Por Fernando Morais para Opera Mundi e Nocaute

Rodrigo Londoño – ou o comandante Timochenko, como é conhecido, ou mesmo Timoleón Jiménez – é, seguramente, a face mais visível das FARC (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia). Como líder do grupo, participou de todo o processo de negociação e discussão do acordo de paz entre o governo e a guerrilha, além de ter sido o responsável por assinar o texto com o presidente Juan Manuel Santos.

Em entrevista exclusiva, concedida ao jornalista e escritor Fernando Morais em Havana, e que Opera Mundi e o site Nocaute publicaram simultaneamente sexta-feira (23/12), Timochenko falou sobre o processo de paz, a vitória do ‘não’ no referendo, suas expectativas em relação ao governo de Donald Trump, nos EUA, e a crise política no Brasil.

O líder guerrilheiro tem uma longa trajetória dentro do grupo. Ele, que nasceu no interior da Colômbia, se juntou às FARC no começo da década de 1980 e, em 1986, já fazia parte do secretariado da organização. No entanto, não foi só um líder militar. Timochenko chegou a fazer, dentro do grupo, as vezes de enfermeiro – “numa guerrilha, se fazem muitas coisas, nas circunstâncias”, diz – e completou até um curso de câmera, sendo o responsável por filmar a etapa dos diálogos com o então presidente colombiano Belisario Betancur (1982-1986).

O guerrilheiro desmente, no entanto, que tenha feito um curso de medicina na União Soviética, como alguns relatos biográficos apontam. “Isso são puras mentiras da inteligência, que são tantas, que me formei na União Soviética, cardiologista”, afirma.

Timochenko se tornou chefe do Estado-Maior da guerrilha em 2011, após o então líder, Alfonso Cano, ter sido morto em uma operação militar, e foi quem liderou, pelas FARC, as negociações em Havana.

Quando Juan Manuel Santos, o presidente colombiano, foi premiado com o Nobel da Paz, não foram poucos os que defenderam que Timochenko também deveria ter recebido a homenagem. Santos, em seu discurso no recebimento do prêmio, afirmou que o Nobel  pertencia também “a todos os homens e mulheres que, com enorme paciência e fortaleza, negociaram em Havana por todos esses anos.” E completou: “E me refiro tanto aos negociadores do governo quanto aos das FARC – meus adversários -, que demonstram uma grande vontade de paz”.

Para Timochenko,  o fundamental agora é unir os setores que estejam a favor da paz no país, para assegurar que o processo continue, independentemente de quem estiver na presidência da Colômbia.

“O primeiro passo para isso é, para os que querem a paz, deixar de lado todos os interesses particulares. Isso é o que deve nos identificar a todos, porque, se não se elege um presidente que garanta a continuidade dos acordos, não sabemos que tipo de situação se pode gerar na vida política do país”, diz.

Abaixo, leia a íntegra da entrevista e assista à conversa em vídeo:

Fernando Morais: –Comandante, boa tarde e muito obrigado por nos receber. E vamos começar a trabalhar.

Timochenko: –Boa tarde, companheiro Fernando. O prazer é meu tê-lo aqui.

–Comandante, Nicarágua e El Salvador criaram uma tradição que é sair da guerrilha e fazer a política aberta. O senhor está preparado para ser presidente da Colômbia como Daniel Ortega na Nicarágua e Salvador Sánchez em El Salvador?

–Claro, um revolucionário está preparado para aquilo que a organização o determine, para os desafios que, na mesma dinâmica, a luta o coloca.

Neste momento, não estamos pensando nisso. E em meu caso pessoal, menos ainda. Estamos pensando que entramos agora numa das partes mais complexas desse processo, que é a implementação, que apenas começa. E nesta arrancada, já temos múltiplas dificuldades e problemas.

Há alguns setores, não digo o presidente Juan Manuel Santos, mas há setores da sociedade colombiana, alguns incrustados dentro do Estado, que querem conseguir, nesta etapa da paz, o que não conseguiram durante a guerra.

Assim, os desafios são muito grandes para que alguém comece a pensar em coisas que o distraiam.

–A iniciativa dos acordos de paz foi sua, uma carta que escreveu há muitos anos ao presidente Santos. Uma questão que muitos se põem é por que os acordos de paz não se deram com presidentes de centro, mas ocorreram com um presidente marcadamente de direita, que inclusive foi responsável por agressões às FARC como ministro da Defesa.

