Por Luis Felipe Miguel*/Blog de Boitempo
Podemos descrever o momento atual como um momento de cidadania sitiada. O arcabouço institucional que garantia o exercício das liberdades necessárias para a atividade política da cidadania não foi revogado – mas também não vigora mais.
Vivemos um momento de retração da democracia e retrocesso nos direitos individuais e coletivos. A cada dia, surgem novas evidências de que estamos perdendo liberdades e recuando para mais longe da institucionalidade democrática que, bem ou mal, havíamos construído a partir do fim da ditadura militar. Trata-se de um processo que não começou com o golpe que derrubou a presidente Dilma Rousseff. O golpe foi um momento necessário para aprofundar algo que vinha já de antes.
Para não voltar atrás demais, é possível situar o início desse processo nas manifestações de junho de 2013, deflagrada pelos protestos contra o aumento nas tarifas do transporte coletivo e pelo direito à mobilidade urbana. As manifestações se expandiram, sua pauta também, de forma desordenada e mesmo contraditória. Seu caráter inicial, que era de uma mobilização claramente popular e progressista, tornou-se disputado; com o incentivo da mídia corporativa, buscou-se dar uma feição antipolítica e conservadora às manifestações, com a luta por melhor serviços do Estado transitando para bandeiras anti-Estado, a partir do núcleo anódino do “combate à corrupção”.
Com isso, as manifestações deixaram um saldo ambíguo, que pôde ser apropriado, de forma parcial e seletiva, por discursos políticos às vezes antagônicos. O único recado inequívoco que as jornadas de junho deram foi que estava entrando em fase de esgotamento o modelo de gestão do poder consagrado até então pelas administrações do Partido dos Trabalhadores, baseado na acomodação de interesses e na tentativa de expandir paulatinamente o acesso a direitos sem afrontar diretamente os privilégios. A crise desse modelo exigia uma solução, fosse ela mais à esquerda ou mais à direita.
O governo Dilma Rousseff foi incapaz de encontrar sua posição nesse novo cenário. Sua resposta às manifestações foi sempre ziguezagueante; quando a presidente se manifestou na tevê, em 17 de junho de 2013, propôs “cinco pactos”, uma mixórdia que incluía uma reforma política potencialmente democratizante, mas também aderia ao receituário conservador da “responsabilidade fiscal”. Fora isso, promessas genéricas em favor da educação, saúde e mobilidade urbana. Tanto quanto os outros integrantes da elite política tradicional, a presidente pensava em como reduzir danos até as eleições presidenciais do ano seguinte – quando, se esperava, tudo voltaria à “normalidade”.
Mas nesse momento as forças do retrocesso já estavam em curso, nos três poderes da República. O Poder Executivo patrocinou medidas que facilitavam a repressão aos movimentos sociais, embalado pela realização dos megaeventos (Copa do Mundo, Olimpíadas) e culminando na chamada Lei Antiterrorismo, com apoio quase unânime no Congresso. E a revogação dos direitos trabalhistas, com a chancela do Supremo Tribunal Federal, começou ainda em 2014, quando foram declaradas inconstitucionais as normas que permitiam ao trabalhador reivindicar a totalidade dos valores do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) não depositados por seu empregador, e não apenas os dos últimos cinco anos. Começava ali a vigorar a doutrina, hoje enunciada abertamente pelo ministro Gilmar Mendes e outros, de que os direitos trabalhistas são “injustos” por protegerem os empregados e não os patrões.
Junho de 2013 também marcou a escalada da repressão policial a manifestações populares, que só se aprofundou desde então. As polícias militares do Paraná, São Paulo e Goiás se notabilizaram pela truculência contra estudantes, contra professores e contra protestos de rua em geral. Talvez não por acaso, os três estados eram (e ainda são) governados pelo PSDB. Mas mesmo durante o governo Dilma Rousseff não se viu qualquer reação dos poderes federais em defesa das liberdades cidadãs emparedadas pela repressão. E é necessário dizer, a bem da verdade, que também não é nada bom o registro das ações de 2013 e 2014 da Brigada Militar gaúcha, à época sob o comando de um governador do PT.
