Por Cristiane Sampaio / Brasil de Fato
Estado vive ápice da violência, com 169 ataques em 42 cidades; sociedade civil pede políticas estruturantes
Com uma crise crônica na área de segurança pública, o Ceará tem vivido os últimos dias um clima de tensão para a população, especialmente para as comunidades da periferia.
Comércios fechados, toques de recolher, redução de frota de ônibus, linhas de transporte circulando sob o patrulhamento de policiais, interrupção de coleta de lixo e outros serviços compõem o cenário de terror que já dura uma semana e atinge a capital e mais 41 municípios do interior.
Sob ataques desde a última quarta-feira (2), o estado registrou, até o momento, 169 ações, incluindo incêndios de carros e coletivos; disparos em agências bancárias; explosões em pontes e viadutos; ataques a prédios públicos, creches, semáforos, fotossensores, ambulâncias, câmaras de vereadores, entre outros.
De um lado, o governo tenta, como medida emergencial, articular um reforço nas ações de patrulhamento, com o auxílio de homens da Força Nacional e da Polícia Militar da Bahia. Também foram nomeados novos agentes penitenciários e da PM, ao mesmo tempo em que 21 líderes de facções criminosas foram transferidos para presídios federais.
De outro lado, atores da sociedade civil organizada e especialistas defendem a adoção de outras medidas. Para o pesquisador César Barreira, coordenador do Laboratório de Estudos da Violência (LEV) da Universidade Federal do Ceará (UFC), é preciso atuar em diferentes frentes.
Uma delas se refere aos investimentos na área de inteligência, de forma que o Estado tenha capacidade para frustrar as ações das facções e desarticular o crime organizado. Além disso, ele ressalta que a atuação estatal precisa ser traçada com técnica e organização.
“A questão do planejamento tem que ser feita de forma muito rigorosa, pra que nós tenhamos ações de curto, médio e longo prazos. Nós não podemos conter violência com violência. Temos que contê-la com inteligência, com racionalidade”, analisa.
Militarização
O caráter militarizado das ações implementadas pelo governo estadual também é outra preocupação dos especialistas. O pesquisador Luiz Fábio Paiva, do LEV/UFC, destaca que a utilização da Força Nacional (autorizada pelo ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro), por exemplo, é uma ação limitada e por isso sem capacidade de promover mudanças reais no cenário da violência.
O governo afirma que o uso das tropas seria uma forma emergencial de tentar inibir a ação de facções criminosas, suspeitas da autoria dos ataques.
O contexto da violência no estado é marcado atualmente pelo fortalecimento de grupos que migraram do Rio de Janeiro e de São Paulo para o Ceará, como o Comando Vermelho (CV) e o Primeiro Comando da Capital (PCC), além da Família do Norte, surgida no Amazonas, e de facções locais. Por conta da localização geográfica, a capital cearense é considerada estratégica para a rota do tráfico internacional de drogas.
Contexto
Os ataques tiveram início na última quarta (2), após uma declaração do novo secretário de Administração Penitenciária, Mauro Albuquerque, de que o estado iria promover mudanças nos presídios, como a proibição da entrada de celulares.
Ele também anunciou que acabaria com a prática de divisão de presos conforme a facção criminosa, o que tenderia a prejudicar a articulação do crime organizado. Como resposta, as facções iniciaram a série de ataques, que contabiliza, até esta quarta-feira (9), 215 pessoas capturadas, entre detidos e apreendidos.
Entre outras medidas, o governo estadual deslocou policiais civis dos trabalhos de investigação para o patrulhamento de rua, que agora conta também com cerca de 200 agentes da Força Nacional. O pesquisador Fábio Paiva ressalta, no entanto, que a ação das polícias e especialmente da Força Nacional tem caráter pontual e superficial.
“Obviamente, a Força Nacional garante um apaziguamento porque há maior presença de efetivo policial. No entanto, ela não tem poder nenhum de resolver os problemas que geram o crime e a violência no estado. Quando ela sair, todos esses problemas vão continuar. Inclusive, durante o período em que ela permanecer, é muito provável que esses coletivos [facções] continuem com o processo de agenciamento de jovens, formando fileiras e aguardando o momento para voltarem a demonstrar sua força”, aponta o professor.
Iniciativas de políticas públicas
Em 2015, ao assumir o primeiro mandato, o atual governador, Camilo Santana (PT), lançou o programa “Ceará Pacífico”, voltado à execução de diferentes projetos intersetoriais que envolveriam reforço de efetivos do Estado, atuação policial com caráter comunitário e oferta de serviços públicos nas áreas social e de segurança.
