Pressenza Brasil – Conte um pouco da sua história enquanto cineasta e de como surgiu a ideia para produzir o filme – “Isto não é um cachimbo”.

André Okuma – A minha história no cinema começou quase que por acaso, pois a cidade que eu nasci (Santo André no ABC Paulista) e cresci era uma cidade de trabalhadores metalúrgicos e meu pai e os pais dos meus amigos eram, portanto, trabalhadores da indústria e sempre achávamos que seríamos também trabalhadores metalúrgicos ou algo parecido. Mas nos anos 90 houve uma crise em que muitas indústrias fecharam ou se mudaram, não havia muitas perspectivas e otimismo sobre o futuro, no começo dos anos 2000 eu trabalhava como auxiliar de escritório, tinha terminado os estudos secundários e não tinha dinheiro para cursar uma universidade (não existiam as federais, prouni e etc), por causa disso, durante as noites eu não tinha muito o que fazer, então descobri que ao lado do meu trabalho tinha uma escola de teatro gratuita e resolvi fazer um curso de cenografia e figurino para ocupar o tempo, e adorei, foi um divisor de águas para mim esse contato com a arte, inclusive acabei me demitindo do meu emprego alguns meses depois, pois já tinha sacado o lance da alienação do trabalho a que eu estava submetido. Naquela época comecei a trabalhar como assistente de uma importante artista plástica da minha cidade e ela estava fazendo a direção de arte de um curta-metragem de uns amigos dela, acabei participando também, e me apaixonei por aquilo, a equipe deste curta-metragem era composta por alunos da primeira turma da Escola Livre de Cinema de Santo André, uma escola de cinema gratuita que tinha acabado de ser aberta, acabei me tornando aluno ouvinte e depois em 2004 ingressei oficialmente na segunda turma da escola. Depois disso naturalmente fui direcionando a minha vida no cinema, dando aulas, fazendo videoclipes, colaborando com outros diretores e por fim criando coletivos de produção de filmes.

Sobre o Isto não é um Cachimbo, ele é um média-metragem metalinguístico que mistura documentário e ficção usando elementos do cinema experimental e fantástico.

O filme em linhas gerais é uma reflexão sobre as políticas culturais de incentivo à produção artístico-cultural no Brasil e a construção da imagem da pobreza no audiovisual tendo como pano de fundo a Cracolândia de São Paulo, mais especificamente a figura de Cícero Rodrigues, conhecido como Badaróss.

O projeto do filme nasce de uma inquietação fundamental: as controvérsias em se fazer cinema através de editais e como as políticas públicas de cultura para o audiovisual impactam o cenário cinematográfico em sua forma e conteúdo, no qual uma elite (branca, hétero e masculina) tem historicamente sido formada nas poucas (caras e/ou concorridas) escolas e faculdades de cinema existentes, estes cineastas-empreendedores-burocratas adequados ao cenário audiovisual brasileiro, tornam-se especialistas em escrita de projetos para editais, e ao longo das últimas décadas tem transposto para as imagens em movimento toda a “realidade” sociocultural brasileira que emerge de programas de TV como o “Brasil Urgente” e/ou o “Esquenta”. Assim o cinema no Brasil tem se consolidado, colocando frases clichês nas bocas e estereotipando corpos de personagens que em suma são representações da classe trabalhadora com o verniz do discurso social e moralizante. Tudo devidamente carimbado, assinado e subsidiado pelo Estado e pelas grandes empresas “preocupadas com a cultura do país”. São hoje, portanto, sob a égide da “Sociedade do Espetáculo”, os porta-vozes da diversidade cultural e do imaginário brasileiro. Esta é a questão cerne do que me motivou a fazer este filme, é da constatação de que o Cinema feito no Brasil é em geral uma deturpação e uma amenização das tensões sociais, políticas e históricas brasileiras, no qual temos filmes que muitas vezes romantizam demais ou estereotipam demais a imagem do brasileiro pobre e trabalhador, forjando assim uma identidade cultural pautada por um olhar vertical e superficial da complexidade das tramas sociais que formam o Brasil, e pior, financiado pelo Estado.

