Por Annie Machon*

Os bastidores de um caso de chantagem envolvendo sexo relembram o que Snowden demonstrou: governos e achacadores têm acesso, também, a todos os nossos momentos íntimos.

Algumas semanas atrás recebi pela primeira vez um email ameaçador de alguém que dizia chamar-se Susana Peritz. “Ela” disse que havia raqueado meu email, plantado vírus no meu computador e depois me filmou enquanto eu me divertia assistindo “interessante” pornografia online. Seu email me chamou a atenção porque mencionava, no assunto, uma senha muito antiga, ligada a um endereço de email muito antigo, que eu não usava há mais de uma década. O vírus deve ter sido plantado num computador defunto.

Deixando de lado o fato de que estou muito mais preocupada com a GCHQ [serviço de espionagem britânico] ou a NSA raqueando meu computador (como todos deveríamos estar), isso me divertiu muito. Aparentemente, devo pagar a essa “Susana” 1.000 dólares via Bitcoin ou então, ó céus, terei os alegados prazeres compartilhados com meus conhecidos. E ontem à noite recebi outro pedido cortês de dinheiro de alguém que diz chamar-se Jillie Abdulrazak, mas o preço agora foi inflacionado para US$ 3.000.

Por que não estou preocupada? Bem, posso dizer com segurança – e a mão no coração – que nunca assisti pornografia online. Mas isso me fez pensar como e por que fui escolhida por um chantagista, e me trouxe pensamentos bem sombrios. É perfeitamente possível que, num raro momento desprotegido de amor à distância online, eu possa ter sido capturada (mas por quem?). Isso provavelmente já teria acabado há uma década, e por certo seria usando a velha conta de email que estava ligada,  à época, àquela senha particular.

Contudo, mesmo aquelas memórias me foram negadas – lembro-se claramente de que por muito tempo havia estado paranoica, e sempre cobri a lente da câmera interna do computador. Se alguma coisa pode ter sido gravada, só seria de áudio – no máximo um telefonema apimentado. Não pode mais haver vídeo do meu eu jovem, aliás.

Eu tive boas razões para ficar paranoica. No final dos anos 1990, apoiei meu ex-parceiro e oficial de inteligência do MI5, David Shalyer, em suas buscas por informações para expor os crimes e a incompetência das agências de espionagem do Reino Unido, à época. Em consequência tivemos de sair literalmente correndo pela Europa, vivendo clandestinos durante um ano na França profunda, e outros dois anos no exílio em Paris, antes de retornar voluntariamente ao Reino Unido, em 2000, e sob os termos da draconiana Lei dos Segredos Oficiais de 1989, ser presos por expor os crimes dos espiões britânicos. Naqueles anos, conhecendo como eu conhecia os poderes dos espiões, nunca desapareceu a sensação de estar sendo potencialmente observada.

A grande cena

Então, sabendo bem que eu nunca havia assistido absolutamente nenhuma pornografia online, e sempre havia mantido cobertas as lentes da câmera do meu computador, “Susana” e “Jillie” puderam tornar-se denunciantes. Vocês tentaram sacudir a paranoide ex-denunciante da MI5 errada, queridos. E meu pessoal de tecnologia está agora caçando vocês.

Qualquer áudio poderia, suponho eu, ser de alguma forma emendado em algum vídeo desonesto para forjar o material dos sonhos de um chantagista. Será fácil “torná-lo forense” – e eu por certo tenho amigos que podem fazer isso, um trabalho de classe mundial.

Alternativamente, o ex-amor pode ter gravado o áudio, na época, para seu nefasto uso pessoal em algum momento do futuro nebuloso. E se esse futuro é agora, depois dele ter-se mostrado, muito tempo atrás, cronicamente desonesto, por que fazer isso em 2018, após anos de separação? É possível que ele próprio tenha continuado a usar a velha conta de email para ver imagens torpes – tinha a senha na época, com certeza, e talvez a use para distanciar-se do próprio hábito pornô. Se esse é o caso, ele é ainda menos digno do que imaginava que fosse. Ou será que isso é talvez algum tipo de sombria operação-fantasma pelo Lovelnt, em alguma tentativa fracassada de me assustar ou me envergonhar?

Mas, é claro, há um cenário maior e mais político.

Desde quando trabalhei como funcionária de inteligência para o MI5, antes de sair correndo com Shayler durante os anos de denúncias, no fim da década de 1990, eu estive dolorosamente consciente das capacidades dos espiões tecnológicos. Mesmo então sabíamos que computadores podiam ser capturados por adversários e voltar-se contra você – registradores de teclas, gravação remota via microfones, câmeras ligadas para observá-lo e muitos outros horrores.

As denúncias de Edward Snowden em 2013 confirmaram tudo isso e muito mais, numa escala industrial e global – estamos todos potencialmente em risco de sofrer essa invasão de nossa privacidade pessoal. Mantive as lentes do meu computador e celular cobertas por todos esses anos precisamente por causa dessa ameaça. Uma revelação específica de Snowden, que recebeu pouca atenção da mídia tradicional, foi o programa OPTIC NERVE. Era um programa GCHQ (financiado com dinheiro dos EUA) que permitia aos espiões interceptar chamadas de videoconferência em tempo real. Acabou que, ó horror,  10% deles eram de natureza obscena, e os espiões ficaram chocados!

Tenho falado sobre privacidade e vigilância em conferências pelo mundo todo e muitas, muitas vezes tenho que debater a suposição de que “se você não está fazendo nada de errado, nada tem nada a esconder”.

Contudo, a maioria das pessoas gostariam de manter privados seus relacionamentos íntimos. Nessa era de viagens a trabalho e relacionamentos a longa distância, muitos de nós bem podemos ter conversas, ou mesmo vídeos íntimos via internet. Num contexto adulto, consensual e mutuamente prazeroso, não estamos fazendo nada de errado e nada temos a esconder, mas por certo não queremos espiões nos observando ou escutando, assim como não queremos criminosos capturando imagens e tentando nos chantagear por dinheiro.

Essa tentativa de extorsão, de baixo nível e pateticamente amadora, é risível. Infelizmente, a ameaça dos nossos espiões governamentais não é.


*Annie Machon é ex-oficial de inteligência do Serviço de Segurança MI5 do Reino Unido.

O artigo original pode ser visto aquí