Joseph Mobutu foi um ditador que, alinhado aos interesses das potências ocidentais, controlou a República do Zaire (atual República Democrática do Congo – RDC) de 1965, ano do golpe de Estado, até 1997, quando fora deposto. Vendo seu capital político se deteriorar com o fim da Guerra Fria – a RDC é um país com riquíssimas reservas de minerais básicos para as indústrias aeroespacial, eletrônica e de informática e, por isso, Mobutu era tratado, internacionalmente, com especial esmero dentro do contexto da Guerra Fria, o que lhe garantia, também, apoio para se manter forte internamente -, o ditador começou a fazer uma série de mudanças no país, para tentar continuar se perpetuando no poder e aliviar um pouco da crescente pressão externa que começava a atingir seu governo: por exemplo, em 1989 o Zaire assinou a Convenção das Nações Unidas Contra Tortura, um esforço do governo para mostrar que as frequentes acusações contra o país de violação dos direitos e das liberdades dos cidadãos eram infundadas; em 1990, o mesmo ditador implantou uma série de mudanças democratizantes no país, como a adoção de um sistema político multipartidário.
A mesma fórmula foi utilizada, em período semelhante, na vizinha Ruanda. O país era, até então, a menina dos olhos dos fundos de ajuda e cooperação internacionais. Juvenal Habyarimana, outro ditador e que era ligado a Akazu, uma elite Hutus que controlava o país e que teve participação muito relevante dentro do Poder Hutu, ideologia que levaria ao genocídio promovido em 1994 em Ruanda contra Tutsis, Pigmeus e Hutus moderados, viu seu capital político internacional, por causa da mesma razão que Mobutu – o fim da Guerra Fria -, se deterior, e uma crescente exigência por medidas democratizantes surgir: a ameaça era de cortes nas ajudas internacionais, que, então, representavam 60% do orçamento anual ruandês. Assim, em 1990, Habyarimana anunciou a implementação de um sistema multipartidário em Ruanda, que, mais adiante, se revelaria como um mero placebo.
Estes são apenas dois exemplos: na história de África existem vários outros, o que nos leva a afirmar que já há uma tradição, no continente, do uso de medidas democratizantes paliativas para que governos conservadores e totalitaristas se perpetuem no poder. Agora, 4 países da região põem todos a refletirem novamente: está ocorrendo uma mudança nos ventos em África ou estamos vendo a história se repetir?
No ano passado, 2018, Eduardo dos Santos saiu do comando de Angola após 38 anos à frente do país – governava desde 1979. Seus filhos ocupavam, até então, cargos chave nas principais empresas e instituições financeiras angolanas: Isabel dos Santos, a filha mais velha e mais conhecida (é uma mulher de negócios bem-sucedida) do ex-mandatário angolano, era administradora da Sonangol, petrolífera estatal angolana; José Filomeno era administrador do Fundo Soberano de Angola; José Eduardo Paulino geria os canais da Televisão Pública de Angola (TPA), instituição na qual outra de suas filhas, Welwistschia “Tchizé”, também ocupava um cargo de responsabilidade; Eduane Danilo, jovem de 26 anos, era acionista maioritário do Banco Postal de Angola. No lugar de Eduardo dos Santos assumiu João Lourenço. Durante a campanha para as eleitorais de 2017, a principal bandeira do então candidato foi o combate a corrupção. Já nos primeiros meses de mandato, Lourenço acusou o antecessor de ter saído da presidência e ter deixado os cofres angolanos vazios; ele também prendeu membros do clã de Eduardo dos Santos por suspeita de corrução: José Filomeno, por exemplo, foi posto em prisão preventiva em setembro de 2017, em uma investigação sobre o Fundo Soberano de Angola, sob, entre outras suspeitas, as acusações de associação criminosa e tráfico de influência; outras pessoas ligadas a ele e ao pai, nas mesmas investigações, também foram encarceradas de forma preventiva – o empresário Jean-Claude Bastos de Morais, o ex-ministro Augusto Tomás e o ex-diretor do Banco Nacional de Angola (BNA), Valter Filipe. Além disso, João Lourenço tem tentado mostrar apresso à liberdade de imprensa e às liberdades individuais: em janeiro, de acordo com o novo código penal, a homossexualidade deixou de ser crime em Angola. E o que põe em xeque todas estas mudanças promovidas pelo novo mandatário angolano? É certo que João Lourenço já possuía rusgas com o antigo mandatário; no entanto, Lourenço pertence ao mesmo partido político que Eduardo dos Santos, o Movimento Popular para a Libertação de Angola (MPLA), no comando do país desde a independência de sua antiga metrópole, Portugal, em 1975, e, inclusive, serviu como ministro da defesa de dos Santos entre 2014 e 2017.