Após as eleições de 2014, ocorreu uma degradação mais acelerada da situação. Vitoriosa numa eleição dramática, Dilma Rousseff adotou o programa do “ajuste fiscal” e ampliou o espaço dos grupos conservadores no governo, numa tentativa vã de restabelecer, ainda que em bases piores, o equilíbrio que Lula conseguira em seus mandatos. Conseguiu apenas afastar os movimentos sociais que poderiam sustentar seu segundo mandato, mas que não se sentiam mais representados por ele. A reação limitada e tardia ao golpe que derrubaria a presidente se deve, em alguma medida, a isso.
Junto com a reeleição de Dilma Rousseff, saiu das urnas de 2014 o Congresso Nacional mais retrógrado da história brasileira. Sob o comando de Eduardo Cunha, escolhido para presidir a Câmara dos Deputados, impôs-se uma pauta de limitação de direitos e cerceamento das liberdades: destruição acelerada da legislação trabalhista vigente, redução da maioridade penal, restrição do acesso ao aborto legal, combate ao combate à homofobia, maiores privilégios para as igrejas, mordaça na educação (“Escola sem Partido”) e assim por diante.
A inércia do Poder Judiciário, em todo esse processo, antecipou a postura que ele adotaria durante o impedimento ilegal da presidente Dilma Rousseff: absoluta conivência com a destruição da legalidade democrática e do sistema de direitos erigido pela Constituição de 1988. Com as honrosas exceções de praxe, a justiça brasileira revelou com nitidez exemplar com quem está sua lealdade. Nas cortes superiores, partícipes ativos do golpe convivem com omissos e acovardados, mas não se viu uma única voz se levantar em defesa da democracia.
O golpe que destituiu a presidente Dilma Rousseff foi, assim, um passo num processo mais longo. Marcou, é verdade, uma etapa nova e crucial, a da revogação, na prática, da regra elementar da democracia eleitoral, isto é, de que a única forma legítima de exercer o poder é tendo obtido o consentimento majoritário da população. O governo que assumiu interinamente em maio e de forma definitiva em agosto, despido de qualquer compromisso popular, aderiu, sem ambiguidades e sem hesitações, à promoção do retrocesso. A entrega do petróleo do pré-sal ao capital estrangeiro e a emenda constitucional que congela o investimento social do Estado são indicadores suficientes da natureza do governo atual. Em ambos os casos, consensos construídos ao longo de décadas – o monopólio estatal do petróleo e a ação pública em favor do combate à desigualdade social – estão sendo revogados sem qualquer tentativa de debate com a sociedade. Embora o rito da aprovação parlamentar esteja seguido, o que ocorre, de fato, é a imposição autoritária de uma agenda pelos detentores do poder, sem negociação, sem qualquer abertura para o diálogo, sem sequer esclarecer a cidadania do que se trata.
O retrocesso que sofremos é obra de um bloco heterogêneo de forças, que se uniu com o intuito de derrotar o “lulismo”, isto é, a política de acomodação de interesses colocada em marcha pelos governos do PT. O grande capital é parte da coalizão, entendendo que no médio prazo as políticas de transferência de renda para os mais pobres e de valorização do poder aquisitivo dos salários, mesmo que tímidas, entrariam em conflito com seus interesses. Também participam dela os integrantes da elite política tradicional, preocupados em estancar a sangria gerada pelo combate à corrupção – que, por sua vez, foi estimulado por medidas adotadas nos próprios governos petistas. Os setores religiosos fundamentalistas encontraram uma oportunidade de ampliar sua influência política e de impor sua agenda pretensamente “moral”, mas que, na prática, significa retrocesso nos direitos de mulheres, de gays, lésbicas e travestis, da população negra. As classes médias, incomodadas com a redução da distância simbólica e material que as separava dos mais pobres, bem como com a diminuição da oferta de uma mão de obra extremamente precarizada de cujo trabalho ela podia usufruir a preço vil, formam a base do novo regime. Como pano de fundo, temos a ofensiva dos Estados Unidos para retomar sua hegemonia na América Latina, que viu ameaçada com a chegada ao poder de vários governos de esquerda ou de centro-esquerda com projetos de maior independência nacional.
