Por Mayara Paixão/Brasil de Fato
Lançada como “anticandidata” à vaga no STF, Beatriz Vargas analisa a situação do Poder Judiciário no país.
Um poder que tem se distanciado da realidade social da população brasileira e cuja composição deve ser urgentemente repensada. Essa é parte da análise feita pela advogada e professora da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB), Beatriz Vargas Ramos, sobre o atual cenário do Poder Judiciário inserido em um contexto do golpe político que destituiu a presidenta eleita Dilma Rousseff.
A “anticandidatura” da professora foi lançada por um grupo de mulheres, profissionais de diversas áreas, em resposta aos nomes até agora cotados para assumirem a vaga do ministro falecido Teori Zavascki no Supremo Tribunal Federal (STF).
Em conversa com o Brasil de Fato, a professora explicou os objetivos de sua anticandidatura e fez uma análise do atual panorama do Poder Judiciário brasileiro. Confira a entrevista na íntegra:
–Qual é o objetivo do manifesto?
–O objetivo geral é demarcar aqueles princípios e bandeiras que esse grupo de mulheres, profissionais de diversas áreas e militantes de vários movimentos, entendem que estão em risco de violação desde o momento em que o golpe político se consumou no país.
A gente não nomeou ninguém das possíveis listas divulgadas, dos apadrinhados pelo governo Temer, porque nós entendemos que, qualquer que seja o nome que ele venha a indicar, essa pessoa não tem legitimidade para entrar no Supremo.
Era impensável que, para um Supremo sobre o regime da Constituição de 1988, fossem sequer cogitados determinados nomes que estão nessa lista. Claro, o mais fundamentalista é o nome do ministro Ives Gandra Martins Filho, mas não é o único nome que, ao nosso modo de ver, representa o conservadorismo. É uma pessoa que, em pleno século XXI, traz de volta essa concepção de que uma mulher deve obediência ao marido, o que é uma afronta às próprias mulheres que têm assento em tribunais superiores. É um radical, mas isso não significa que, se não for o Gandra, qualquer outro ministro poderia satisfazer esse anseio por um Supremo Tribunal Federal cumpridor da missão constitucional. Nós entendemos que não.
O que a gente está dizendo é que o perfil desses ministros em potencial não nos agrada, no sentido de que a gente sabe que a indicação do Temer será sempre de alguém que vai reunir elementos de conservadorismo, de apoio à política neoliberal, ao desmonte do mundo do trabalho. É uma denúncia ideológica, política. E, ao mesmo tempo, estamos nos colocando a respeito do que nós entendemos que deva ser o Supremo, ou um ministro que venha a ocupar a vaga de Teori: um órgão cumpridor, acima de tudo, da missão constitucional de proteção dos direitos fundamentais. E o que estamos lendo na cena pública é que há uma tendência de indicação de alguém que seja adepto do Estado mínimo, do Estado policial.
A anticandidatura é um símbolo: representa aquilo que nós, especialmente as mulheres, não aceitamos como um perfil do futuro integrante da corte constitucional brasileira.
–O Poder Judiciário é visto por muitos como o mais antidemocrático no país, uma vez que não é escolhido pela população. Como você analisa isso?
–Nós entendemos que o Poder Judiciário vem se consolidando cada vez mais como uma ilha conservadora, distante da realidade da maioria da população brasileira. Acaba sendo um poder antidemocrático, porque a forma que ele tem de prestar contas ao cidadão, uma vez que não é eleito, seria pelos fundamentos de suas decisões. O que traz legitimidade a uma decisão é a adequação dela ao princípio constitucional válido.
Mas, atualmente, o Poder Judiciário se desincumbiu da missão de atuar como guardião da Constituição. A sua própria fundamentação das decisões não convence sobre o seu acerto. É um poder que tem deixado de dialogar com a sociedade. Parece que entende que a sua legitimidade se impõe sobre si mesma, e isso não é possível em uma democracia.
Por isso colocamos no manifesto que ele deve estar aberto ao protagonismo social.
