Depois de dois anos de recessão, aumento do desemprego e queda real dos salários, “a chaga da miséria se torna novamente uma questão no nosso país”, diz a economista Nathalie Beghin à IHU On-Line. Segundo ela, em 2015 “9,2% de famílias tinham o rendimento per capita inferior a um quarto de salário mínimo, um dos indicadores de medição da fome. Em 2014, essa proporção era de 7,9%, o que corresponde a um aumento de 16% em apenas um ano”. Ela informa ainda que a redução no salário real dos brasileiros “foi da ordem de 3,7% em 2015, e a situação só vem se agravando de lá para cá”. A tendência, afirma, é que o número de pessoas vivendo na pobreza extrema aumente “entre 2,5 milhões e 3,6 milhões até o final de 2017”.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, a economista também comenta o compromisso do Brasil com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável – ODS em relação à erradicação da pobreza, segurança alimentar, e outras temáticas, e afirma que no “âmbito federal” “tudo tem sido feito para descumprir os ODS”. Como exemplo, ela menciona a emenda constitucional que congela os gastos públicos por 20 anos. A medida, diz, “irá diminuir em termos reais os recursos disponíveis para saúde, educação, assistência social e segurança alimentar e nutricional, entre outros”. Os cortes orçamentários, afirma, afetarão “proporcionalmente mais as políticas voltadas para os mais vulneráveis”.

IHU On-Line – Que medidas o Brasil tem desenvolvido desde que assinou os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável – ODS?

Nathalie Beghin – Em setembro de 2015, foram concluídas as negociações que culminaram na adoção dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável – ODS [1] , por ocasião da Cúpula das Nações Unidas para o Desenvolvimento Sustentável, realizada em Nova York. O processo foi iniciado em 2013, seguindo mandato emanado da Conferência Rio+20: neste marco, os ODS deverão orientar as políticas nacionais e as atividades de cooperação internacional até 2030, sucedendo e atualizando os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio – ODM.

Chegou-se a um acordo que contempla 17 Objetivos e 169 metas, envolvendo temáticas diversas, como erradicação da pobreza, segurança alimentar e agricultura, saúde, educação, igualdade de gênero, redução das desigualdades, energia, água e saneamento, padrões sustentáveis de produção e de consumo, mudança do clima, cidades sustentáveis, proteção e uso sustentável dos oceanos e dos ecossistemas terrestres, crescimento econômico inclusivo, infraestrutura e industrialização, governança, e meios de implementação.

O Brasil vinha tendo papel de destaque na construção dos ODS: sediou a primeira Conferência sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (Rio 92), bem como a Conferência Rio+20, em 2012. Ademais, apresentou resultados em geral satisfatórios no cumprimento dos ODM [2] . Neste contexto, almejava-se que assumiria liderança na promoção da Agenda 2030. No entanto, não é o que está acontecendo. A despeito de algumas medidas formais e pontuais, como a criação, em outubro de 2016, de uma Comissão Nacional para os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável [3] — que ainda não se reuniu — e de associação entre o Plano Plurianual (PPA 2015-2018) e os ODS — trabalho inconcluso —, até agora nada de substantivo foi feito. Ao contrário, tudo tem sido feito para descumprir os ODS, pelo menos em âmbito federal.

O Inesc vem mostrando, por meio de uma série de notas e textos [4] , que todas as medidas implementadas nos últimos meses pelo poder público irão resultar, única e exclusivamente, na violação de direitos dos que menos têm e, consequentemente, no não cumprimento dos ODS. A emenda constitucional que congela os gastos públicos por 20 anos irá diminuir em termos reais os recursos disponíveis para saúde, educação, assistência social e segurança alimentar e nutricional, entre outros; os cortes orçamentários que afetam proporcionalmente mais as políticas voltadas para os mais vulneráveis; a reforma trabalhista que irá resultar na precarização das relações de trabalho e na diminuição da renda dos trabalhadores e das trabalhadoras; a reforma da Previdência que penalizará a base da pirâmide e, especialmente, mulheres e negros.

Especialistas, dentre os quais Luciana Jaccoud, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – Ipea, mostram que a reforma da Previdência irá excluir da aposentadoria 44% das mulheres urbanas ocupadas, além de aumentar as desigualdades entre homens e mulheres e de elevar a desproteção no campo. Estima-se a exclusão de 60% a 80% dos que se aposentariam [5] .