É um conjunto heterogêneo, cuja unidade certamente não é perfeita – e as eleições para a prefeitura do Rio de Janeiro, em que os meios de comunicação que apoiaram e apoiam o golpe se colocaram claramente contra o candidato Marcello Crivella, servem de demonstração. No entanto, a implantação do programa comum atual, que é o retrocesso nos direitos, garante a sustentação desta aliança pragmática por mais algum tempo.
Dado este quadro, podemos descrever o momento atual como um momento de cidadania sitiada. O arcabouço institucional que garantia o exercício das liberdades necessárias para a atividade política da cidadania não foi revogado – mas também não vigora mais. É o que favorece a violência policial crescente contra movimentos populares, como temos visto a cada dia e da qual um exemplo expressivo foi a invasão da Escola Florestan Fernandes, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, no último dia 4, por policiais desprovidos de mandado de busca, que entraram atirando. Em circunstâncias assim, é ilusório imaginar que será possível apelar para órgãos judiciários ou mesmo para a imprensa. Cada vez mais, juízes e procuradores colaboram para legitimar a repressão, quando não para promovê-la, como ocorre quando exigem desocupações de espaços ou questionam o debate político em locais que não seriam “apropriados”, como escolas ou universidades. Quanto à mídia, faz tempo que ela é protagonista na campanha pela criminalização dos movimentos sociais.
Há, portanto, um estreitamento das possibilidades de ação. O objetivo da nova ordem é eliminar na raiz qualquer contestação, a fim de implantar, da forma mais acelerada possível, seu programa – que aponta para maior concentração da riqueza, reforço das hierarquias sociais e aumento da exclusão. Diante disso, se impõe, uma vez mais, a clássica pergunta: o que fazer?
Ainda teremos que encontrar esta resposta. É mais fácil saber o que não fazer. Não é possível abrir mão da resistência; quanto mais o fechamento do regime avançar, mais difícil será construir uma resposta popular a ele – e mais o modelo excludente e concentrador há de se enraizar. Tampouco é possível esperar que uma intervenção salvadora venha das instituições, sejam elas o Poder Judiciário ou as eleições. As eleições municipais do mês passado foram uma derrota para as forças progressistas não apenas pelo resultado das urnas, que mostraram como a desinformação, a campanha incessante de demonização da esquerda, o controle da comunicação e a manipulação eleitoral dão as cartas. Foram uma derrota também porque fizeram com que, durante meses, as energias necessárias para edificar a resistência ao golpe e ao retrocesso fossem canalizadas para a disputa eleitoral; pior, muitas vezes para a disputa entre partidos ou forças políticas que, neste momento, precisariam estar forjando sua unidade.
Apostar, por exemplo, que em 2018 teremos uma reversão do quadro é não entender a natureza do processo político em curso. A continuada criminalização da esquerda política torna o próximo pleito presidencial muito mais difícil do que foram os anteriores. O cerceamento dos espaços de debate amplifica a influência já gigantesca dos oligopólios da mídia. Mais importante ainda, a destituição da presidente Dilma Rousseff sinalizou que os interesses dominantes no Brasil definiram uma tutela sob os governantes eleitos. Mesmo que ocorra a vitória eleitoral de uma candidatura mais popular em 2018, ela precisará enfrentar esta tutela, o que significa, em primeiro lugar, que terá margem limitada para reverter o retrocesso destes últimos tempos.
