por André Lopes Ferreira

O surgimento das Mães da Praça de Maio na Argentina é bastante conhecido: já que as leis impostas pela ditadura vetavam reuniões públicas, isto é, proibiam a aglomeração de pessoas num mesmo local – supostamente para evitar distúrbios –, um pequeno grupo de mulheres querendo ser recebidas pelo presidente de facto, o General Jorge Rafael Videla, começou a dar voltas na praça em frente à Casa Rosada. Como não estavam paradas, mas caminhando, burlavam a lei e não podiam ser detidas, e com sua coragem imediatamente chamaram a atenção da opinião pública nacional e estrangeira.

Mas o que queriam essas argentinas ao desafiar publicamente a Junta Militar que comandava o país? Simples: desejavam saber o paradeiro de seus filhos e filhas, em geral, jovens opositores do regime que desapareciam às centenas nas mãos dos serviços de repressão após o golpe de 1976. Tendo em conta que poucos meios de imprensa ousavam tocar no assunto, a bravura dessas mulheres mostrou que a resistência à ditadura poderia se dar também por meios pacíficos e, desde que se reuniram pela primeira vez na Praça de Maio, em 30 de abril de 1977, todas as quintas-feiras é possível vê-las no centro histórico da cidade com seus lenços brancos amarrados à cabeça – na verdade, fraldas de pano com os nomes dos filhos desaparecidos.

Essa ousadia obviamente provocou a ira dos militares, que se bem não toleravam nenhum tipo de oposição política – ou de qualquer outra natureza –, tampouco estavam dispostos a reprimir abertamente cidadãs que, antes de tudo, se identificavam singelamente como mães a procura dos filhos. Com a visibilidade do movimento o grupo inicial foi ganhando mais e mais adeptas, além da simpatia de setores da população. Como resposta ao movimento, o Chefe de Polícia da província de Buenos Aires, Coronel Ramón Camps, disse com desprezo numa entrevista à televisão: “Se essas mães tivessem se preocupado com seus filhos da mesma forma que se preocupam hoje, não estariam lamentando seu desaparecimento. Quer dizer, deveriam ter cumprido o papel de mães antes, e não o papel de ativistas que estão cumprindo neste momento.”

A declaração de Camps não deixa dúvida sobre o papel reservado à mulher no Processo de Reorganização Nacional – título solene que os militares deram à ditadura: cabia a elas somente a função de reproduzir e cuidar da família. Esses valores eram também veiculados à época em manuais de educação moral e cívica nos quais se podia ler: “o homem é o chefe da família e nele reside a autoridade do lar, a cujo regime devem se submeter a esposa e os filhos” posto que no “homem, [têm] primazia a razão e a direção e [na] mulher, por natureza, a ternura e o amor”.

De acordo com o padrão de família e sociedade desejado pelos segmentos civis conservadores – e legitimado pelos militares –, até mesmo a matemática moderna, roupas coloridas ou rapazes de cabelo comprido eram considerados subversivos. Assim, as Mães da Praça de Maio representavam um duplo desafio a esse modelo: primeiro, eram uma afronta à moral estabelecida, posto que saiam do universo doméstico para ocupar espaços públicos sem a tutela de seus maridos. Depois, ao questionar à luz do dia o destino dos desaparecidos políticos, colocavam o governo em uma posição constrangedora, isto é, ou o General Videla admitia a matança dos oposicionistas ou simplesmente se calava e mantinha o costumeiro silêncio das ditaduras.

    No caso argentino esse silêncio era, sem dúvida, embaraçoso. Dados de organizações de Direitos Humanos atestam que as vítimas fatais da ditadura naquele país – considerando mortos e desaparecidos – somam ao redor de 30.000 pessoas, cifra da qual nenhum regime militar da região sequer se aproximou, mostrando que a sanha dos órgãos repressivos na Argentina foi algo efetivamente sem par.

Uma rede campos prisionais semiclandestinos foi construída pelo governo em todo o país, além dos tristemente famosos centros de detenção e tortura como, por exemplo, o Campo de Mayo e a ESMA – Escuela de Mecanica da la Armada. Seguindo a lógica de que sem cadáveres não havia crime, os militares também colocaram em prática um método extremamente cruel para livrarem-se dos opositores, os chamados voos da morte, quando aeronaves decolavam carregadas de prisioneiros políticos, às vezes ainda vivos, para atirá-los nas águas do Rio da Prata. Como cadáveres começaram a aparecer ao longo da costa trazidos pela correnteza, decidiu-se então voar até oceano aberto para despejar a carga humana.

Durante sua incansável e paciente busca, as Mães da Praça de Maio conviviam com a possibilidade – nunca completamente aceita pela esperança materna – de que talvez jamais reencontrassem seus filhos com vida, ou soubessem do seu destino no caso dos desaparecidos. Em 1982 quando o país entrou em conflito com a Grã-Bretanha, enquanto muitos repetiam com entusiasmo e patriotismo o lema “As Malvinas são argentinas”, essas mulheres não aceitaram desviar a atenção da guerra suja que vinha acontecendo internamente e acrescentaram ao slogan oficial: “As Malvinas são argentinas e os desaparecidos também”.

Em busca de verdade e exigindo justiça, mulheres que além de mães eram também avós passaram a se reunir em frente à mesma Casa Rosada formando outro grupo muito atuante no pós-ditadura, as Avós da Praça de Maio, organização que até o ano de 2016 já havia identificado 121 pessoas separadas de seus pais quando crianças. Igualmente corajosas e decididas, denunciavam um crime largamente cometido pela ditadura, o rapto de bebês recém-nascidos. Quando detidas pela polícia, militantes grávidas que davam à luz no cárcere tinham os filhos levados à força e entregues para famílias de apoiadores do regime. Tal expediente foi bastante utilizado pelos serviços de repressão, e embora os números sejam imprecisos, acredita-se que centenas de crianças tenham sido tiradas de seus pais biológicos. Desse modo, as avós reclamavam não apenas seus filhos e filhas, bem como os netos levados por agentes do Estado tentando devolvê-los a seu verdadeiro lar.   

No dia 30 de abril as Mães da Praça de Maio completarão 40 anos de história e luta. Sua atuação, que pretendia inicialmente esclarecer os desaparecimentos do regime militar argentino, se ampliou transformando o movimento num espaço de defesa dos Direitos Humanos e justiça com repercussão em toda a América Latina. Em uma época de retrocesso político e social como a que estamos vivendo, seu exemplo nos convida a conhecermos criticamente nossa história como latino-americanos, mas sobretudo, é uma inspiração à resistência.    

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*Historiador e Professor Adjunto de História da América na Universidade Estadual de Londrina UEL
  1.  Documentário “Historia de un país. La dictadura I: economía y represión”. Canal Encuentro. Disponível
  2. em: < http://encuentro.gob.ar/programas/serie/8001/26?temporada=1> Acesso em: 31 mar. 2017.
  3.  NOVARO, Marcos; PALERMO, Vicente. A ditadura militar argentina 1976-1983. Do golpe de Estado à
  4. restauração democrática. São Paulo: Edusp, 2007, p. 185.
  5.  Disponível em: <https://www.abuelas.org.ar/caso/buscar?tipo=3> Acesso em: 18 abr. 2017.