Por Francisco Rio
Nos últimos dias duas notícias chamaram a atenção. Elas expuseram como uma mesma questão, que a princípio chamaremos aqui de imigração indocumentada, pode ser encarada por distintos governos e políticas por prismas tão antagônicos. De um lado, advinda da França, a primeira notícia logo ganhou repercussão internacional e galgou o top trends das redes sociais pelo caráter de heroísmo envolvido. Trata-se do caso do imigrante “ilegal” malinês, Mamoudou Gassama, de 22 años, que arriscou a própria vida escalando somente com as forças das mãos, braços e pernas um prédio em Paris para salvar um menino de quatro anos, que pendurado num varal estava prestes a cair do 4º andar. O heroísmo de Gassama rendeu-lhe o reconhecimento do presidente francês, Emmanuel Macron, que além de felicitá-lo pessoalmente, conferiu ao imigrante a cidadania francesa e um posto de trabalho no serviço público de emergência. O vídeo do salvamento, que circulou pela Internet, também repercutiu positivamente na sociedade francesa, marcada na última década pelo recrudescimento dos discursos xenófobos, reascendendo o debate Político sobre a condição dos imigrantes no país.
Do outro lado do Atlântico Norte, no entanto, a notícia que ganhou as páginas do periódico norte-americano Chicago Tribune não é nada animadora. E, diferente do caso Gassama, não galgou as manchetes dos principais jornais mundo afora. Limitando-se a repercutir dentro do território dos Estados Unidos. Trata-se do conteúdo de denúncia realizada pela American Civil Liberties Union (ACLU) e pela International Human Rights Clinic da University of Chicago Law School. O documento produzido por essas entidades reporta que, entre 2009 e 2014, foram cometidos inúmeros abusos por funcionários do Department of Homeland Security’s Customs and Border Protection dos Estados Unidos contra crianças e adolescentes não-documentados. Intitulado “We must protect migrant children from abuse by U.S. Border Patrol” [“Devemos proteger as crianças migrantes do abuso da patrulha de fronteira dos EUA”], o documento-denúncia é baseado na leitura jurídica de cerca de 300 mil páginas de processos obtidos pela ACLU.
Ironicamente, o artigo do Chigaco Tribune inicia com as seguintes indagações: “Nós falamos muito sobre proteger as crianças. Queremos protegê-los da violência em nossos bairros e escolas. Queremos protegê-los do abuso e da negligência em nossas instituições e lares. Mas o que acontece quando as crianças não são nossos filhos? Ainda nos importamos com as crianças mesmo quando elas nascem em outro lugar? E se essas crianças estão sendo mantidas pelo nosso governo?”. A denúncia da ACLU é categórica ao afirmar que crianças e adolescentes indocumentados, na época sob custódia da U.S. Border Patrol, relataram casos de humilhação e sessões de espancamento e tortura promovidas por autoridades policiais. Além de outros relatos de abuso e violação dos Direitos Humanos, como o de privação de alimentos, de falta atendimento médico e hospitalar, e, precárias condições dos alojamentos, onde não raras vezes faltavam colchões, cobertores, produtos de higiene e limpeza. O estudo aponta ainda que, apesar desses casos terem ocorrido durante o governo Barack Obama, acredita-se que estudos futuros deverão apontar para o recrudescimento dessas violações no primeiro ano da administração Donald Trump, devido sua política de intensificação do controle de fronteiras.
Na última década várias associações, instituições e Organizações Não-governamentais de acolhimento a imigrantes e transmigrantes indocumentados no México e nos Estados Unidos vêm alertando as autoridades de ambos os países para o crescimento considerável do fluxo de crianças e adolescentes que almejam cruzar a fronteira entre os dois países. Não foi publicado até o presente qualquer estudo consistente sobre os números desse fluxo infantil. Mas, sabe-se que ele tem sido cada vez mais constante e consistente, e, que, somente no último ano, cerca de 1500 crianças e adolescentes encontravam-se sob custódio do governo dos Estados Unidos.
Em sua maioria, são crianças e adolescentes com idades entre 9 e 16 anos advindos de países da América Central, como Honduras, Guatemala e El Salvador, que percorrem longas distâncias a fim de reencontrar familiares próximos nos Estados Unidos – em geral, o pai ou a mãe –, ou então, fugindo das ações violentas e de ameaças à vida promovidas por grupos pandilleros (gangues), pelo crime organizado, ou pelos próprios familiares em seus respectivos países. Elas viajam sozinhas ou em grupos pequenos cruzando de sul a norte o território do México em composições ferroviárias de carga, que ficaram conhecidas como “La Bestia”. Além dos riscos de quedas – quase sempre resultando em mortes ou mutilações – e dos constantes assaltos, também perpetrados por transmigrantes adultos, uma vez em território mexicano essas crianças e adolescentes são presas fáceis para grupos de narcotraficantes, sequestradores, exploradores sexuais e autoridades policiais inescrupulosas. Não raros são os casos de meninas e meninos transmigrantes raptados a fim de abastecer o mercado da prostituição infantil.