–São ironias da vida, não? Fatos políticos ocorrem quando as condições se apresentam, independentemente das pessoas e dos personagens. São situações objetivas e subjetivas que desencadeiam fatos políticos. Inclusive, um processo muito importante nos anos 1980 ocorreu com o presidente Belisario Betancur, que se frustrou, mas que avançou bastante. Betancur era um presidente conservador. São as condições e as dinâmicas que levam a que os processos ocorram.

–Poucos dias atrás, li nos jornais que os grupos de extrema-direita estão atacando os camponeses das regiões que antes eram controladas pelas FARC. Que se pode fazer para impedir que essa situação siga ocorrendo?

–A coluna vertebral do acordo é que nós nos comprometemos a deixar de usar as armas em nossas atividades políticas, e o Estado se compromete a deixar de usar a violência para reprimir e para atacar a seus opositores.

Isso está explicado no acordo, há alguns instrumentos ali acordados que precisamos começar a implementar, e estamos fazendo isso. Há uma comissão nacional de segurança, propusemos um plano piloto de luta contra o militarismo, e estamos fazendo pressão para que isso seja cumprido.

De todas as maneiras, temos que criar uma institucionalidade, e tivemos uma boa notícia, com a aprovação do Fast Track, pela corte constitucional, e isso levará a mais viabilidade para que esta institucionalidade se construa e comece a ganhar forma.

E aí vamos poder ver se há realmente vontade política da classe dirigente que encabeça Santos de erradicar da vida colombiana o uso da violência na política.

De toda maneira, houve mortos. Eu sempre coloco como exemplo que, em 2011, Santos fez uma lei de restituição de terras, e na Colômbia há 7 milhões de camponeses que foram despojados de suas terras, nesta última etapa. E a lei permite que essas pessoas reclamem por suas terras. Até o momento, há mais de 200 camponeses reclamantes de terras assassinados.

Ou seja, houve mortes. E neste ano mais de 70 defensores de direitos humanos e líderes sociais foram assassinados. Isso não vai desaparecer com a assinatura do acordo final. Precisamos criar essa institucionalidade e dar forma aos acordos.

E essa é uma tarefa de todos, e estamos ladeados das forças políticas colombianas que querem a paz e, algo muito importante, que é o apoio, o acompanhamento e o monitoramento de parte da comunidade internacional, de todos os setores progressistas, especialmente da América Latina, que querem que na Colômbia construamos a paz.

Opera Mundi/Nocaute (Video)

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–Há rumores recentes de que o Conselho de Estado pretenderá ou anular o plebiscito. Isto tem fundamento?

–Isso se fala há algum tempo já. Porque havia algumas demandas ao conselho, e pode ser que a gente venha a ter essa notícia de anulação do plebiscito.

–Isso é uma segunda boa notícia.

–Sim, porque dá um pouco mais de ar, de toda maneira, porque nos dá razão, porque nós colocamos que o plebiscito não transcorreu bem.

A própria figura do plebiscito não foi bem proposta. Porque o plebiscito, na Constituição colombiana, tem o objetivo de que as pessoas aprovem as políticas do presidente da República, e o acordo de paz na Colômbia é uma política de Estado, em que todas as instituições estão comprometidas.

Assim, nós sempre nos opusemos ao plebiscito porque cremos que há na Constituição instrumentos que podem dar mais contundência ao apoio e à referendação popular a um acordo como este.

–A guerra durou meio século. Por que custou tanto tempo para que se chegasse à paz? Quais foram os obstáculos ao longo desse tempo?

–A Colômbia sempre foi marcada pelo fato de que entrou na vida republicana pela via da violência. Recordem os atentados a Simón Bolívar. E o assassinato de Antonio José de Sucre [em 1830]. E Sucre não podemos dizer que é uma figura como [atualmente, a de Salvatore] Mancuso, um paramilitar, Sucre representava as correntes na época da independência.

E assim continuou. Temos diversos líderes, e todos os líderes que encabeçavam movimentos sociais e políticos que podiam chegar ao poder, e governariam em função do interesse das grandes maiorias, foram assassinados. É uma prática que persistido na Colômbia. E queremos que, a partir deste acordo, ela venha a ser erradicada. Esse é o nosso propósito e por ele vamos trabalhar.

