uma vida digna, dentre os quais se encontra o direito ao trabalho (art. 6º da Constituição Federal).
Em relação à legislação interna brasileira, deve-se fazer uma observação. Houve importante mudança de mentalidade em relação à antiga legislação no país, pois o antigo Estatuto do Estrangeiro – editado em época de regime militar – foi revogado pela nova Lei de Migração (Lei 13.445), em 2017. Agora, em vez de caracterizar o migrante como uma ameaça à segurança nacional, pautou-se pela centralidade dos seus direitos humanos no Brasil.
Dessa forma, a política migratória nacional estabelece caber ao Estado a promoção do reconhecimento do exercício profissional do migrante, não podendo se escusar do cumprimento, muito menos dificultá-lo por meio de burocracias inadequadas.
A Lei de Migração também prevê no artigo 3º, inciso XI como diretriz a ser perseguida o “acesso igualitário e livre do migrante a serviços, programas e benefícios sociais, bens públicos, educação, assistência jurídica integral pública, trabalho, moradia, serviço bancário e seguridade social”.
Ainda como diretriz, o inciso V do mesmo artigo menciona o direito e incentivo à regularização documental, devendo-se considerar incluída nela a possibilidade de obtenção de documentos necessários ao trabalho no mercado formal (CTPS).
Dessa forma, percebe-se que as dificuldades enfrentadas pelos migrantes no agendamento para emissão de CTPS é grande violação aos seus direitos e não pode ser aceita. Em caso de negativa da emissão do documento, inclusive, é possível o ajuizamento de ação perante o poder judiciário, pleiteando o seu direito, por meio de mandado de segurança por violação ou ameaça a violação ao chamado direito líquido e certo (Constituição artigo 5º, inciso LXIX e Lei 12.016/2009).
O que pode parecer algo simples e “invisível”, como a emissão da carteira de trabalho, tem gerado vários problemas na prática e frustrado inúmeras expectativas e direitos.
Nota-se que qualquer empecilho à obtenção de documentos para que o migrante possa exercer plenamente o trabalho no Brasil é situação muito séria, visto que afeta toda a fruição de demais direitos (moradia, saúde, alimentação, educação…). Um indivíduo sem carteira de trabalho não pode realizar qualquer ofício regularmente, ainda que tenha a oportunidade, e isto não se pode admitir na realidade na qual vivemos, principalmente considerando toda a evolução da legislação e da consciência no Brasil, país que se diz democrático e pautado pela valorização social do trabalho e pela dignidade da pessoa humana.