Uma das evidências que confirma o “declínio” das florestas tropicais no mundo é que a “taxa de desmatamento no primeiro decênio deste século foi 62% maior que no último decênio do século passado, e desde 2011 constata-se uma aceleração dessa aceleração, sobretudo na Ásia e na Oceania”, adverte o historiador Luiz Marques à IHU On-Line.
No Brasil, afirma, embora tenha havido uma diminuição da taxa de desmatamento em quase uma década, “o desmatamento voltou a crescer, atingindo 7.989 km² nos 12 meses entre agosto de 2015 e julho de 2016”. Apenas depois da implantação do novo código florestal em 2012, informa, “houve um aumento de 75% na taxa anual de desmatamento”. Na avaliação de Marques, isso ocorreu porque “o governo de Dilma Rousseff após 2012 entregou a Amazônia e o Cerrado à sanha destruidora dos ruralistas. Só o governo de Michel Temer consegue agora nos convencer de que não há de fato um limite absoluto para a piora”.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail para IHU On-Line, Marques explica os fatores associados ao aumento do desmatamento das florestas tropicais e assinala que a globalização do capitalismo “transformou definitivamente a alimentação em commodities, negociadas nos mercados futuros. Nesse âmbito, o avanço das pastagens para o gado bovino, estimulado pelo aumento do carnivorismo no Brasil e no mundo todo, é, de longe, a principal causa do desmatamento”. Associado a esse fator, o aumento das secas e do aquecimento global está “levando as árvores à falência hidráulica por cavitação ou embolia vegetal, um fenômeno conhecido pelo termo dieback”, diz.
Luiz Marques lembra que as florestas são “imprescindíveis para a vida no planeta” porque “são fundamentais para o ciclo do carbono, para retardar a velocidade e amenizar as mudanças climáticas, para a manutenção dos recursos hídricos, para a regularização das chuvas, para a conservação dos solos etc.”
IHU On-Line – Como são feitas as projeções sobre qual será o estado das florestas nos próximos anos, como 2030 e 2050?
Luiz Marques – Por definição, projeções são feitas a partir de trajetórias observadas. Qualificam-se e quantificam-se os diversos dados e fatores conhecidos dos quais a forma da curva já observada é a resultante. A partir dessa análise, que inclui aceleração, manutenção ou desaceleração, causas diretas e indiretas ou sistêmicas, respostas do próprio ecossistema às pressões observadas (sua capacidade maior ou menor ou mesmo incapacidade de regeneração), detecção de regiões de concentração do desmatamento (hotspots), demandas do mercado, legislação, entre outros muitos fatores, criam-se então cenários futuros, quando possível com determinação de sua probabilidade e com margens de erro. Estes vão desde o mais pessimista ao mais otimista, passando pela manutenção do cenário de base (business as usual).
Há várias projeções em pauta. Em geral, as projeções de curto prazo (15 a 35 anos) e, portanto, de maior confiabilidade, convergem para um quadro de declínio continuado, ou mesmo de ainda maior aceleração, da área, da integridade, da funcionalidade e da resiliência das florestas em escala global. O WWF, por exemplo, projeta que os cinco países asiáticos banhados pelo rio Mekong — Cambodia, Laos, Myanmar, Tailândia e Vietnã —, que perderam em média um terço de suas florestas nos últimos 35 anos, poderão ter em 2030, a se manter o ritmo atual da devastação, apenas entre 10% e 20% de sua cobertura florestal original (veja-se “Saving Forests at Risk”. WWF Living Forests Report. Capítulo 5). A Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico – OCDE afirma: “As florestas primárias, mais ricas em biodiversidade, devem perder até 2050 13% de sua área. As florestas primárias (…) têm decaído e estima-se que diminuirão constantemente até 2050, mantido o cenário de base” (veja-se: OECD Environmental Outlook to 2050: The Consequences of Inaction, 2012, pp. 22 e 157).
IHU On-Line – Qual é a situação das florestas tropicais no Brasil em comparação com a situação mundial?
Luiz Marques – O declínio das florestas tropicais como um todo está se acelerando. Trata-se de uma situação extremamente grave. A taxa de desmatamento no primeiro decênio deste século foi 62% maior que no último decênio do século passado, e desde 2011 constata-se uma aceleração dessa aceleração, sobretudo na Ásia e na Oceania. No que se refere ao Brasil, após uma diminuição notável da taxa de desmatamento da Amazônia entre 2004 e 2012 (de 27.774 km², entre agosto de 2003 e julho de 2004, para 4.656 km² entre agosto de 2011 a julho de 2012, segundo dados do INPE), o desmatamento voltou a crescer, atingindo 7.989 km² nos 12 meses entre agosto de 2015 e julho de 2016. Desde a implantação do novo código florestal em 2012, houve um aumento de 75% na taxa anual de desmatamento. O governo de Dilma Rousseff após 2012 entregou a Amazônia e o Cerrado à sanha destruidora dos ruralistas. Só o governo de Michel Temer consegue agora nos convencer de que não há de fato um limite absoluto para a piora.