Então, sim, de toda maneira, esta última etapa ficou marcada pelo assassinato [do candidato à Presidência] Jorge Eliécer Gaitán, em 1948, um grande líder popular, que pôs em perigo as classes dominantes daquele momento, que são as mesmas de atualmente. Nessa época, havia uma violência muito intensa na Colômbia, no campo, fundamentalmente. A Colômbia começava, já, a avançar na industrialização, começava a desenvolver novos cultivos no campo, a agroindústria dava seus primeiros passos.

Há, então, uma distribuição da terra através da violência, o mesmo que ocorreu numa etapa mais recente, em função de projetos agroindustriais. E as elites não permitiram que elas perdessem o poder que detinham, para seguir lucrando com o poder político e econômico.

E acabaram, também, constituindo-se em grandes máfias, ligadas ao capital internacional. E sabemos que isto é determinado ao norte. Colômbia é um espaço considerado estratégico pelos EUA há muitos anos, do ponto de vista geográfico, político, econômico, e, portanto, eles também promoveram isso.

–Em sua opinião, por que o “sim” [ao acordo de paz] foi derrotado no plebiscito?

–Primeiro porque, como disse antes, essa figura do plebiscito foi mal colocada. O governo Santos vem fazendo uma política desastrosa do ponto de vista econômico e social. Há grandes setores e camadas sociais colombianas que estão muito descontentes com as políticas sociais e econômicas [do presidente]. Alguns setores pensaram que votar pelo “sim” era aplaudir a política econômica de Santos, não separaram uma coisa da outra.

E também, o governo, que era encarregado de promover o “sim”, não o fez como deveria. Não explicou às pessoas no que consistiam os acordos. Na época, eram 270 e poucas páginas, é uma quantidade de coisas que precisam ser explicadas. O acordo no tema agrário, por exemplo. Tinha mais de três anos que fora concluído. O governo nunca fez um trabalho sistemático, pedagógico, para que as pessoas os entendessem e vissem que os favoreciam realmente.

Além disso, [o acordo] contou com uma propaganda muito bem planejada por aqueles que se opunham a ele. Do ponto de vista midiático, houve manipulação. Por exemplo, é um testemunho que vi: uma senhora tinha sete vacas, e disseram a ela que, se ganhasse o sim, pegariam cinco e ela ficaria com apenas duas. Veja, então, o tipo de coisas que se fizeram neste sentido.

Opera Mundi/Nocaute (Video)

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–Quem mais colaborou e quem mais criou dificuldade para os acordos de paz?

–Uma das coisas que conseguimos neste acordo, e com a qual nos pusemos de acordo com o governo, é que no centro deste acordo estão as vítimas. Em função da verdade, da justiça, da reparação e da não repetição.

Porque as milhões e milhões de vítimas que houve neste conflito, consideramos que devem ser ressarcidas. Fundamentalmente, contando a verdade. E uma das coisas que ficaram acordadas é que será constituída uma comissão de esclarecimento da verdade.

E esses setores, que empurraram para a guerra, que fomentaram a guerra, e que não têm uma explicação lógico de seus porquês, porque tudo foi em função de seus interesses particulares, têm temores, têm medo que pode acontecer. Esses são os setores que, com força, se opuseram ao processo de paz, e estão se opondo, e vão continuar se opondo.

–Que garantias têm a população colombiana de que as FARC irão de fato abandonar a luta armada, para além da palavra de vocês?

–A primeira coisa é a palavra, a certeza. No fracasso de outros processos, sempre nos acusaram de nós estávamos jogando duplo, o que não era verdade, e também não é correta neste momento: ‘Estamos aqui conversando calmamente e, aqui embaixo da mesa, temos umas armas e tal.’ Não! Estamos, sim, fazendo acordos, uma série de instrumentos que tem de ser implementados em função de garantir a nossa segurança e da população em geral.

–Durante muito tempo, as pessoas se escandalizavam, sobretudo muita gente progressista, com as notícias de que as FARC teriam proximidade muito grande com o narcotráfico. Se dizia até que era uma “narcoguerrilha”. Como você explica isso para as pessoas que apoiaram vocês no Brasil e em todo o mundo, por tanto tempo?

–Eu creio que no Brasil, isso foi muito bem entendido. Especialmente nos setores populares e revolucionários. Para nós, forjaram a imagem de que Lula e Dilma são uns corruptos. E muitas pessoas comuns acreditam nisso. Porque uma forma de neutralizar os revolucionários é estigmatizá-los, com uma figura ou com outra, fazê-los aparecer como o Diabo.

