Por Victória Brotto
Durante uma semana, quase 200 restaurantes ao redor do mundo cedem suas cozinhas para mais de 150 refugiados cozinharem para os seus clientes. É isso que acontece em 16 cidades de nove países diferentes no mês de junho durante a semana do Refugee Food Festival, organizado pela associação Food Sweet Food.
A semana, que varia de cidade para cidade, é marcada normalmente em dias próximos ao 20 de junho, quando é lembrado o Dia Mundial do Refugiado.
Em Estrasburgo (França), o Festival vive a sua 4ª edição, que acontecerá de 13 a 22 de junho, com quinze refugiados cozinhando em mais de dez restaurantes espalhados pela cidade que abriga diversas instituições europeias, entre elas o Parlamento Europeu. Confira aqui a programação.
“A comida é uma das formas mais poderosas de compartilhar com o outro a nossa cultura”, afirmou ao MigraMundo a coordenadora do Festival e da Associação Food Sweet Food em Estrasburgo, Hélène Berrier. A Food Sweet Food é apoiada pelo Alto Comissariado da ONU para Refugiados (ACNUR) para formar a equipe quanto à temática do refúgio afim de melhor comunicar com o público – e com os próprios refugiados.
”O objetivo da Associação, tanto durante quanto depois do Festival, é ajudar na inserção profissional desses refugiados que querem fazer da cozinha a sua profissão.”
Entre os chefs refugiados que conseguiram se destacar por meio do Festival, está a georgiana Daredjan Pkhadze, selecionada pelo ‘Des Étoiles et Des Femmes’. O curso, um dos mais renomados da região, forma e treina mulheres para integrarem os melhores restaurantes da França, o país com uma das cozinhas mais refinadas do mundo.
De acordo com uma pesquisa feita pelo Ministério do Trabalho francês, o refugiado encontra mais dificuldade de achar um trabalho do que um estrangeiro detentor de outro tipo de visto no país.
18 países ao redor da mesa
A ideia de um Festival de comidas feitas por migrantes veio dos franceses Marine Mandrila e Louis Martin depois de uma viagem ao redor do mundo. Após visitar 18 países e compartilharem a mesa com dezenas de homens e mulheres, os franceses perceberam que ”a comida e a mesa são uma incrível arma para se conectar com o outro”.
”Em plena ‘crise de refugiados’, eles pensaram então engajar a tradicional cozinha francesa na temática do refúgio, chamando assim os franceses a pensar sobre o assunto – começando pelo paladar”, conta a equipe do Food Sweet Food, em seu site.
”A comida é um dos maiores elementos de união que cruzam toda e qualquer cultura”, afirma a jornalista Amy S. Choi, em seu artigo para o TED intitulado” O que os americanos podem aprender com outras culturas culinárias” – leia aqui a versão em inglês.
De acordo com Jennifer Berg, diretora do centro de estudos culinários da Universidade de Nova York, ”a comida se torna algo particularmente importante quando você faz parte de um movimento de diáspora (migração) e foi separado da sua cultura materna.
”É o último vestígio de cultura que restou”; afirma. ” Existem alguns aspectos da cultura materna que nós não perdemos logo que deixamos o nosso país (…) A comida é algo que nós nos engajamos pelo menos três vezes ao dia abrindo então diversos momentos durante o nosso dia de nos reconectarmos com memórias, família e lugares. E, portanto, resta uma das coisas mais difíceis esquecer ( e de abrir mão).”
Strasbourg, à lá Table!
De acordo com os dados do Escritório de Integração e Acolhimento de Refugiados do governo francês ( OFPRA, sigla em francês) , a França acolheu 20.940 refugiados até o ano passado. E uma delas é a georgiana Daredjan Pkhadze, uma das chefs participantes do Refugee Food Festival em Strasbourg. Como ela, outros 14 refugiados e refugiadas, vindos de países como a Síria, Armênia, Iraque e da África subsaariana participam do evento.
Com a ajuda do Food Sweet Food e sua experiência na edição de Natal do Refugee Food Festival, em dezembro de 2018, Daredjan foi selecionada para estudar na prestigiosa formação Des Etóiles et des Femmes (Sobre Estrelas e Mulheres, tradução livre do francês). O curso é aberto a mulheres que querem virar grandes chefs de cozinhas. Uma vez selecionada, a estudante estagia nos melhores hotéis e restaurantes da região (a Alsácia, onde fica Estrasburgo, possui 31 restaurantes que possuem ao menos uma estrela no guia Michelin). Depois do estágio, as mulheres começam a trabalhar ao lado de grandes chefs durante meio período enquanto terminam o curso.
Daredjan fugiu da Geórgia quando tinha 11 anos, quando sua mãe, jurista, começou a ser perseguida por causa de seu trabalho. Daredjan aprendeu a cozinhar com a sua avó, que, na cidade natal da família, tinha uma padaria. Hoje, suas especialidades são bolinhos georgianos recheados com carne e queijo típico de sua região – que ela mesma faz. Segundo a chef, a cozinha de seu país é muito variada e farta.
”Nesse pequeno país do Cáucaso, descobre-se uma grande variedade de pratos”, afirmou ela à equipe da FSF. Para Daredjan, com rigorosas técnicas de feitura de pratos como Khachapuri (pão típico da Géorgia) e Kharcho (sopa tradicional), a cozinha faz parte da cultura e da história de seus ancestrais e é por isso também que ela a prepara com tanto cuidado.
”É uma alegria muito grande para nós vermos esse pessoal encontrar trabalho ou uma formação, como Daredjan”, conta Hélène, do Food Sweet Food. ”O que queremos é justamente a inserção profissional dos refugiados na região”, acrescenta a coordenadora, que aceitou encontrar a reportagem em um típico café francês no centro da cidade.
”É importante promover um evento como esse porque é preciso aproximar as pessoas, as culturas, as histórias. Quando comemos algo, nós interiorizamos não só a comida, mas a história e a cultura que aquela comida traz”, conta Berrier, que voltou à Estrasburgo, sua terra natal, para tocar o projeto localmente. Por dois anos, Helena foi uma das organizadoras da associação–matriz em Paris.
”[Para criar a versão em Estrasburgo da Food Sweet Food e do Festival] foi preciso muito conhecimento em duas áreas: a de restaurantes e do meio associativo”. Mas por justamente já ter vivido em Estrasburgo, o caminho de Hélène estava, pela metade, andado. ”Eu contei com a ajuda de muitas associações que acolhem refugiados. Aos poucos, fui conhecendo esses refugiados, entrando em contato e o Festival começou a ganhar forma”, afirma.
Sobre o contato com os restaurantes, a coordenadora explica que foi preciso ganhar a confiança dos donos e entender os valores de cada estabelecimento. Em dois anos, o Festival dobrou o número de refugiados e de restaurantes participantes – os cinco chefs refugiados viraram 15 em apenas dois anos.
”Alguns donos de restaurantes, ao se disporem a empregar a tempo parcial alguns de nossos chefs refugiados, vinham me perguntar : Ah, mas como eu faço o contrato então, preciso chamar alguma organização ?’ E eu respondia que não, que era, em termos de lei, como se ele estivesse empregando um francês. ‘Você vai precisar da carta de identidade, CPF etc…”, conta. E acrescenta: ”Ainda falta informação para o empregador no que diz respeito ao refugiado.”