Por Rafael Tatemoto/Brasil de Fato
Documento teve como base visitas a 22 unidades de detenção no país
Um novo relatório do Subcomitê para a Prevenção da Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos e Degradantes (SPT) da Organização das Nações Unidas (ONU) foi divulgado nesta terça-feira (10). Um dos pontos levantados pelo documento é a dificuldade do Estado em manter o controle das unidades prisionais e a delegação de tarefas aos próprios detentos.
O documento pode ser lido na íntegra, em inglês, aqui.
O relatório teve como base visitas a 22 unidades, localizadas no Rio de Janeiro, Manaus, Recife e Brasília, e ocorridas entre 19 e 30 de outubro de 2015. O resultado do trabalho foi entregue às autoridades brasileiras no dia 26 de novembro de 2016, ou seja, o diagnóstico e as recomendações que constam no texto antecedem os fatos recentemente ocorridos em prisões na região norte do país.
Pelos acordos internacionais firmados, o Brasil tem um prazo de seis meses para informar à ONU sobre ações tomadas relativas às recomendações feitas e responder às solicitações de dados.
Prisões
Baseado em relatos, o relatório traça um panorama geral das condições das prisões, citando a super lotação das unidades – a média de ocupação no Brasil é de 161% –, a ausência de condições e atendimento a necessidades básicas, os problemas na prestação de serviços de saúde e as restrições a visitas, bem como a violência e a tortura.
Além disso, o documento também faz referência a relatos de abusos cometidos por forças policiais ocorridos fora das prisões. Em relação a isso, entre outras proposta, o SPT recomenda a aprovação do Projeto de Lei (PL) 4.471 de 2012, que torna obrigatória a abertura de investigações em casos de morte ocasionada por agente público.
Na mesma linha, o SPT, ao tratar da super ocupação das unidades, apoia o PL do Senado 554 de 2011, que institui, em casos de flagrante, o prazo máximo de 24 horas para que um preso em flagrante seja levado diante de um juiz, o que se chama de audiência de custódia.
O projeto foi aprovado pelo plenário da Casa e encaminhado para a Câmara dos Deputados. A medida já existe em capitais brasileiras.
Crise
Para especialistas ouvidas pelo Brasil de Fato, a perda de controle do Estado sobre as unidades prisionais precisa ser entendida a partir justamente da super lotação.
“O próprio diagnóstico da ONU traça essa correlação. Em locais em que as condições de vida são de penúria completa, de violação extrema, com falta de acesso a todos direitos garantidos pela lei, incluindo também a falta de funcionários em número suficiente, são elementos que explicam o grande espaço que há para a organização dos próprios presos”, diz Vivian Calderoni, advogada da Conectas. “Esse é ponto central da questão: combater essa política que já demonstrou fracassada, ao contrário do que foi anunciado pelo governo federal, que é a construção de novos presídios”.
A implementação de audiências de custódia, nesse sentido, ajudaria a combater o volume de pessoas detidas no Brasil: “O projeto das audiências de custódia foi, durante muito tempo, uma luta das organizações de direitos humanos e de alguns setores do próprio Estado”, afirma Monique Cruz, pesquisadora da Justiça Global na área de Violência Institucional e Segurança Pública.
“Essas audiências têm sido aplicadas nas capitais por uma iniciativa louvável do Conselho Nacional de Justiça. Se considerarmos que 40% da população prisional brasileira é formado por presos provisórios, essa medida tem grande potencial”, complementa Calderoni.
Medidas
Outras questões, entretanto, explicam a grave situação nos presídios brasileiros. A mais importante, na opinião de ambas, é a política de drogas brasileira.
“O que se tem hoje no Brasil é uma escolha política de se ter uma taxa gigantesca de encarceramento por ano. O grande boom é decorrente da política de drogas. A prisão deve ser a última opção do juiz, mas tem sido a primeira”, diz Cruz.
Calderoni complementa: “Uma medida fundamental é uma revisão da política de drogas. Ela é uma das maiores responsáveis pelo número de presos do Brasil: 64% das mulheres e 25% dos homens estão presos por crimes relacionados a drogas. O próprio relatório da ONU apoia que o Supremo Tribunal Federal decida pela inconstitucionalidade do crime de porte de drogas. Na prática, muitas pessoas que estão em presídios são usuários, não traficantes”.
O encarceramento feminino é mencionado no documento das Nações Unidas. O relatório do SPT também aborda as condições de mulheres, jovens e LGBTs privados de liberdade.
Para a ONU, sua situação é ainda pior. “Elas têm condições de vulnerabilidade ainda maior [que os homens adultos]”, diz Calderoni.
Pobres e negros
Para Cruz, a chamada guerra as drogas se insere em um contexto de criminalização geral dos mais pobres. “Nós temos uma política de drogas que colabora com uma guerra. A lei de drogas brasileira é voltada para a criminalização de pessoas pobres e negras. A figura do usuário só se aplica a pessoas brancas de classe média. Não é possível identificar um só benefício da atual política de drogas”, critica.
A pesquisadora argumenta ainda que, mesmo quando avanços são implementados, ainda há seletividade na atuação judicial. “O racismo é uma questão fundamental nesta questão. A Defensoria do Rio apontou que pessoas negras têm 32% mais chances de permanecerem presas após audiências de custódia”, afirma.
Para ela, a questão do encarceramento em massa esbarra na forma como o Judiciário atua em nosso país, e na necessidade de controle social e democrático sobre suas decisões.
“Nós apresentamos um relatório em que há casos de mulheres presas por conta do furto de fraldas em farmácias. O Brasil tem 42% de presos provisórios, ou seja, pessoas que não foram condenadas e que, de alguma forma, já estão cumprindo pena. No Amazonas, esse número é ainda mais absurdo: de 52%”, aponta Cruz.
Um dos meios de se avançar na questão prisional, segundo a pesquisadora, seria promover uma abertura democrática do Judiciário. “É um lugar branco, de homens ricos. Em função de que visão de mundo se usa esse poder? Se prende muito uma parcela específica da população”, finaliza.
Edição: Camila Rodrigues da Silva