Levando em consideração que nós do Núcleo de Cinema do Coletivo 308 estamos situados na cidade de Guarulhos – SP, uma cidade que não tem nem políticas públicas para o fomento à cultura, seja na formação, na produção e/ou na circulação de bens artísticos e culturais, e que estamos fora do sistema de artes (restrito praticamente ao centro expandido da cidade de São Paulo), situados portanto, nas bordas do pseudo mercado e do acesso aos editais. Percebendo como o Cinema presta em muitos casos um desserviço à cultura brasileira, tive uma crise ao ponto de cogitar não fazer mais filmes, mas acabei concluindo que se for pra fazer um filme neste mundo cheio de informação audiovisual problemática, que seja para fazer um contra-filme, o “Isto não é um cachimbo” é, portanto, um filme contra o cinema brasileiro, um filme que busca outras possibilidades produtivas, narrativas, políticas e estéticas como forma de encontrar respostas, ainda que vagas, sobre como e por quê ainda fazer cinema no Brasil.

P.B. – Conte um pouco sobre a produção do filme, quais foram seus maiores obstáculos e desafios?

A.O. O processo de pesquisa do filme começou no início de 2015, em meados daquele ano conheci o Badaróss, a ideia original foi mudada substancialmente e no início de 2016 o roteiro, a decupagem e a pré-produção estavam prontas, de março a maio de 2016 fizemos uma campanha crowdfunding e dei uma oficina de cinema para levantar recursos para o filme, gravamos entre julho e setembro de 2016, e estreamos em abril de 2017. Nesses pouco mais de 2 anos de processo houveram diversas dificuldades e desafios, pois era um projeto complexo e ambicioso em diversos sentidos. Desde o começo a ideia era retratar a espetacularização da miséria pelo Cinema, inicialmente era para ser um filme inteiro de ficção, ouvi falar do Badaróss pela primeira vez numa matéria da TV Folha, no qual usei como material para pesquisa, depois por acaso descobri que um amigo que trabalhava no programa “De Braços Abertos” na região da Craco o conhecia, e este amigo me apresentou a ele e sugeriu que o convidasse para participar do filme, a sugestão era incrível, conhecendo o Badaróss pessoalmente vi que ele era exatamente o personagem que eu vislumbrava no roteiro, mas foi exatamente esse o primeiro grande desafio, pois, como poderia fazer um filme que criticava exploração da imagem explorando a imagem de uma pessoa?  Inicialmente recusei essa possibilidade, porém a Reiko (produtora, diretora de arte e co-roteirista) sugeriu fazermos dois filmes, o nosso e um outro dele, em que ele roteirizasse e dirigisse, que ele tivesse liberdade absoluta pra fazer e falar o que quisesse, assumindo o seu lugar de fala (Este segundo filme atualmente está em fase de edição). Propusemos isso e ele aceitou, também queríamos pagar um cachê para ele, mesmo sem dinheiro pra fazer o filme, foi aí que surgiu a ideia de fazermos um crowdfunding.

A ideia do Crowdfunding também foi uma dificuldade, pois o filme também é uma crítica sobre as formas de financiamento públicas do jeito que elas são, e obviamente se tentássemos algum edital estaríamos sendo contraditórios e conceitualmente falando, pensar e articular formas alternativas financiamento seria cabível dentro do processo, porém, fazendo o crowdfunding percebemos que este tipo de ação é também tão problemática quanto os editais, porque exige também o emprego de uma extraordinária energia nas questões burocráticas, de marketing e de mendicância, foram dois meses de dedicação exaustiva na campanha, que assim como no lance dos editais, acaba-se deixando de lado um aprofundamento e amadurecimento das questões estéticas e de linguagem do projeto. Conciliar isto sem cair na armadilha da contradição também foi um aprendizado e tanto.

Outro desafio foi trabalhar propriamente com o Badaróss, pois a minha experiência no audiovisual é em ficção, e ter uma pessoa de carne, osso, alma e história acima do seu projeto é intimidador, ainda mais quando essa pessoa é o Badaróss, todas as contradições que o filme denuncia foram colocados à prova para mim, como eu iria lidar com a situação que eu critico? Vivi na pele a relação documentarista e documentado, imerso nas contradições e armadilhas que se encontram na intrínseca relação entre ética e estética, foi o maior desafio de todos, ainda é na verdade, pois, mesmo com o filme lançado, a minha relação com ele não acabou, e talvez acabe só quando morrermos.

Um desafio também que me propus a fazer era pensar modos de produção e criação que eu nunca tinha feito antes, como gravar cenas sem decupar, misturar gêneros cinematográficos, abrir totalmente o processo criativo com a equipe tentando horizontalizar ao máximo a direção, possibilitando assim mudanças de roteiro e projeto no meio do processo, criando muitas vezes situações que beiravam o caos, mas queria que fosse assim, quebrar os paradigmas, sair da zona de conforto para encontrar uma nova maneira de fazer filmes.  