Na região dos grandes lagos africanos, República Democrática do Congo e Ruanda são outras duas nações que têm prendido a atenção de muita gente. A família Kabila estava desde o fim da década de 1990 no comando da RDC. Laurent Kabila, primeiro presidente a assumir após a deposição de Mobutu, esteve no cargo por quase 4 anos, quando, em 2001, foi assassinado por um de seus seguranças e seu filho, Joseph Kabila, assumiu. Então símbolo de esperança, Joseph, por meio de processos eleitorais contestados e do adiamento do último pleito eleitoral, que, de acordo com as leis congolesas, deveria ter ocorrido no final de 2016, se manteve no poder até 2018, quando eleições foram convocadas para dezembro. Na disputa, realizada no dia 30, Félix Tshisekedi foi eleito sob forte protesto de Martin Fayulu, segundo colocado. De acordo com Fayulu, que recorreu até ao Tribunal Constitucional congolês, dados dos 40 mil observadores da Conferência Episcopal Congolesa que acompanharam as votações lhes dava a vitória com mais de 60% dos votos. A União Africana (UA) chegou a fazer um apelo para o adiamento da divulgação dos resultados eleitorais, mas, com o deferimento dos resultados pelo Tribunal Constitucional, o bloco resolveu por reconhecer Tshisekedi como novo presidente. Outro bloco regional que demonstrou preocupação com a lisura do processo eleitoral congolês foi a Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral, que chegou a recomendar ao governo congolês a recontagem dos votos; no fim, o caminho seguido foi o mesmo adotado pela UA. O quanto Félix Tshisekedi representa uma real mudança na RDC é uma incógnita. Seu pai, Étienne Tshisekedi, brigou nas urnas contra Kabila em 2011 e era um oposicionista do governo, papel que Félix, o filho, também ocupou nestas eleições. No entanto, o segundo colocado, Martin Fayulu, acusa Kabila e Tshisekedi de terem se unido em uma fraude eleitoral. Vale lembrar que o candidato governista, Emmanuel Ramazani Shadary, ficou apenas com a terceira colocação no pleito.
Já em Ruanda, parece não haver disputa pelo poder. Desde 2000 o presidente é o mesmo – Paul Kagame, membro da Frente Patriótica de Ruanda. De 1994 a 2000 ele foi vice-presidente do país, sendo tido como o real “homem forte” do governo. Desde que assumiu como mandatário interino, em 2000, tem ganho sucessivas eleições; em 2015 aprovou uma série de mudanças constitucionais, dentre as quais uma que lhe garantia poder disputar o terceiro mandato e, assim, assegurar-se na presidência de Ruanda até 2024. No pleito de 2017, em uma eleição altamente contestada, Paul Kagame conquistou mais uma vitória: as apurações oficiais mostraram uma porcentagem de mais de 90% dos votos para ele. Paul Kagame, no entanto, está longe de ser um líder altamente contestado: diminuiu os níveis de corrupção e pobreza em Ruanda, levantou o país do trauma do genocídio e transformou a economia da pequena nação da África Central, tornando-a uma das mais dinâmicas e que mais crescem no continente. Porém, há tempos o país é alvo de denúncias de abusos das liberdades e supressão dos direitos humanos. Práticas como utilizar as leis criadas para não apagar a memória do genocídio e a acusação de crimes fiscais são usadas para prender opositores políticos. Ano passado, com a pressão de organizações internacionais e outros países crescendo sobre o presidente para que ele retroceda no caminho de repressão da liberdade de expressão e imprensa que está tomando, Diane Shima Rwigara, empresária e oposicionista ao governo de Kagame, que teve negado o direito de disputar a eleição presidencial de 2017, e, posteriormente, foi presa sob as acusações de incitação e fraude, foi libertada sob fiança e a condição de que não sairia da capital ruandesa, Kigali. Agora, é aguardar para ver se teremos uma mudança de postura real ou se isto foi apenas uma ação “para inglês ver” por parte de Kagame.
Apesar de Angola, RDC e Ruanda chamarem atenção da opinião pública global, nenhum outro país inspira mais esperanças dentro do continente do que a Etiópia. Em abril de 2018 assumiu o governo etíope Abiy Ahmed. Desde o início, sua escolha havia sido enxergada como uma forma de reconciliação, pois ele é a primeira pessoa da etnia Oromo a comandar um país que sofreu com as diferenças étnicas, e, agora, próximo de completar um ano no cargo de primeiro-ministro, as mudanças no país feitas por ele continuam a acontecer em um ritmo alucinante. Ahmed, que recebeu o apelido de “Obama da África”, dentre outras coisas, retomou as relações diplomáticas com a vizinha Eritreia, com a qual a Etiópia havia, há duas décadas, rompido laços, prendeu policiais e militares acusados de corrupção, soltou presos políticos e aumentou significativamente a representatividade de mulheres dentro do alto escalão governamental – a presidente hoje é Sahle-Work Zewde, uma mulher (a primeira a ocupar tal posição), assim como a chefe da suprema corte do país. Resta saber, agora, qual será a duração e a real efetividade destas reformas; por hora, a Etiópia parece estar em um caminho mais que correto.
Artigo por Felipe A.