As medidas de flexibilização das leis ambientais que impactarão os povos indígenas e os povos e comunidades tradicionais; a reforma ministerial que ceifou a institucionalidade voltada para os excluídos (dos agricultores familiares com a extinção do Ministério do Desenvolvimento Agrário; das mulheres com a extinção da Secretaria de Políticas para as Mulheres; dos negros com a extinção da Secretaria de Igualdade Racial; e dos povos indígenas com o esvaziamento da Funai); e o aumento de impostos indiretos (PIS e Cofins nos combustíveis) que agrava a regressividade da carga tributária fazendo com que os mais pobres paguem proporcionalmente mais, são alguns exemplos dos retrocessos que inviabilizam o cumprimento dos ODS.

À extorsão dos mais vulneráveis somam-se as benesses concedidas aos mais ricos: juros elevados para os rentistas, o direito de invadir terras indígenas e florestas para expansão do agronegócio e das mineradoras; o perdão de dívidas de grandes empresas; a privatização de serviços públicos que abre novos mercados para o setor privado; e a implementação de parcerias público-privadas que transformam a infraestrutura, em todos os níveis federativos, na nova fronteira de acumulação e lucratividade para investidores nacionais e estrangeiros. Enfim, eliminam-se os obstáculos (institucionais, sociais, ambientais, culturais e trabalhistas) que possam postergar ou afetar a rentabilidade esperada pelo setor empresarial.

Vê-se, pois, de maneira irônica e trágica, que o governo brasileiro está inaugurando uma nova agenda, a agenda dos “Objetivos das Desigualdades Sustentáveis”… Trata-se de aumentar a pobreza, promover a insegurança alimentar e nutricional, piorar as condições de saúde e de educação, agravar a discriminação contra as mulheres, piorar as condições de acesso à água e saneamento, desproteger os trabalhadores por meio do trabalho indecente, enfraquecer a indústria nacional, aumentar as desigualdades, tornar as cidades insustentáveis, promover padrões de produção e consumo predadores, aumentar o aquecimento global, destruir o meio ambiente, aumentar a violência e tudo isso graças a parcerias com o setor privado e meios de implementação que reduzem despesas públicas!

IHU On-Line – Quais são as evidências que mostram que o Brasil está retrocedendo em relação à erradicação da fome?

Nathalie Beghin – Organizações, nacionais e internacionais, públicas e da sociedade civil, vêm revelando que a pobreza e a fome estão recrudescendo no Brasil. Essas informações nos entristecem, e muito, pois o nosso país já foi referência internacional na eliminação da fome. Tal feito foi atestado pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura – FAO, em 2014.

Segundo o IBGE, 9,2% de famílias tinham em 2015 o rendimento per capita inferior a um quarto de salário mínimo, um dos indicadores de medição da fome. Em 2014, essa proporção era de 7,9%, o que corresponde a um aumento de 16% em apenas um ano [6] . Como a redução da pobreza no Brasil nos últimos anos esteve fortemente atrelada à melhora real dos rendimentos, e que estes vêm caindo desde 2014 [7] , a chaga da miséria se torna novamente uma questão no nosso país. O Banco Mundial diz a mesma coisa. Em estudo publicado recentemente, o Banco calcula que o número de pessoas vivendo na pobreza extrema deverá aumentar entre 2,5 milhões e 3,6 milhões até o final de 2017 [8] .

Organizações da sociedade civil vêm produzindo dados na mesma direção. A Fundação Abrinq lançou relatório que evidencia que cerca de 6 milhões de crianças vivem atualmente na pobreza extrema [9] , o que equivale a toda a população da cidade do Rio de Janeiro! Já a Oxfam Brasil nos informa que apenas seis homens brancos detêm renda equivalente à metade mais pobre da população brasileira, isto é, a de 100 milhões de pessoas [10] !

IHU On-Line – Quais diria que são os principais fatores que têm contribuído para o agravamento desse cenário? Recentemente algumas organizações divulgaram um relatório chamando atenção para a possibilidade de o Brasil retornar ao Mapa da Fome. Quais são os riscos, na sua avaliação?