IHU On-Line – No Brasil, as florestas tropicais são responsáveis por que percentual da cobertura vegetal do país?
Luiz Marques – Depende do que se entende por florestas tropicais e do momento escolhido para definir essa porcentagem. Apenas no que se refere à floresta amazônica, dados do IBGE/PRODES para o período 1970-2013 indicam uma perda da ordem de 22% de sua área, 763 mil km² ou, por amor de precisão, 762.979 km². Em julho de 2016, totalizamos uma perda total, por corte raso, de 782.187 km². A cada ano, portanto, esse percentual diminui significativamente. Até 2020, teremos provavelmente perdido pouco mais ou menos de 800 mil km², mantida a trajetória atual. E isso sem falar na destruição já ocorrida de cerca de metade da área do Cerrado, e da destruição da Caatinga e dos resíduos da Mata Atlântica.
IHU On-Line – O senhor aponta, como causas do declínio das florestas, pelo menos duas razões: o avanço da fronteira agropecuária e o sistema climático. Pode nos explicar por que e de que modo esses dois eventos têm implicações diretas sobre as florestas?
Luiz Marques – Na realidade, os fatores são múltiplos. Mas o mais importante é a globalização do capitalismo que transformou definitivamente a alimentação em commodities, negociadas nos mercados futuros. Nesse âmbito, o avanço das pastagens para o gado bovino, estimulado pelo aumento do carnivorismo no Brasil e no mundo todo, é, de longe, a principal causa do desmatamento. Historicamente, na Amazônia, mais de 80% do desmatamento é causado pela pecuária, e a figura abaixo mostra a íntima correlação entre pecuária e desmatamento nessa região entre 1988 e 2004.
Mas, além do desmatamento por corte raso, para dar lugar à soja e ao pasto, outros fatores concorrem para a destruição das florestas: as hidrelétricas, a mineração, a extração de madeira, a caça, o tráfico de espécies silvestres, as estradas e o avanço da urbanização e da indústria do turismo. Esses fatores causam degradação e fragmentação das florestas, aumento das linhas de borda, maior exposição à insolação e ao ressecamento pelos ventos e maior vulnerabilidade a incêndios (na maior parte provocados por fazendeiros) e defaunação, com diminuição dos animais dispersores de sementes.
Mudanças climáticas
E há, enfim, as mudanças climáticas, em particular a ação combinada do aquecimento global e de secas maiores e mais recorrentes. Associados à ação destrutiva direta do agronegócio, das corporações mineradoras e de outras corporações, esses fatores climáticos estão levando as árvores à falência hidráulica por cavitação ou embolia vegetal, um fenômeno conhecido pelo termo dieback. Temperaturas mais elevadas (que fazem aumentar a transpiração das árvores) e/ou maior carência de água no solo levam as raízes das árvores a bombear mais intensamente água ao longo de seu sistema vascular. Uma consequência importante desse mais intenso bombeamento é a formação de bolhas de ar em seus xilemas (o tecido por onde circula a seiva), que diminuem ou bloqueiam a condução hidráulica.
O exame de 226 espécies de árvores pertencentes a diversos tipos de florestas de 81 diferentes latitudes do planeta mostra que 70% delas já operam com estreitas margens de segurança em relação à diminuição da umidade, de modo que a intensificação das secas em várias regiões do globo prevista pelos modelos climáticos pode lhes ser letal. “Todas as árvores e todas as florestas do globo”, afirma Hervé Cochard, um ecofisiologista da Université Blaise Pascal de Clermont-Ferrand e do Institut National de Recherche Agronomique – INRA de Avignon, “estão vivendo no limite de sua ruptura hidráulica. Há, portanto, uma convergência funcional global da resposta desses ecossistemas às secas”.
Em suma, estamos caminhando para o desaparecimento ou degradação irreversível desses ecossistemas num horizonte de tempo que não ultrapassa, em muitos casos, a primeira metade do século.
IHU On-Line – É possível conciliar a preservação das florestas com o desenvolvimento da agropecuária? O que seria adequado para o caso brasileiro nesse sentido?