Então, é claro: como o narcotráfico é um fenômeno que aparece na sociedade colombiana, e nós estamos imersos nessa sociedade, claro, estamos convivendo com ele. Que “aproveitamento” fizemos do narcotráfico?

Do dinheiro que o narcotráfico movimentou, como o dinheiro que as mineradoras movimentam, como o dinheiro que movimentam as transnacionais, do dinheiro que movimentam as grandes empresas colombianos: cobramos impostos. Cobramos impostos dos grandes comerciantes, dos grandes negócios, e dos narcotraficantes também cobrávamos impostos.

Mas que nós tenhamos sido ou sejamos narcotraficantes, não. E não é um problema moral. É um problema que nós, inclusive, quando conhecemos esse fenômeno e vimos a quantidade de dinheiro que movia, pensamos:  aqui está a solução do problema financeiro. Mas quando estudamos o fenômeno, dizemos não, isso não é revolucionário. Porque o dia que um revolucionário se torna narcotraficante, deixa de ser narcotraficante, porque mudam seus valores completamente.

Para que o narcotraficante quer dinheiro? Para construir grandes coisas, comprar praias, carros, iates, aviões etc. E, bem, dar-se aquilo que, entre aspas, chamam de boa vida. E o revolucionário, bem, como vive? Como vivemos nós, como guerrilheiros? Quarenta anos com uma mochila nas costas, dois ou três mudas de roupas, três cuecas, três pares de meias e um par de botas. Remendando as botas, para fazê-las durar. Remendando as roupas para fazê-las durar. São valores completamente antagônicos.

–Que futuro o senhor vê para as FARC, agora com os acordos de paz? Será um partido com a Frente Farabundo Martí [de El Salvador], com a Frente Sandinista [da Nicarágua]. Como vê esse processo para as FARC?

–Com muito otimismo. Chegamos a esse processo com a ratificação por uma conferência nacional de guerrilheiros. Um evento em que houve a participação de representantes de todos os guerrilheiros, que ratificou o acordo e propôs como vamos nos posicionar no futuro. Essa [é uma] conferência-mandato, porque nós somos ao mesmo tempo uma organização militar e política.

Nós temos uma esquadra, como unidade militar, mas essa esquadra é também uma célula partidária. Isso é, um organismo político. Ao nos transformamos, a realidade é que temos de criar um partido. E esse partido vai ser conformado, vai se estruturar e vai construir sua plataforma e tudo o mais que corresponde a um partido político em um congresso que deve ser convocado mais ou menos pelo mês de maio. Esse é um mandato que nos deu a conferência.

Mas, nesse momento, devemos elaborar, e isso está colocado, uma proposta para o país, em função de uma grande convergência que permita chegar ao poder para assentar as bases reais do poder na Colômbia.

Opera Mundi/Nocaute (Video)

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–Quais foram os momentos mais difíceis para a guerrilha nesses 50 anos?

–Essa é uma pergunta difícil de responder porque houve muitos, em cada etapa. No começo das FARC, um ou dois anos depois de formada, um companheiro cometeu um erro militar e foram perdidos 70% das forças e das armas. Obrigou-nos quase que a começar de novo.

Mas houve também momentos, em etapas como, por exemplo, no governo de Alfonso López [1974-1978], que desenvolveu uma política social que, inicialmente, parecia que ia beneficiar as pessoas, e a gente… porque, ao fim e ao cabo, do que se nutre a guerrilha? Do descontentamento das pessoas. Essa é a gente que chega e alimenta as fileiras da guerrilha. Mas depois não continuou assim, e continuamos. Mas há outros momentos em que…

–Por exemplo, o fim da União Soviética: como vocês receberam essa notícia, lá na floresta?

–Para nós, sabe, isso não impactou como impactou em muitos outros lugares. Doeu, sim, porque era uma referência. Muitos anunciaram o desaparecimento das FARC. Porque, também, diziam que as FARC se supria, era pró-Soviética, que éramos financiados pelo ouro de Moscou…

–O famoso “ouro de Moscou”…

–É, o “ouro de Moscou”… Pois é. Não. Não desaparecemos, e nos mantivemos fortalecidos. Realmente, não nos impactou internamente. Não houve quadros importantes nossos que quebraram por que se sentiram desmoralizados pela queda da União Soviética.