Nós achamos que o próprio processo de escolha do ministro do Supremo é antidemocrático e precisa ser repensado. Não existe um confronto de ideias, uma análise do perfil do candidato, de modo a apurar e decidir se ele de fato compreende a missão de ter um assento no STF. As coisas acabam girando em torno de personalidades, e não de ideias. Acho que um ministro do Supremo também deve ter uma proposta de atuação, como em qualquer outro Poder da República. As pessoas que querem ter assento nos órgãos superiores da magistratura deveriam vir à público colocar o seu programa político aberto para a sociedade.
Temos que ter uma solução. Eu não tenho, mas isso envolveria que a gente buscasse conhecer outros processos, em outros lugares do mundo. Será que existe algum tipo de participação popular mais direta?
–Como analisa a atual composição do STF com apenas duas mulheres e nenhuma pessoa negra?
A questão do conservadorismo no Poder Judiciário se reflete nisso também. A cúpulas do judiciário têm sido formadas por uma elite branca e masculina.
O machismo na estrutura do judiciário é velado. Ele aparece em pequenas interdições cotidianas que visam fechar o acesso às cúpulas decisórias às mulheres e, também, aos negros, porque o racismo é estrutural. A sociedade brasileira é racista, o judiciário não seria?
Acho que o judiciário precisa olhar para esses fantasmas com coragem, olhar de frente. É algo semelhante a um processo de psicanálise: você só se cura de um determinado problema psicanalítico quando você consegue ver. E o problema é que o judiciário nega a existência disso. Enquanto negar, não vai ter solução. A gente vê o resultado: o racismo está no sistema de justiça inteiro.
–Como avalia a atuação do Poder Judiciário no contexto de golpe político no Brasil?
Eu tenho olhado para o Poder Judiciário neste momento fazendo uma espécie de analogia com o Poder Moderador da constituição do Império. Era um terceiro poder que tinha o poder total, interferia e dava a última palavra em absolutamente tudo. Acho que o poder judiciário tem se comportado como esse poder.
É um poder sem legitimidade pelo voto — outra semelhança com o Poder Moderador. Isso não quer dizer que não tenha outra forma de legitimidade. Não estou defendendo abertamente o voto para o Poder Judiciário porque não sei até que ponto isso poderia resolver. Temos uma Câmara de Deputados que foi eleita, e qual a qualidade dela? Mas ninguém pode negar que teve legitimidade pelo voto.
É um poder que se comporta como estando acima de todos os demais poderes, uma espécie de pretensão de dar a última palavra. Não que o Poder Judiciário e, principalmente, a Corte Suprema não tenha a última palavra em matéria constitucional. Mas o que a gente percebe hoje é uma figuração na cena pública que vai muito além disso, uma intervenção política direta, inclusive com a performance de alguns daqueles ministros fora dos autos, um ativismo político nada recomendável do ponto de vista de um decoro desse poder.
O Poder Moderador deveria ser a sociedade, a última palavra deveria ser nossa.
–O que representam as recentes declarações de Ives Gandra, ministro do Tribunal Superior do Trabalho, sobre as mulheres e casais homoafetivos?
Atraso, retrocesso, descumprimento, violação e confronto direto com os princípios constitucionais de igualdade, tolerância, isonomia e pluralismo democrático. Ele nega a pluralidade de gênero, nega direitos a pessoas por suas diferenças.
Eu, como mulher e do campo do direito, me sinto ofendida pessoalmente quando um ministro diz que uma mulher deve obediência a um homem. Fico imaginando como que mulheres que têm assento no próprio STF encaram isso, será que aquelas ministras também precisam de um homem para dar aval às decisões delas?
Se uma mulher deve obediência a um homem é porque ela não tem autonomia. Ele nega a capacidade da mulher, a autonomia feminina. Essa posição dele no campo do direito das mulheres, dos homossexuais, a meu ver, é uma expressão de machismo, de homofobia. O discurso dele empodera esse conflito.
Edição BdF: José Eduardo Bernardes