Luiz Marques – Não há quadratura do círculo. A “solução”, por vezes proposta, de confinamento do gado bovino implica, além de um sofrimento ainda maior desses animais, algo a meu ver eticamente inaceitável, uma alimentação baseada em ração, o que supõe um aumento da área agrícola para o cultivo dessa ração (com mais desmatamento), além de uso crescente de hormônios e antibióticos “preventivos”, problemas insuperáveis de gestão dos resíduos, entre outros. A única solução é a adoção de outro regime alimentar, uma alimentação sem carne ou com muito menos carne, o que traria, de resto, benefícios tangíveis à saúde humana.
IHU On-Line – Em um artigo recente, o senhor informa que a perda anual de florestas nos países tropicais, com exceção do Brasil e da Indonésia, praticamente dobrou nesses 14 anos, passando de pouco mais de 31 mil km² em 2001 para pouco mais de 61 mil km² em 2014. Quais são as razões desse aumento? Como esses países estão lidando com essa questão?
Luiz Marques – No caso da Ásia e da Oceania, os fatores preponderantes são o cultivo do óleo de palma e a extração de madeira. Também na África esses fatores começam a atuar de modo expressivo, à medida que o continente se insere no agronegócio global. As políticas adotadas pelos países concernidos devem ser avaliadas por seus efeitos. A se admitir que sejam mais que simples propaganda, não são objetivamente, ao menos até agora e num futuro previsível, de natureza a inverter a curva do desmatamento.
IHU On-Line – Vários estudos chamam atenção para a diminuição do número de florestas no mundo. Quais são as implicações práticas da redução florestal?
Luiz Marques – Em 2014, a FAO lançou um documento chamado “Não podemos viver sem florestas”. É a simples e incontornável verdade. As florestas são imprescindíveis para a vida no planeta. Não apenas por serem o lar de (ainda) 80% da biodiversidade terrestre, mas porque são fundamentais para o ciclo do carbono, para retardar a velocidade e amenizar as mudanças climáticas, para a manutenção dos recursos hídricos, para a regularização das chuvas, para a conservação dos solos etc. Nosso sistema econômico, baseado no imperativo da expansão e do lucro, tem destruído as florestas a uma velocidade vertiginosa, sem perceber, em sua ganância, arrogância e ignorância, que estamos destruindo os alicerces sobre os quais a biosfera, e portanto nossas sociedades, se sustentam.
IHU On-Line – Que tipo de ação global poderia ser adotada para reverter o atual prognóstico em relação às florestas? O Acordo de Paris, do ponto de vista climático, lhe parece uma boa iniciativa?
Luiz Marques – Em seu compromisso (INDC) firmado no Acordo de Paris, o Brasil prometeu zerar o desmatamento ilegal e restaurar 120 mil km² de florestas até 2030. O custo dessa restauração foi recentemente avaliado entre 30 e 50 bilhões de reais. Não é nada se pensarmos na relação custo/benefício. Mas alguém acredita que o Estado brasileiro, se continuar dominado pelo agronegócio e por outros interesses corporativos, cumprirá essas promessas? Só os que amam se autoenganar.
Objetivos do Desenvolvimento Sustentável
O mesmo pode-se dizer do Objetivo 15 dos nobres 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, também assinado em 2015 pelo Brasil. Esse Objetivo propõe um manejo sustentável das florestas, combate à desertificação, reverter a degradação do solo e a perda da biodiversidade. Nada disso é atingível no quadro atual das relações de força entre os interesses da sociedade e os interesses dos grandes conglomerados que dominam os fluxos estratégicos de investimento. Uma ação global capaz de nos desviar da trajetória de colapso da biosfera e de mudanças climáticas catastróficas deve começar pela admissão da extrema gravidade das crises socioambientais contemporâneas. Adotar essa premissa significa se compenetrar de que há risco real, crescente e iminente de inviabilização de qualquer sociedade organizada já no horizonte dos próximos decênios. Significa entender, de fato (e não apenas em palavras), que o futuro da atual geração e das próximas será pior ou muito pior que o presente se não tomarmos em mãos nosso destino, o que supõe arrebatá-lo do controle das elites econômicas. Se de fato entendermos que o que está em jogo é a existência mesma de nossas sociedades neste século, as soluções políticas e tecnológicas aparecerão.
Essas soluções passam todas, em todo o caso, por uma democratização radical da sociedade. Mas se continuarmos a pensar que a natureza é apenas um subsistema do sistema econômico, se continuarmos imersos em nossa ilusão antropocêntrica e hipnotizados pelo discurso hegemônico de que o crescimento econômico é a “saída”, como é ainda a crença da maior parte dos economistas, então estamos condenados a um colapso socioambiental de proporções ainda imponderáveis, mas, de qualquer forma, terrivelmente doloroso para os jovens de hoje.