por Felipe Honorato
No dia 26 de outubro de 2017, cumprindo rigorosamente o prazo de 1 ano estabelecido pelo Estatuto de Roma, o Burundi, país africano que era membro do Tribunal Penal Internacional (TPI) desde 2004, oficializou sua saída desta corte internacional. Tal ação ganha ares históricos, pois o Burundi tornou-se, com isso, o primeiro Estado membro do TPI a abandonar a organização e se juntou a um pequeno grupo de nações que não são signatárias do Estatuto de Roma, normativa que regulamenta o tribunal: Estados Unidos da América, Rússia, China e Índia são os demais países.
O poder executivo burundês havia assinado a saída do país do TPI em 26 de outubro de 2016 e, logo em seguida, o país solicitou sua saída derradeira do tribunal para o então secretário geral das Nações Unidas, Ban Ki-moon.
O que está em jogo com a saída do Burundi do TPI?
O Tribunal Penal Internacional foi criado em 2002 e faz parte dos organismos sob responsabilidade da Organização das Nações Unidas (ONU). Sediado em Haia, na Holanda, esta corte internacional, que contra com 122 membros (34 deles africanos), configura-se como único organismo internacional permanente que combate o genocídio e crimes de guerra e contra a humanidade.
Desde 2015, o Burundi vêm passando por uma violenta crise, desencadeada pela decisão de seu atual presidente, o ex-guerrilheiro Hutus (maioria étnica no país) Pierre Nkurunziz, de passar por cima da constituição, que prevê o direito a apenas uma reeleição para o cargo de presidente, e concorrer a um terceiro mandato – Pierre acabou por vencer o pleito eleitoral realizado no último julho, após um boicote da oposição.
Já em 2015, em forma de uma investigação prévia, o TPI começou a averiguar uma onda de crimes, iniciadas em abril deste mesmo ano, que incluem homicídios, prisões, torturas e violência sexual alegadamente cometidos no Burundi por agentes estatais e membros da Imbonerakura, ala jovem do partido político de Nkurunziz. As estimativas, para estes mais de dois anos de violência, são que 1200 pessoas foram mortas e outros milhares estão desaparecidas; todas as vítimas são da oposição ou se manifestaram contra o atual presidente. Além disso, todo este tumulto gerou, neste mesmo período, o deslocamente de mais de 400 mil pessoas.
Ainda em 2017, uma comissão da ONU fez um pedido para que o Tribunal Penal Internacional acelerasse seu trabalho, pois fora constatado que as violações continuavam a ocorrer no país africano. Porém, o inquérito é trabalhoso: envolve mais de 500 testemunhas que identificaram membros das forças de segurança do país e integrantes do serviço nacional de informação como suspeitos dos crimes.
Segundo declaração do vice-diretor da Human Rights Watch, Param-Preet Singh, “a retirada do TPI é apenas o último exemplo dos deploráveis esforços do governo do Burundi para proteger da punição da justiça aqueles que são responsáveis por graves violações dos direitos humanos”. Já a reporter da BBC Anna Holligan, correspondente do veículo em Haia, lembrou de um perigoso precedente que se abriu com o a decisão do Burundi: “a decisão burundinesa de sair é sem precedentes – uma declaração de que se você não gosta do foco da acusação, você pode simplesmente deixar a organização”; ela ainda ponderou: “o impacto real – e se ele irá ou não criar um efeito dominó – será determinado pelo que irá acontecer a seguir”.
Fadi El-Abdallah, porta-voz do Tribunal Penal Internacional, afirmou, em entrevistas após a oficialização da saída do Burundi, que as investigações sobre os crimes cometidos no país irão continuar, uma vez que o artigo 127 do Estatuto de Roma garante a jurisprudência do tribunal sobre infrações cometidas por países membros da corte até a data de seu desligamento oficial da instituição.
Repercussão
No dia 27 de outubro, assim que o Burundi foi oficialmente declarado desligado do TPI, o governo do país incitou que a população fosse às ruas comemorar o fato; na capital, Bujumbura, 5 mil pessoas marcharam em comemoração, percorrendo um trajeto que passou pelas embaixadas de Ruanda, da Bélgica e da União Européia, terminando na praça da Independência. Aimee Laurentine Kanyana, ministra da Justiça burundinesa, defendeu que a retirada foi uma “grande conquista” e pediu que “a polícia e justiça do país respeitem os direitos humanos para que os brancos não tenham provas falsas contra o Burundi”.
Lambert Nigarura, presidente da “Coalizão Burundi pelo TPI”, disse que “hoje, a justiça do Burundi, como é chamada, perdeu contato com a vida. Ela se tornou uma mera ferramenta de repressão de qualquer voz dissidente” e arrematou comentando que a decisão de saída veio em um tempo em que “a máquina continua a matar com impunidade no Burundi”.
Já Catherine Ray, porta-voz da Alta Repressentante da União Européia para Política Externa e Segurança, Frederica Mogherini, em entrevista para a Deutsche Welle, declarou que a decisão do Burundi é “um passo em direção ao retrocesso” e que “arrisca ainda mais isolar o país na comunidade internacional”, como uma de suas consequências.
TPI e África: inimizade de longa data
Quando da criação do Tribunal Penal Internacional, no início dos anos 2000, os países africanos apoiaram, de forma maciça, a então recém criada organização internacional. Isto porque havia um descrédito generalizado nos sistemas de justiças nacionais dentro do continente e o TPI era visto como uma instância a se contar contra os chamados “senhores da guerra”. Com o passar do tempo, a realação foi se desgastando e surgiram, por parte dos africanos, acusações de racismo, seletividade e neocolonialismo contra o TPI. Nos últimos dois anos, os desentendimentos entre o tribunal e a África tem passado por um pico: Além da saída do Burundi, neste ano, em 2015 a África do Sul se negou a prender Omar El Bashir, presidente do Sudão que tinha uma ordem de prisão expedida pelo Tribunal Penal Internacional desde de 2009 por crime de genocídio no Darfur e estava no país para participar de uma cúpula da União Africana (UA). Em fevereiro deste ano, a própria UA, em uma reunião, havia pedido para que seus membros saíssem em massa do TPI, resolução que, à época, contou apenas com a oposição do Senegal e Nigéria.
No mesmo período em que o Burundi deu o ponta pé para seu processo de retirada, África do Sul, Gâmbia e Uganda agiram da mesma forma; a África do Sul acabou por revogar sua saída em março deste ano, enquanto a Gâmbia, após a mudança de presidente, optou também por permanecer. Quênia e Namíbia adotaram resoluções para sair, mas, até o presente momento, nada em direção a isto fora feito em ambos os países. A Zâmbia cogitou deixar a corte internacional e realizou uma consulta pública para saber de seus cidadãos se eles gostariam ou não que o país permanecesse no Tribunal Penal Internacional; a permanência venceu com uma maioria de 93% dos votos.