“Uma cultura de reconciliação pessoal e uma justiça que não seja vingativa … é muito revolucionário.”
Luz Jahnen é alemão, produtor de documentários, humanista, pesquisador e defensor da necessidade de superar este sistema baseado na vingança ” é que queremos passar a uma cultura que se apoie na reconciliação como forma de resolução dos conflitos e como base para uma nova cultura não violenta “.
Publicaste um estudo “Vingança, violência e reconciliação”; depois deste e ainda dás workshops sobre o assunto em diferentes países, e agora produzes o documentário “Mais além da vingança”. Parece que fizeste deste assunto a tua prioridade …
De certa forma, sim. No sentido de que, o que me preocupa principalmente, no futuro imediato e mediato é a violência. A actualidade e o horizonte humano me parecem bastante obscurecidos pelos acontecimentos e ameaças de violência de todos os tipos. E como o mundo dos poderes políticos e económicos mostram-se incapazes de abrir caminhos para a superação da violência, acredito que se precisa de iniciativas de indivíduos, grupos e populações inteiras para desenvolver novas respostas para a velha e hoje urgente questão: como os seres humanos podem conviver e desenvolver o projeto humano mais além da violência? Bem, este documentário é uma contribuição a este projeto. E estou sinceramente grato por ter encontrado no Álvaro Orus, um amigo de Madrid, que com a sua experiência como diretor de vários documentários, o seu próprio interesse no assunto e a sua forma de trabalhar fez, em última análise, este filme possível.
A estreia acontecerá neste Congresso, cujo tema para este ano de 2016 é “Desarmamento. Para a construção de uma cultura de paz” e que se realiza em Berlim. Não parece ter sido uma coincidência que a estreia seja aqui.
Sim e não. Desde janeiro temos vindo a trabalhar com Alvaro neste projecto e, graças a que o Alvaro cumpre bem os seus calendários, não como eu (risos), se viu que poderíamos terminar para as datas do Congresso Mundial de IPB em Berlim. E pareceu-nos uma ocasião ideal para apresentá-lo à cerca de mil ativistas e voluntários no tema da paz, em todo o mundo. Nós pareceu o público idóneo para lançar um documentário que fala de superar a vingança, a violência no pessoal e social, etc. E além do mais, como este documentário é uma produção sem fundos estatais ou culturais, uma colaboração de uns quarenta amigos, com as suas contribuições sob a forma de entrevistas, música, traduções, vozes ou que nos receberam nas suas casas enquanto estávamos viajando e pesquisando, parece-nos que combina muito bem com a atitude desses ativistas internacionais que em muitos casos há anos estão com o seu trabalho voluntário e trabalhoso, lutando para promover uma nova cultura da paz. E como este documentário, em última análise, transmite uma mensagem muito esperançosa, mesmo que o assunto seja difícil, esperamos com o mesmo poder ajudar nestas tarefas.
Esclareço que nesta mesma semana, se estreia em sete outros países e agora temos a versão em espanhol, inglês e alemã … Uma vez que é uma produção com caráter internacional, o processo de produção chamou o interesse de alguns dos envolvidos em vários países e em outros … de modo que parece que este documentário está encontrando o seu caminho.
Autores, certos movimentos, etc, dizem que enquanto uma verdadeira reconciliação entre indivíduos e os povos não ocorrer, não se pode construir uma verdadeira cultura de paz
Mmmhhh … acho que temos que inverter algo neste condicionante que mencionas. Uma verdadeira cultura de “paz interior” se traduzirá num outro trato entre as pessoas e os povos. Com a “paz interior” quero dizer a capacidade de reconciliar as minhas feridas, os danos que me fizeram outros. Estes acontecimentos, onde estão? E onde deem? Na minha memória! Assim, toda o chamado pela paz e pela reconciliação começa – penso eu – com uma atitude e disposição muito pessoal para tratar os conflitos vividos e os meus conflitos actuais intencionalmente, e não de modo instintivo. Tratar de compreender profundamente o que aconteceu e por que aconteceu. Não duvido, que desde aí nasce outro trato a outros.
Será como pôr mais atenção a um verdadeiro equilíbrio mental. Com isso, não quero dizer que tenhamos que deixar de reclamar aos poderosos que terminem com a sua violência, na qual produzem tanto sofrimento, miséria e perigo para o futuro. De nenhum modo! Mais forte e mais alta terá que ser a voz dos povos que reclamem a paz e o fim da violência! Mais, desde onde actuamos para conseguir a paz e a superação da violência? Acredito, se me perguntas desde onde pode começar uma verdadeira cultura de paz: Desde o nosso interior, desde um melhor trato a nós mesmos e aos outros!
