Por Daniel P. Giovanaz/Brasil de Fato
Fenômeno ocorre naturalmente, mas a superexposição do solo tem proliferado as manchas de areia na região
O agricultor Claudio Hamilton Pereira da Luz vê com desgosto a mancha de areia que se forma em meio à sua plantação de milho em Passo Novo, no Sudoeste do Rio Grande do Sul. “É por causa do mau uso da terra”, explica o pequeno produtor, que mora no assentamento Novo Alegrete, a 520 km de Porto Alegre. “Até maio de 2008, aqui era uma fazenda de soja”.
Em todo o estado, estima-se que pelo menos seis mil hectares da zona rural estejam tomados pela areia. O fenômeno da arenização não depende apenas da ação humana, mas é consenso entre os pesquisadores que a expansão da agricultura comercial ajuda a intensificar os processos erosivos. O desmatamento da flora nativa para plantação de soja, por exemplo, leva à extinção da vegetação em regiões específicas do estado e contribui para que o solo fique mais exposto ao vento e às tempestades.
Os altos índices de chuva e o solo arenoso da região criam sulcos no interior do solo e abrem fendas que se expandem a cada enxurrada, formando crateras de areia chamadas de “voçorocas”. Com a ação do vento, a areia se espalha sobre os campos e dá origem a manchas como aquela que Claudio observa na localidade de Passo Novo.
Das 56 famílias assentadas em Novo Alegrete, pelo menos quatro lotes têm o plantio impossibilitado pelos areais. Como aquele costumava ser um terreno de monocultura, os moradores acreditam que a diversificação dos cultivos pode evitar que o problema se repita nos lotes vizinhos: “Aqui tem canavial, também se planta milho, aipim, batata doce…”, enumera o produtor. “Como está chovendo muito, eu tenho plantado mais milho”.
Segundo o pesquisador Roberto Verdum, o problema não são apenas as monoculturas, mas o manejo inadequado dos terrenos. “O primeiro grande momento de crescimento da demanda por soja foi nos anos 70, e os médios e grandes proprietários nunca tiveram a preocupação de não expor o solo. A areia, para eles, já fazia parte da paisagem”, analisa Verdum, professor do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). “Como aquela era há séculos uma região típica de pastoreio, a expansão da agricultura comercial também fez com que se diminuísse a área destinada à pecuária. E, como o número de cabeças de gado por hectare não diminuiu proporcionalmente, o aumento da pressão sobre o terreno também intensificou os processos erosivos nos pampas”.
A área conhecida como pampa rio-grandense, também chamada de campanha gaúcha, ocupa cerca de 176 mil km² – ou 2% do território nacional – próximo à fronteira do Rio Grande do Sul com a Argentina e o Uruguai. Com uma vegetação nativa composta por gramíneas e plantas rasteiras, o bioma localiza-se na área de maior predominância de campos naturais preservados do Brasil.
Êxodo rural
As pequenas propriedades da zona rural do município de São Francisco de Assis estão entre as mais afetadas pela erosão. Maria Gloreti Brito precisou deixar a localidade de Santa Maria do Ibicuí – entre Alegrete e São Francisco de Assis – e hoje mora em São Leopoldo, na região metropolitana de Porto Alegre: “No meu lote tem muita areia”, conta.
No final dos anos 1970, a Secretaria de Agricultura do Rio Grande do Sul implantou o chamado Plano Piloto de Alegrete, um conjunto de pesquisas empíricas para “recuperação dos desertos” que concluiu que o eucalipto era a espécie que melhor se desenvolvia sobre os areais. Por três décadas, o governo e a iniciativa privada investiram no plantio da árvore, sob pretexto de incorporar áreas desmatadas ou pouco férteis ao sistema produtivo.
Com a chegada da empresa sueco-finlandesa Stora Enso na região, em 2007, tornou-se evidente que os projetos de monocultura de eucaliptos nos pampas, além de não solucionarem o problema da erosão, perpetuavam a lógica do agronegócio no estado. Segundo informações do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de São Francisco de Assis, foram 11 mil hectares vendidos para grandes empresas para produção de eucaliptos no município nos últimos seis anos. “Os pequenos produtores, sem alternativa, são forçados a vir para a cidade, formando novas vilas, favelas, porque ficam sem emprego. E o que antes era terreno de agricultura familiar, virou eucalipto”, lamenta o presidente do sindicato, Aureliano Pires.
Mesmo sem números precisos do êxodo rural na região, a maior preocupação da entidade em 2017 é a segurança alimentar da população. Representante dos pequenos produtores do município, Aureliano Pires chama atenção para o crescimento do mercado consumidor de alimentos na zona urbana: “Antes, a agricultura familiar produzia 70% do que era consumido na cidade. De repente, a demanda por comida aumentou, mas não há quem produza”, alerta. “A gente sabe que essa areia tem a ver com o mau uso da terra, com as monoculturas de soja e de fumo, que tem muito aqui na região. Só que a alternativa que a gente propõe como produtores não é o eucalipto, mas um novo estímulo à agricultura familiar”.
Concentração fundiária
O Rio Grande do Sul é o terceiro maior produtor brasileiro de soja – na safra 2015-2016, o estado produziu 16 milhões de toneladas. “A soja teve uma baixa entre 1985 e 1990, mas de uns dez anos para cá, com a nova retomada do mercado global de commodities, grandes produtores estão voltando a comprar áreas para lavoura naquela região”, aponta Roberto Verdum. Na última safra, segundo a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), cerca de 5,5 milhões de hectares do território gaúcho foram utilizados exclusivamente para o plantio de soja.
O pesquisador da UFRGS reconhece que existe uma relação entre arenização e concentração fundiária na região dos pampas, principalmente no que se refere à sojicultura. “Se você tem uma pequena propriedade e 25% dela é atacada por processos erosivos, isso é um problemão. Mas o grande proprietário geralmente não se importa se há uma ou outra mancha. Para ele, não faz diferença, porque ele tem muitos hectares. Então ele não vai mexer, não vai cuidar”, exemplifica o geógrafo. “Mas os estudos sobre a arenização costumam ficar só na parte técnica, no manejo da terra. O debate que envolve a questão fundiária é um debate político que ainda não foi feito”, admite.