Há quase um século, em julho de 1917, operários e comerciários desencadearam com sucesso a primeira grande paralisação da classe trabalhadora no Brasil. Orquestrada pela mobilização de organizações operárias de inspiração anarquista, num país em que inexistia leis trabalhistas e em que os trabalhadores eram tratados pelo patronato como semiescravos e grevistas como marginais, a Greve Geral de 1917 reivindicava, entre outras, jornada de 8 horas diárias, abolição do trabalho noturno feminino e a libertação de todos os trabalhadores detidos por motivo de greve. A paralisação geral de 1917 se tornou um marco da luta da classe trabalhadora brasileira. A ponto do então operário gráfico, jornalista e militante, Everardo Dias, descrever com espanto a atmosfera de silencioso vazio que tomou conta das ruas da então já fabril e febril cidade de São Paulo.
Passados cem anos, o dia de hoje amanheceu em muitas cidades brasileiras sob o espanto, o silêncio e o vazio análogos aos descritos por Dias. Que, nas metrópoles como São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte foram quebrados somente quando trabalhadores e trabalhadores puxados pelos carros de som das centrais sindicais, por sindicatos e pelos movimentos sociais tomaram as ruas em protesto contra as chamadas reformas Trabalhista e Previdenciária. Levadas a cabo a toque de caixa pelo governo mais impopular e conservador do país desde o fim da Ditadura Militar, o de Michel Temer. Nas pequenas e médias cidades, onde a opinião pública tende a ser mais conservadora e a paralisação dos transportes pouco ou quase não impacta na mobilidade urbana, as ruas acordaram igualmente silenciosas e preguiçosas, como em feriados. Indústrias, comércios, escolas (inclusa as particulares) e universidades públicas não funcionaram. E até os funcionários do Congresso Nacional aderiram à paralisação.
Foto do Terminal Bandeira vazio em plena sexta-feira – 28/04/2017
Apesar dos esforços do governo e da mídia corporativa em alardear o suposto fracasso da paralisação, o fato é que foi expressiva a adesão popular em quase todo o território nacional. O que abala ainda mais a baixíssima popularidade de Temer – mais de 90% dos brasileiros desaprovam seu governo – e reforça a insatisfação geral da população com as chamadas reformas. Que, apesar de propagadas pelo governo e pela mídia corporativa subvencionada como alinhadas “à realidade do século XXI”, vilipendiam direitos fundamentais até então consolidados e realocam as condições dos trabalhadores brasileiros àquelas anteriores a da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), de 1943. Um pacote de maldades a la “realidade do século XXI” que impõe condições trabalhistas do XIX. Como, por exemplo, o fim da hora de almoço, a possibilidade de demissões coletivas sem justificativa e encargos ao patronato e a imposição do trabalho temporário como realidade concreta no horizonte da classe trabalhadora.
Greve Geral – Largo da Batata as 20h – 28/04/2017 – Foto por Ricardo Stuckert
O sucesso da paralisação geral é devedor em grande parte à união histórica entre as maiores centrais sindicais do país. Uma costura difícil e fatidicamente possível frente a ameaça do fim da contribuição sindical obrigatória. Mas, que se mostrou frutífera e que possui correlato histórico na adesão massiva de algumas dessas centrais à Campanha “Diretas Já!”, pelo fim da ditadura e pelo retorno de eleições diretas para Presidente da República, lá no início dos anos 80. No cenário econômico, a Greve Geral deflagrada pouco ou quase nada impactou os agentes apoiadores das chamadas reformas Trabalhista e Previdenciária e do governo Temer. A base aliada não alterará os votos. E o empresariado a recebeu como prolongamento do feriadão imposto pelo próximo 1º de Maio, Dia do Trabalhador. Do ponto de vista receituário grandes paralisações como a que ocorreu não impactam mais do que expressivos feriados no ano fiscal das grandes e médias empresas.
Por outro lado, o triunfo da Grande Greve de hoje é estritamente político. E, trata-se de uma prestigiosa vitória. Assim como sua irmã centenária, a paralisação geral acionou e acionará inúmeros e profundos starts nas esferas do político e do social. Esse triunfo comprova que a História não cessa. E que continua em movimento. Aberta e receptiva ao futuro. Na camada mais que superficial, coaduna que as centrais sindicais, os sindicatos, os órgãos representativos de classe e os movimentos sociais no Brasil não são mortos-vivos à espera paciente do tiro de misericórdia. Mesmo que a grande reação venha de maneira tardia. Estão vivos e alertas. E que, apesar dos pesares, carregam enorme capacidade política de sensibilizar e mobilizar as massas.
No âmbito das utopias não distantes e possíveis, mas ainda utopia, se a capacidade de união entre as forças sindicais e entre os movimentos sociais sobreviver às condições do presentismo entendido como objetividade política – ou seja, à superficialidade da tradicional política do “toma lá, da cá” – poder-se-á em breve visualizar a edificação de uma colossal força em prol de uma ampla, profunda e necessária reforma política. Emanada e discutida da base ao topo. Gritos e ecos a ela não faltaram nas mobilizações que se descortinaram neste dia Brasil afora.
De todas as regiões e estados do Brasil veio um recado bem dado. Resistências maiores e mais frequentes podem surgir, implodindo a base de apoio entre o empresariado e os políticos que visualizam as eleições de 2018. E, ameaçando ainda mais a sobrevida de um governo que assumiu o poder já fragilizado e fadado ao fracasso, porque não reconhecido pela maioria. Nas ruas de todo o país, hoje, e não em Brasília, é que se decidiu que a agenda de que “o povo é que deve pagar o pato” pelas irresponsabilidades das crises econômica e política deve ser substituída nos próximos dias pela atmosfera do não sobreviverão no poder e pelo poder. É questão de tempo. A Greve Geral abriu horizontes. Em que, tal como 1917, a efetiva participação popular concedeu o tom.