Nathalie Beghin – A crise econômica que se abateu sobre o país sem dúvida não ajuda. Foram dois anos de recessão, da ordem de 4% ao ano, acompanhados do aumento do desemprego e da queda real dos salários. Segundo a Organização Internacional do Trabalho – OIT, o trabalhador brasileiro sofreu em 2015 a maior queda de salários em termos reais entre os países do G20 e entre os países das Américas [11] . Ainda de acordo com a OIT, a redução no salário real dos brasileiros foi da ordem de 3,7% em 2015, e a situação só vem se agravando de lá para cá [12] .

Somam-se a essa situação já dramática as medidas de austeridade implementadas pelo governo Temer com o aval do Congresso Nacional. Tais medidas, listadas anteriormente, não somente agravam a crise, pois contribuem para desinvestimentos na economia e para retração do consumo, como tornam a grande maioria dos brasileiros e das brasileiras cada dia mais vulneráveis. O encolhimento do nosso Estado de bem-estar social, associado a uma população que cresce, irá resultar em anomia social. O descrédito crescente em um sistema político que beneficia poucos, o aumento da violência, da pobreza, da fome e a piora das condições de vida de grande parte da população podem nos levar a uma situação extrema, na qual pode-se acabar elegendo para presidente da República um fascista ou um aventureiro. A situação na qual está mergulhada o Brasil hoje é extremamente dramática.

IHU On-Line – Nos últimos anos o Brasil se orgulhava de ter reduzido os índices de miséria e pobreza, e chegou a ser visto como um exemplo de êxito na aplicação de políticas públicas de combate à fome e de segurança alimentar e nutricional. Hoje, menos de uma década depois, a preocupação em relação à fome e à insegurança alimentar volta a rondar o país. Que balanço a senhora faz em relação a essas questões, considerando as políticas que foram tomadas na direção de erradicar a miséria, a pobreza e a fome, e a situação que o país vive hoje? Quais foram os erros e acertos ao lidar com essas questões?

Nathalie Beghin – É verdade que, de uma maneira geral, o Brasil tinha posto em marcha uma série de medidas que resultaram na diminuição da fome, da pobreza extrema e da insegurança alimentar e nutricional. Foi um conjunto abrangente e articulado de ações que funcionou virtuosamente, podendo-se destacar o aumento real do salário mínimo; o crescimento da formalização do mercado de trabalho; a maior disponibilidade de crédito subsidiado; o aumento de programas de transferência de renda, como o Benefício de Prestação Continuada – BPC e o Programa Bolsa Família; a expansão da cobertura e o aumento do valor dos benefícios da previdência privada; e as políticas de cotas — sociais e raciais — no ensino superior, fator importante para a mobilidade social, entre outras medidas. Como mencionado anteriormente, tudo isso resultou em 2014 no anúncio pelas Nações Unidas de que o Brasil tinha saído do Mapa da Fome global.

Contudo, apesar desses indiscutíveis avanços, ainda tínhamos e temos muitas chagas. A desnutrição e a fome atingem expressivos contingentes dos povos indígenas e de outros povos e comunidades tradicionais. Por exemplo, segundo dados do Ministério do Desenvolvimento Social – MDS, mais da metade (55,6%) dos adultos quilombolas estão em situação de insegurança alimentar no Brasil, e o percentual fica em 41,1% incluídos as crianças e os adolescentes [13] . Em relação aos povos indígenas, os dados mais recentes, resultantes do I Inquérito Nacional de Saúde e Nutrição dos Povos Indígenas, realizado pela ENSP/Fiocruz em 2009 [14] , revelam que a desnutrição é um dos principais problemas de saúde pública das crianças indígenas menores de cinco anos: cerca de um em cada três sofre de desnutrição. São números que envergonham o Brasil.

Além disso, se por um lado estávamos melhorando os indicadores de fome, por outro nos descuidamos e deixamos crescer, de maneira assustadora, outras formas de insegurança alimentar e nutricional que são extremamente perversas: o sobrepeso e a obesidade. No Brasil dos dias de hoje, mais da metade da população tem sobrepeso e 20% é obesa [15] . Estamos entre os países mais obesos do mundo, atrás de Estados Unidos, México, China, Índia e Rússia. São males que afligem todos e todas, mas também os mais pobres. Essas manifestações de uma alimentação inadequada estão na origem de doenças como diabetes, alguns cânceres e problemas do coração que matam milhares de pessoas por ano.