Fora isso tivemos uma diversidade de contratempos no processo de produção, por exemplo, o carro quebrar no dia de gravação, o fotógrafo sair no meio do processo, a HD com material bruto parar de funcionar, fazer contas erradas e faltar dinheiro para o mínimo das necessidades, ter equipamentos roubados, locações agendadas desmarcarem no dia da gravação, etc e etc.

Mas de qualquer maneira, vejo as dificuldades e desafios como caminhos para encontrar outras maneiras de pensar a forma e o conteúdo de um filme, esse processo é sempre transformador, sempre saio diferente de um processo, essa imersão em reflexões estéticas e discursivas contrapostas à prática podem ser revolucionárias, encontro muitas respostas nestes processos criativos, porém, é também o mais difícil, porque exige muita disponibilidade, energia e e um pouco de coragem para encarar de frente a realidade, as contradições e as crises que a produção de filmes independentes e políticos podem implicar.

P.B. – Como está Badaróss hoje? Ele continua usando crack? Onde ele está vivendo?

A.O.  O Badaróss atualmente está morando em Petrolina PE, sua cidade natal, está junto com sua mãe, ele voltou para lá em setembro se não me engano, depois do fatídico ataque da polícia em maio e posteriormente com sua internação “quase” compulsória (em um momento de vulnerabilidade física e psicológica ele foi “convencido” a se internar), o Badaróss ficou receoso que algo ainda pior fosse acontecer e então ele decidiu voltar pra casa de sua mãe. Faz pouco mais de um mês que falei com ele pela última vez, ele disse que estava diminuindo o consumo de drogas e que o objetivo era parar totalmente, e que sua mãe o estava apoiando, estava pintando ainda, mas com menos intensidade porque não tinha dinheiro para comprar tintas, sabemos que o sertão nordestino é um lugar bastante complexo e problemático, e estar lá não quer dizer que ele encontrou final feliz, lá ele tem outras batalhas a enfrentar.

P.B. – Quais são os desafios para os produtores de filmes no Brasil?

A.O.  A minha visão sobre o audiovisual no Brasil é bastante crítica ao que vem sendo produzido nas últimas décadas, em geral é muito caro fazer filmes (se utilizarmos equipamentos profissionais e ter a equipe recebendo por seu trabalho) e no Brasil não há um mercado cinematográfico, pois, o público/mercado está acostumado a filmes estadunidenses e não brasileiros, ou seja, no Brasil é extremamente difícil conseguir através da bilheteria do filme nos cinemas o retorno financeiro que foi investido na produção de um filme, isso se ele conseguir uma sala de cinema, pois o problema da distribuição é ainda mais grave. No Brasil, cabe ao Estado financiar grande parte das produções audiovisuais, porém, há muitos problemas nas políticas públicas para o audiovisual, muito se deve a um excesso de burocracia e a participação da iniciativa privada na escolha dos filmes que serão produzidos (Lei do Audiovisual e Rouanet), isso acaba restringindo a participação de uma pequena parcela de cineastas que estão mais preparados academicamente, profissionalmente e socialmente, em geral cineastas que tiveram tempo, dinheiro e contatos para conduzir suas carreiras, excluindo assim outros cineastas mais periféricos, autodidatas, oriundos da classe trabalhadora e que também tem trabalhos mais críticos e experimentais, resultando na prática, uma produção de filmes muito bem feitos tecnicamente, porém superficiais. No atual momento histórico temos ainda o crescimento da onda conservadora e do patrulhamento ideológico, o desmonte do pouco que havia em políticas públicas para a cultura com a diminuição e corte de orçamentos fundamentais para o fomento, o desmonte na educação superior e a institucionalização da precarização do trabalho, que no setor audiovisual já era ruim.  É notório que daqui pra frente o cinema brasileiro (com a exceção da Globo Filmes) entrará em uma crise, porém, nós que sempre estivemos na margem não muda muito, continuaremos produzindo com nada, o nosso principal desafio creio que seja a distribuição, como tornar acessível nosso trabalho para os nossos, o povo, e não a elite intelectual-cinéfila de festivais de cinema e bares da Vila Madalena.

 

*Fim da entrevista

 

Veja imagens dos bastidores da produção do filme “Isto não é um cachimbo”

Imagens Coletivo 308.