Porque é aquilo que muita gente não entende: as FARC são fruto da mesma dinâmica social e política do país. Isso não ocorreu porque alguém se levantou e disse: construamos aqui uma guerrilha. Não. É uma guerrilha que nasce me função da resistência a um regime repressivo. Isso cria raízes muito profundas na sociedade colombiana.

Sim, sentimos [o fim da URSS], mas por sorte contávamos com quadros muito esclarecidos, como o camarada Manuel Marulanda [1928-2008], fundador, o camarada Jacobo Arenas [1924-1990], que entenderam perfeitamente [o que ocorria]. Eu posso lhe contar. Nós recebemos aquele famoso livro, aquela da Casa Comum, de Mikhail Gorbachev, e todos emocionados, lendo-o. Nas mãos do camarada Jacobo, silêncio… Não se dizia nada.

Mandou pedir com todos os amigos e contatos que tinha literatura de fora. E um dia nos convocou a todos, cerca de 400 guerrilheiros. Uma conversa. E nos mostrou nessa conversa um jornal Granma, com um discurso de Fidel Castro, que explicava no que consistia as políticas de perestroika e glasnost. Para nós, ficou muito claro de que se tratava este fenômeno. Não podemos, com isso, dizer que não teve consequências para a luta guerrilheira e para o mundo, em geral.

–Você falou do Granma. Qual foi o papel de Cuba no processo de paz? Por que vocês, as duas partes, escolheram Havana como o lugar em que seria assinado o acordo de paz.

–Porque Cuba nos dá plena confiança e garantia. Mas, te conto, esse foi o primeiro processo de negociação tensionado com o governo. Porque o governo queria que fôssemos para a Suíça, para a Suécia, ao norte da Europa, e respondemos: não, lá faz muito frio. Sugeriu-se o Brasil, e dissemos que não, não era possível. Porque, além de tudo, era o início, e estávamos em plena confrontação, quando havia muita desconfiança da nossa parte de que se tratava, de que era algo confiável ou se estavam nos colocando uma armadilha.

Propusemos que fosse na Colômbia. O conflito era na Colômbia. Não, o governo, além de tudo, havia estabelecido uma lei que proibia isso. Então sugerimos Venezuela. “Não, Venezuela, não, porque temos muitas contradições e isso vai ser difícil de lidar.”

Presidente Santos, Comandante Timochenko, Presidente Raúl Castro. Foto utenriksdepartementet UD

Presidente Santos, Comandante Timochenko, Presidente Raúl Castro. Foto utenriksdepartementet UD

Bom, discute, discute, e a tarde já ia acabando. E os representantes do governo precisavam ir, porque já ia acabando a luz para o helicóptero, porque isso ocorreu na Colômbia, essa reunião. Daí dissemos, bem, Cuba. Que era uma orientação que nos havia dado o camarada Alfonso, que era quem estava à frente de tudo isso.

Ficamos com essas opções: Colômbia, Venezuela e Cuba, e se não, não nos movemos. Porque Cuba para nós é uma referência histórica. E estávamos seguros de que Cuba não se prestaria a nenhuma manobra para nos enganar. E temos de dizer que acertamos.

No desenrolar de tudo isso, aqui chegamos após quase seis anos, apoiando-nos em Cuba em função de todo esse processo. E realmente creio que foi uma decisão acertada.

–O mundo foi surpreendido, há poucas semanas, pela eleição de Donald Trump para a presidência dos Estados Unidos. Há muita gente progressista que crê que, para a política externa, não há a menor diferença entre democratas e republicanos. Para a Colômbia e para as FARC, o que significa a eleição de Trump?

–Sinceramente, sinceramente, temos alguns temores. Mas quando fazemos análises objetivas, é isso que você disse: que não importa se é republicano, ou se é democrata. O que ocorre são as políticas que são traçadas, sabemos, nos dois cenários distintos, e esses são personagens que têm de se adaptar a elas. O que acontece é que, sim, cada personagem dá suas próprias características a seus mandatos.

Mas acabo de escutar uma notícia de Trump planeja encerrar a fabricação de um avião de guerra, não me recordo o tipo, e veio uma enorme pressão sobre ele. Começando pelo grande consórcio militar.  Há no mundo um consórcio industrial, militar e financeiro, que são os que movem os fios do poder e que manejam todas as tramas de poder no mundo. Querem se apoderar do mundo. E os Estados Unidos são um instrumento para isso.