Acredito também que, vendo que é útil para a memória pessoal, poderia ser saudável para a memória colectiva passar uma vista de olhos, com liberdade e sem culpas ao passado humano. Aí encontras entre as maravilhas da aprendizagem humana, muitos acontecimentos, muito, muito violentos. Tão violentos que nos custam entende-los e integra-los como parte da nossa história, para não falar dos genocídios actuais e dos sinais recentes. Tanto que os povos e países muitas vezes não querem aceita-los porque mancha a sua memoria colectiva. Mas, ponho-te um exemplo: Quanto nos custa ver, compreender e aceitar o nosso passado canibal. Claro que resulta mais agradável e inspirador ouvir um concerto de violino de Mozart. Mas, se queremos superar a violência humana – e isto é irrenunciável e possível – talvez não seja tão mau ter claro donde vimos para compreender com mais claridade que, frente a crise de convivência humana de hoje, podemos e temos que acelerar o passo e ir decididamente à uma cultura de não-violência, uma cultura de reconciliação. Esperemos que as gerações mais jovens se interessem por esta mudança.
De onde surge o interesse de estudar a vingança e a reconciliação?
Nasci num pais, no qual surge uns 25 ou 20 anos antes do meu nascimento, um genocídio contra milhões de seres humanos, o Holocausto. Com 15 anos, tendo crescido na Alemanha Ocidental onde as famílias e o colégios preferiam não falar do passado, eu via pela primeira vez imagens dos campos de concentração. Até aos dias de hoje, faltam-me palavras para o que vi. Mas sim, posso-te dizer que estas imagens romperam os limites ingénuos da minha imaginação. Que seres humanos foram capazes de tratar a outros seres humano assim… estava muito, muito acima do que pudesse pensar que fosse possível. Compreender a violência humana e encontrar caminhos para a sua superação converteu-se a partir desse momento numa profunda necessidade para encontrar sentido na vida. E claro não durou nem dias para que encontrasse a Ghandi e a King, lendo todas as suas ideias, tratando de aplicar ao meu entorno o que compreendi. E também, não passou muitos anos para que encontrasse a Silo, esse argentino que conectou o seu profundo conhecimento do ser humano com o chamado da Não–Violência Activa e a resistência justa ante qualquer tipo de violência e discriminação.
Acreditas possível reconciliar-te sem que primeiro tenha havido justiça para os culpáveis?
Sim. Creio que são factos muito diferentes.
Reconciliar-me com o que me passou, é reconciliar-me com a minha memoria. Um acto pessoal intimo. Grande parte do documentário trata disso e, acredito, explica muito bem.
A justiça para os culpados – se não querer ser só um disfarce da vingança – pode ter duas funções: tomar medidas para evitar que o culpado repita os seus actos, e além do mais, aclarar a memoria do conjunto social sobre os acontecimentos violentos escondidos e negados.
Sim, a justiça nesse sentido pode ajudar a reconhecer ante as vitimas da violência, os males cometidos por esses culpados. Compensar um pouco a impotência vivida como vitima da violência como feito de que a “sociedade” põe-se do seu lado. Afastar também o medo de que isso se pode repetir em qualquer momento do futuro. Mas não necessariamente serve este reconhecimento para a plena reconciliação com o vivido.
Uma cultura de reconciliação pessoal e uma justiça que não seja vingativa, vendo a situação actual, são muito revolucionarias. Não concordam com o sistema actual, que se baseia na violência.
Para que serve reconciliar-se, em definitiva?
Numa primeira leitura serve, sem duvida, a que encontre paz interna com respeito as feridas que me produziu “a vida”. Em lugar de viver acorrentado na compensação das minhas feridas e duelos, abrir-me à plenitude da vida e a liberdade interna. Liberar a energia vital.
Abandonar a insistência em comportamentos vingativos e decidir-se a um tratamento reconciliador contigo e com os outros, significa, em definitiva, uma orientação mental muito diferente, uma orientação construtiva, positiva, a favor de outros. Será uma contribuição muito benéfica para cada um e um bom aporte para o desenvolvimento de uma nova cultura não–violenta. Tem muito sentido. Um caminho, muito, muito inspirador.
Conseguiste alcançar a paz quando se produziram feridas irreparáveis?
Pude reconciliar-me com feridas, que me doeram muito e tinham que ver com situações e relações para mim importantes, que não se poderiam reestabelecer outra vez como “se não tivesse acontecido nada”.
Foi muito comovente, como alguns entrevistados do documentário descreviam exactamente o que me perguntas.
Voltando ao documentário e a alguns aspectos que descreveste no processo para a reconciliação, alguns dos entrevistados expressam o fracasso das suas vidas, o sofrimento que certos acontecimentos lhes geraram e a necessidade profunda de sair dessa situação….
Parece-me que se tratam de experiencias muito pessoais, onde as respostas mecânicas já não são suficientes, estão desgastadas, porque vive-se como uma eterna repetição, muito afastados do desejado registro de aprender e crescer internamente com novas compreensões e experiencias interessantes e lindas.
Acredito que muitos conhecemos situações da vida que se convertem numa plana repetição, produzindo quase sempre a sensação de aprisionamento.
Ver isso finalmente com claridade, pode ser difícil e se pode viver como um fracassado. Mas como se trata de algo que te leva a compreender muitas coisas e experimentar uma renovação profunda da vida, então bem-vindos os fracassos! Assim o entenderam alguns dos entrevistados. Mas, muito melhor que os contem eles…