O sobrepeso e a obesidade são decorrentes de modelos de produção e consumo de alimentos insustentáveis, baseados na agricultura patronal, no consumo de alimentos ultraprocessados, no empobrecimento da dieta, pois a população que acaba se alimentando de calorias baratas e nocivas (açúcares e gordura, especialmente), no sedentarismo decorrente de longas jornadas de trabalho que incluem horas no trânsito, e na expulsão de camponeses, indígenas e povos e comunidades tradicionais de suas terras, entre outras causas.

O desafio agora é combater, ao mesmo tempo, a falta de alimentos, a fome e o excesso de alimentos de má qualidade, o sobrepeso e a obesidade.

IHU On-Line – O que seria uma política adequada para enfrentar a pobreza e garantir uma melhor distribuição de renda no país?

Nathalie Beghin – É uma pergunta complexa que não possui resposta simples, pois na realidade trata-se de um projeto de país, de nação. Podemos aqui alinhavar alguns grandes eixos, sem os quais avaliamos que não haverá mudanças substantivas. É preciso reformar o sistema político [16], para que o povo brasileiro, na sua diversidade, de classe, raça/etnia, gênero, orientação sexual, região e cultura se sinta efetivamente representado, o que não é o caso hoje com um Congresso majoritariamente integrado por homens brancos e ricos que defendem interesses específicos, como os do agronegócio, da mineração, da saúde privada e de fundamentalistas religiosos, entre outros.

Este novo Congresso, mais representativo e diverso, junto com um Executivo também mais representativo e diverso, deveriam aprovar uma reforma tributária que fosse justa e progressiva, bem diferente do modelo tributário que está aí, privilegiando os muito ricos e penalizando os mais pobres. Deveria, ainda, expandir o Estado de bem-estar social, com redistribuição e reconhecimento das diferentes identidades, de modo a assegurar a realização progressiva dos direitos humanos consagrados na nossa Constituição. Concomitantemente seria implementada uma reforma agrária que desconcentrasse a propriedade da terra e dos territórios. Urge formatar um modelo de produção e consumo que não somente empregue decentemente como proteja a natureza e enfrente as causas e consequências do aquecimento global. Os sistemas de Justiça (Judiciário, Ministério Público, Procuradorias) e de comunicação também precisam ser democratizados, abertos ao público e responsáveis.

Bons projetos e boas ideias não faltam. Existem diversas iniciativas na sociedade com propostas alvissareiras (Frente Brasil Popular, Frente Povo Sem Medo, Vamos e Projeto Brasil, para citar algumas). O que não temos no momento é força suficiente para alterar as relações de poder que aí estão.

Por isso, é preciso, mais do que nunca, resistir e lutar para impedir tamanhos retrocessos, porque a grande maioria da população brasileira só tem a perder com esse arranjo político em exercício. Nós, ONG, movimentos sociais e ativistas do campo democrático e popular, temos a obrigação legal e moral de denunciar diuturnamente as violações de direitos humanos que estão sendo perpetuadas por esse governo temerário. Temos um longo caminho pela frente, mas a causa é justa e é isso que mantém nossa chama viva!

Notas:

[1] Para maiores informações sobre os ODS, acessar aqui. (Nota da entrevistada)

[2] A esse respeito, acessar aqui. (Nota da entrevistada)

[3] Para maiores informações sobre a Comissão, acessar aqui. (Nota da entrevistada)

[4] Para acessar as informações, ver especialmente os anos de 2016 e 2017. (Nota da entrevistada)

[5] Para acessar as informações, ver aqui. (Nota da entrevistada)

[6] A esse respeito, acessar aqui, p. 38. (Nota da entrevistada)

[7] Ibge, ibid, p. 92. (Nota da entrevistada)

[8] Ver mais informações aqui. (Nota da entrevistada)

[9] Para acessar as informações, ver aqui. (Nota da entrevistada)

[10] Ver: https://actions.oxfam.org/brasil/pt/actions/davos2017/ (Nota da entrevistada)

[11] Para maiores informações, ver aqui. (Nota da entrevistada)

[12] Ver site do DIEESE. (Nota da entrevistada)

[13] A esse respeito, ver aqui. (Nota da entrevistada)

[14] A esse respeito, ver o Relatório Final, Análise dos Dados, pp. 240-241. (Nota da entrevistada)

[15] A esse respeito, ver aqui. (Nota da entrevistada)

[16] A esse respeito, ver artigo do Inesc. (Nota da entrevistada)

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