Então é aí que serão determinadas as políticas. Nós confiamos, porque este processo teve o acompanhamento e a aprovação dos Estados Unidos. Não porque sejam boa gente. Porque também eles financiaram e promoveram a guerra. E participaram como assessores diretos na guerra.

Mas eles têm interesses econômicos, interesses estratégicos. E também querem não ter de cuidar disso, porque têm problemas mais graves em outras regiões do mundo. Então esperamos que essa política de apoio ao processo de paz se mantenha. A mim me disse isso, pessoalmente, o secretário de Estado.

–John Kerry.

–Kerry. Me disse isso aqui, em Havana. Disse: “Estamos dispostos a ajudar em tudo que vocês necessitem para a segurança de vocês.”

–Interessante isso.

–E vão lutar… Não foi exatamente a palavra, mas, sim, não vão permitir o apoio aos paramilitares, ao paramilitarismo. É uma mudança de política, porque, ao fim e ao cabo, o paramilitarismo que eles impuseram à Colômbia.

–Como as FARC veem o que está ocorrendo no Brasil? Se estivesse no poder, reconheceriam o governo atual?

–Sem ter muitos elementos de juízo, vemos com muita preocupação, porque sabemos quem é Lula, quem é Dilma, que além disso, foi guerrilheira, sabemos os valores que um guerrilheiro tem, e sabemos que ela estava de boa-fé exercendo sua presidência e as políticas que podia, frente a uma direita com muito poder.

E que, infelizmente, de uma maneira toda condenável, através da calúnia, criando-se situações não corretas, ela é destituída.

Pois esse é um desafio, que tem o povo brasileiro e o movimento popular, com o qual somos solidários, e acompanhamos. Creio que sabem, e não quero dar aulas, nisso é muito importante a unidade de todos os setores. Nós os acompanhamos e fazemos força para que se possa apoiar.

Opera Mundi/Nocaute (Video)

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–Você deve saber que a direita brasileira tem uma clara má vontade com as FARC, e que já se manifestou, quando disseram que as FARC tinham um embaixador no Brasil, um padre, não lembro o nome dele…

–Cabillo… É seu nome aqui, na guerrilha.

–Mas você não respondeu. Se as FARC estivessem no poder, reconheceriam o atual governo brasileiro?

–Bem, o que passa é que, quando se está no poder, é preciso saber manejá-lo, não? É preciso saber manejá-lo, ver o que está ocorrendo, as circunstâncias, as condições presentes.

Mas que se tenha a plena segurança de que somos solidários a todos com todo movimento popular, não só no Brasil, mas também com todos os povos do mundo que lutam pela emancipação, por um melhor viver, em luta contra um capitalismo selvagem que está, além de tudo, destruindo o habitat e o meio em que a espécie humana pode viver, algo que aprendemos muito com Fidel, que nos chamou muito a atenção para isso.

Nesse sentido, encaminharíamos todas as nossas ações e nossas políticas.

–No Brasil se dizia, e inclusive se publicou com muito destaque, que vocês financiavam o PT. Que ajudaram a pagar as campanhas de Lula. Isso procede? Tem algum cabimento?

–Isso não tem nenhuma base real, nada, em absoluto.

–Como as FARC se identificam ideologicamente?

–Nós temos um estatuto que nos rege, e é algo que sentimos e fazemos, e está registrado aí que somos marxista-leninistas. O marxismo-leninismo aplicado à realidade colombiana.

E recorremos aos fundamentos do pensamento de Simón Bolívar: seu espírito anti-imperialista, sua luta pela unidade latino-americana, e o bem-estar do povo, os três elementos que resgatamos. Essa é a nossa ideologia e a base com que projetamos nossa atividade ideológica e política.

–Comandante, os acordos de paz garantiam às FARC uma fatia de participação no parlamento. Como é isto? Você pode explicar?

–Isto está no marco acordado da participação política. Como te disse antes, nós deixamos as armas de lado, mas seguimos fazendo política.