Sepultada a ilusão eleitoralista, trata-se de encontrar caminhos que permitam produzir a luta nas ruas, a cada dia e sem esmorecer. Temos três desafios a serem enfrentados:
(a) Primeiro, produzir a unidade da resistência. Isto é mais, muito mais, do que fazer o PSOL conversar com o PT ou algo assim. É reconhecer que o retrocesso em curso ameaça a todos: visa ampliar a exploração do trabalho ao mesmo tempo em que quer empurrar as mulheres de volta para a esfera doméstica, nega o direito à cidade tanto quanto nega o acesso à cultura, anda para trás na proteção ao meio ambiente e no combate ao racismo, atinge de forma ecumênica os povos indígenas, os portadores de deficiência, os gays, lésbicas e travestis, o funcionalismo público, o estudantado, as aposentadas e os aposentados. Todos e cada um desses grupos vivenciam recuos ou ameaça de recuo nos direitos, na legislação protetora, na presença de organismos do Estado voltados ao diálogo com eles, no investimento público destinado a minorar suas carências.
(b) Trata-se, na verdade, de um recuo no discurso dos direitos, que se tornara hegemônico no debate público brasileiro a partir da Constituição de 1988 – e disputar essa visão de mundo é o segundo desafio. O avanço reacionário no Brasil é o avanço de uma percepção atomista da sociedade, que despreza qualquer forma de solidariedade e lê o direito como privilégio inaceitável num mundo que começa e termina na competição entre as pessoas. Por isso, o único direito que pode ser evocado é o estritamente individual, usado contra a mobilização coletiva: o direito de quem quer ter aula contra quem ocupa a escola, o direito do motorista contra a manifestação de rua, o direito do usuário contra os servidores públicos em greve. É o discurso da teologia da prosperidade presente em tantas igrejas, em que o fiel se torna um investidor em busca de maiores lucros. É o discurso do “empreendedorismo”, criado sob medida para dissolver a solidariedade entre os trabalhadores. Lutar contra isso, recuperar uma cosmovisão baseada na justiça, na igualdade e na solidariedade, é uma tarefa urgente.
(c) Por fim, é necessário entender com clareza que a luta a ser travada não se restringe aos limites da institucionalidade vigente. A institucionalidade sempre é uma arena de contenção das lutas pela transformação social. O Estado capitalista nunca foi neutro, como não é neutra sua lei e não são neutros seus organismos. É até possível que a pressão pela mudança penetre neste Estado, gerando contradições, mas só pode triunfar se também estiver ancorada fortemente do lado de fora. E ainda mais agora, quando esta institucionalidade opera de forma seletiva, cancelando exatamente os mecanismos de proteção de direitos que foram conquistados pela luta popular, enfatizando seus componentes mais autoritários. Nesse momento, está claro que não há transformação possível sem investimento na luta extra-institucional. A ocupação, o escracho, a desobediência civil, essas são armas que precisam ser mobilizadas para o enfrentamento do retrocesso.
É improvável que, no atual momento histórico, seja instaurada no Brasil uma ditadura aberta. Nossas alternativas, assim, ficam entre dois polos. Num deles, permanecemos com uma democracia de fachada, menos que formal. Nela, os dois elementos mais básicos do ordenamento democrático liberal, a competição pelo voto para chegar ao poder e o império da lei, têm sua vigência condicionada à preservação dos interesses dominantes. Isto só, só funcionam na medida em que não colocam em risco a permanência de uma sociedade altamente hierarquizada e desigual, bem como de nossa posição periférica na divisão mundial do trabalho. O outro polo é a recusa a este arranjo. Isto é, buscar uma democracia renovada e efetiva, que se construa no enfrentamento dos aparatos vigentes de reprodução das opressões. Para isso, precisamos, em primeiro lugar, ser capazes de organizar a resistência cotidiana ao fechamento do regime. Como avançar nesse programa, sem abrir mão do realismo político: essa é a questão que está colocada.
(Este artigo é baseado na intervenção que fiz na mesa-redonda “A conjuntura brasileira e seus impactos sobre o direito à cidade”, na última terça-feira, durante o seminário nacional “A luta popular urbana e os desafios da construção do bem viver e do direito à cidade”, organizado pela FASE e pela Fundação Rosa Luxemburgo, no Recife.)
* Luis Felipe Miguel é professor do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília, onde coordena o Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades – Demodê, que mantém o Blog do Demodê, onde escreve regularmente.