O foco era voltado para territórios de alta vulnerabilidade. Entre outras coisas, as ações envolveriam parcerias com o setor privado e com a Prefeitura de Fortaleza.
A ideia do Ceará Pacífico seria, entre outras coisas, reduzir a vulnerabilidade das comunidades-alvo para evitar a captura de jovens pelo crime organizado, articulador do tráfico de drogas. O trabalho, no entanto, não conseguiu atingir o horizonte esperado. É o que afirma Adriano Almeida, doFórum Popular de Segurança Pública do Ceará, que reúne entidades, movimentos populares e outros atores.
Atuante no Grande Bom Jardim, uma das áreas mais violentas de Fortaleza, Almeida aponta que o estado não teria conseguido suprir com eficiência as necessidades diagnosticadas para o lançamento do programa, como, por exemplo, uma maior articulação entre as forças estatais e os territórios mais vulneráveis.
“A perspectiva comunitária, de diálogo com a sociedade civil e os movimentos populares, foi totalmente modificada. Durante o processo, a perspectiva militarizada alterou o caráter e o escopo geral do programa. A concepção primeira e a atual são totalmente diferentes”, afirma.
Juventude
Caio Feitosa, da coordenação da ONG Centro de Defesa da Vida Herbert de Souza, que atua em bairros periféricos da capital cearense, sublinha que jovens são considerados o público mais vulnerável à atuação do tráfico de drogas. Por conta disso, acabam se tornando alvo certeiro da violência.
Em Fortaleza, por exemplo, cerca de 50% dos homicídios se concentram em 17 bairros, todos de alta vulnerabilidade, segundo diagnóstico do Comitê Cearense pela Prevenção dos Homicídios na Adolescência. No ano passado, os assassinatos ocuparam o topo do ranking das mortes de jovens com idade entre 10 e 19 anos, com 2.053 casos.
Feitosa destaca que, em geral, as vítimas são pessoas com bastante proximidade com o círculo da violência.
“O perfil é sempre de um jovem que abandona a escola; um jovem que, ao contrario do que se diz, já tinha procurado oportunidade de trabalho, uma inserção precarizada de trabalho. É também um jovem quase sempre filho só de mãe, ou seja, tem um contexto de desassistência paterna muito grande, e mora em área de pouca infraestrutura urbana, uma moradia quase sempre muito precária e em condições de pobreza”, acrescenta o coordenador.
Diante desse cenário, o pesquisador Luiz Fábio Paiva afirma que os investimentos prioritários em políticas de segurança pública ostensiva e repressiva não teriam funcionado porque não garantem resultados na melhora da qualidade de vida, sobretudo das periferias.
Ele acrescenta que o estado carece de políticas mais estruturantes voltadas à prevenção da violência e ao bem-estar social. Entre outras iniciativas, os especialistas defendem ações enérgicas nas áreas de educação, assistência social e foco nos territórios.
“Se você não faz isso, efetivamente, você não tem solução nenhuma para um problema que é muito grave e que, infelizmente, tem sido tratado com amadorismo e bravatas”, aponta.
O que diz o governo
Em entrevista ao Brasil de Fato, o secretário-chefe da Casa Civil do Ceará, Élcio Batista, admitiu problemas levantados pelos especialistas ouvidos nesta reportagem. Ele afirmou que “as ações dentro dos territórios do Ceará Pacífico vêm ocorrendo de forma mais lenta do que o esperado”. Além disso, afirmou que há necessidade de maiores investimentos nesses locais, com ações integradas de educação, saúde, proteção social, etc.
Do ponto de vista do combate ao crime, Batista disse que haveria necessidade de maior participação do governo federal na administração do problema.
“Nos últimos 15 ou 20 anos, a ação da União foi basicamente enviar a Força Nacional para o estado e abrir vagas no sistema penitenciário federal para transferir alguns líderes de facções criminosas”, sublinha.
O secretário-chefe defende a efetivação de uma política nacional articulada entre União e estados para fazer uma repressão qualificada do crime organizado. Ele argumenta que as facções criminosas têm amplitude nacional e por isso os estados não teriam condições de encontrar, sozinhos, soluções mais efetivas para a questão.
“Estamos falando de tráfico de drogas e de armas, lavagem de dinheiro. São crimes federais. Estamos falando de questões que ultrapassaram as fronteiras do país, de crimes que são transnacionais. Esse é o grande desafio que precisa ser enfrentado, porque não estamos falando de um problema localizado no Ceará. Ele já ocorreu, nos últimos quatro anos, no Espírito Santo, no Acre, em São Paulo, no Rio de Janeiro, no Rio Grande do Sul”, finaliza.