E para isso, pedimos que nos dessem um mínimo de garantias. E dentro do que alcançamos está, primeiro, a possibilidade de nos convertermos num movimento político. De facilitar-nos os trâmites, de não termos de nos submeter a toda uma série de trâmites ou fazê-lo rapidamente, de não nos submetermos, por exemplo, a ter que ter uma determinada quantidade de militantes, uma série de requisitos que são exagerados na Colômbia, para impedir também a participação popular, a qual também queremos que se impulsione uma lei que acabe com alguns desses requisitos, para facilitar a participação.

E é nesse sentido que teríamos uma participação no Senado e na Câmara, ou seja, no Congresso, nessa etapa que vem, que é a discussão das leis. Temos o direito a ter seis representantes nossos lá, seis que já estamos escolhendo e que têm de entrar agora mesmo, em função dos debates que vão haver, que começam. A primeira lei, de anistia e indulto, e há uma série de leis, com a função de criar essa institucionalidade de que eu falava antes.

Mas temos também, garantida, até 2029, se não me falha a memória, a participação no Congresso com pelo menos 5 nomes, independentemente do que alcancemos participando das eleições. Se elegermos 15, tudo bem, estão ali os cinco. Se elegemos 2, teremos 5.

Opera Mundi/Nocaute (Video)

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–Em dois anos, teremos eleições presidenciais. Hoje, não se se pode fazer uma previsão, mas que pretendem as FARC: ter candidato próprio ou apoiar um candidato que venha dos partidos, da sociedade?

–Veja, já praticamente essa campanha eleitoral para Presidência, em função dos acordos de paz, começou. E o que se vai ver enfrentar nesse cenário político são as forças que querem a paz, a partir da consolidação dos acordos, e as forças que não querem a paz, buscando impedir a implantação dos acordos. Isso é que vai ocorrer, independentemente dos matizes que surjam.

A proposta que estamos fazendo ao país é um governo, eu diria o nome transitório, mas pode ser outra figura que explique melhor o que se deve fazer, um governo transitório em que todos os setores que querem que se consolide a paz na Colômbia se reúnam em torno de uma figura que nos garanta que não haja resistência nem de uma parte, nem da outra.

Alguém me disso, ‘isso é ter de encontrar um anjinho’… Não, eu acredito que, na sociedade colombiana, existe esse tipo de figura, temos que encontrá-los.

Mas o primeiro passo para isso é, para os que querem a paz, deixar de lado todos os interesses particulares. Isso é o que deve nos identificar a todos, porque, se não se elege um presidente que garanta a continuidade dos acordos, não sabemos que tipo de situação se pode gerar na vida política do país.

–Fazer política pode ser mais difícil do que dar tiros?

–Claro. Dar tiros não deixa de ser um jeito de fazer política, alguma experiência temos, mas, sim, é algo muito mais complexo, muito mais difícil. Requer mais análises.

–Você, durante um período da guerrilha, foi cinegrafista? Se não tivesse sido guerrilheiro, o que seria?

–O que ocorre é que a guerrilha é uma atividade que tem sua particularidade, que nos faz evoluir. Os guerrilheiros, como dizem os comandantes, somos integrais. Fazemos o que nos é posto para fazer.

Então, numa guerrilha, se fazem muitas coisas, nas circunstâncias. Eu, por exemplo fui enfermeiro, sem ter vocação propriamente para sê-lo. Em 1984, fiz um cursinho de câmera, e fui quem filmou toda a etapa dos diálogos com Belisario Betancur [1982-1986].

Mas o que eu gostaria de ter sido? Professor.

–Professor?

–Gosto da educação, gosto, me satisfaço muito quando se dá a alguém elementos para compreender uma realidade.

–Você chegou a estudar medicina?

–Não, não.

–Porque eu li isso.

–Não, não. Isso são puras mentiras da inteligência, que são tantas, que me formei na União Soviética, cardiologista etc.

–Se eu tiver um infarto aqui, você não me salvará, então?

–Não, não.

–Está bem, comandante. Agradeço muito o tempo que você dedicou a esta entrevista e espero vê-lo em breve no Brasil.

–Eu agradeço, Fernando, o esforço que você fez de vir aqui e saúdo o povo brasileiro. Nos interessa que a América Latina conheça de verdade o que estamos fazendo, que nos acompanhe com a solidariedade necessária, assim como expressamos nossa solidariedade necessária ao movimento popular brasileiro e esperamos que essas nuvens pesadas que estão sobre o Brasil sejam dispersadas o mais breve possível.

Opera Mundi/Nocaute (Video)

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