A questão da transmigração de crianças e adolescentes centro-americanos é urgente e demonstra que, em pouco mais de uma década de ocorrência do fenômeno, nada ou quase nada tem sido feito pelas autoridades políticas dos países envolvidos para que essa tragédia humanitária do século XXI seja estancada. Resumindo-se a ações que denunciam um perverso jogo de empurra-empurra. Assim, enquanto que, por um lado, as autoridades políticas de países como Honduras, Guatemala e El Salvador declaram não ter condições de investir e solucionar a explosão de violência em seus territórios, por outro, Estados Unidos e México tratam a situação apenas como caso de polícia e de segurança nacional, investindo bilhões de dólares anualmente no controle de suas fronteiras. Em 2014 – quatro anos atrás – a representação das Nações Unidas em Tegucigalpa, capital de Honduras, já expressava preocupação com relação ao fenômeno e garantia ajuda estratégica ao governo daquele país. Igualmente, declarava – ironia do destino – que reconhecia o esforço do então governo de Barack Obama em tratar a questão como “problema de emergência humanitária.” Contudo, tal como aponta o estudo, nem durante a era Obama, tampouco no primeiro ano de Donald Trump, a questão da transmigração de crianças e adolescentes tem sido encarada com serenidade e seriedade. O que há quatro anos era “problema de emergência humanitária” se avolumou, tornando-se – a meu ver – crise humanitária.
Essa crise humanitária não é problema deste ou daquele país. A solução definitiva para ela não pode ficar à mercê do cômodo jogo de empurra-empurra entre nações, tampouco de pirotécnicas ações populistas, tais como os bilhões de dólares investidos anualmente em ações policiais e de controle de fronteiras pelos governos Enrique Peña Nieto (México) e Donald Trump (Estados Unidos), e a mirabolante ideia de edificação de um muro separando países – promessa de campanha desse último. Essas crianças e adolescentes não são e não podem continuar sendo vistas e tratadas pelas autoridades políticas dos países envolvidos e pela ONU como meros imigrantes ou transmigrantes indocumentados. Basta! Elas são refugiadas. E, nesse caso, a mudança de denominação é de suma importância, pois compromete a ONU e os países signatários – entre os quais, todos os países acima elencados – a protegê-las sob o Estatuto dos Refugiados da Convenção de Genebra (Convenção de 1951 e Protocolo de 1967), que define como refugiado, em seu artigo 1º:
“Toda a pessoa que, em razão de fundados temores de perseguição devido à sua raça, religião, nacionalidade, associação a determinado grupo social ou opinião política, encontra-se fora de seu país de origem e que, por causa dos ditos temores, não pode ou não quer fazer uso da proteção desse país ou, não tendo uma nacionalidade e estando fora do país em que residia como resultado daqueles eventos, não pode ou, em razão daqueles temores, não quer regressar ao mesmo.”
O refúgio Peter’s Pan se consolida nesse início de século e milênio como uma das maiores – e, vergonhosamente, mais silenciadas pela mídia internacional – crises humanitárias das Américas. E assim deve ser encarada. Essas crianças e adolescentes não podem continuar sendo tratadas como caso de polícia ou por mecanismos de controle extensivo de fronteiras. Não devem dormir em abrigos parecidos como celas – ainda que em condições dignamente humanas – porque não são criminosos, tampouco ilegais. São refugiados! De igual modo, não devem ser deportadas porque – em muitos casos – correm risco de vida em seus países de origem. Elas devem ser acolhidas e reconhecidas pelos Estados-nação que cruzam ou de destino. Políticas de naturalização e programas especiais de atenção, saúde e educação para elas devem ser criados e direcionados. E, principalmente, urge a necessidade de cobrança e acompanhamento por parte de organismos internacionais que países como Honduras, Guatemala e El Salvador coloquem em marcha e cumpram programas sérios e eficientes que possam garantir a essas crianças o respeito aos seus direitos mais fundamentais, como à vida. Afinal, a vida e os direitos de uma criança – e de qualquer outro ser humano – devem ter o mesmo valor e garantias em qualquer lugar. Não importa nacionalidade, idade ou classe social. Precisamos urgentemente, à exemplo de Mamoudou Gassama, salvar também as vidas dessas crianças centro-americanas que dia após dia despencam do quarto, quinto ou décimo andar da sobrevivência por conta de políticos negligentes e negligentes políticas públicas.