Por Equipe MigraMundo
Os discursos do presidente do Brasil abriram os trabalhos da Assembleia Geral da ONU, nos dias 19 e 20 de setembro, como de costume na história da organização. Nas palavras de Michel Temer, o atual chefe de Estado, aparece um Brasil benevolente, que “acolheu 95 mil refugiados de 75 nacionalidades” nos últimos anos, e que convida as nações a facilitar a inclusão e a não criminalizar a migração.
Mas o discurso – que será analisado apenas em relação às falas relacionadas às migrações, para se ater ao foco deste site – não resiste sequer a uma olhada de relance nos dados reais e na situação jurídica, social e política dos migrantes no Brasil – sejam eles refugiados ou não.
Para começar, os tais “95 mil refugiados” incluem os menos de 9 mil refugiados reconhecidos de fato pelo governo brasileiro – dados do Comitê Nacional para Refugiados, o Conare – com os cerca de 85 mil haitianos que entraram no país desde o terremoto de 2010 que arrasou a nação caribenha. Uma verdadeira “pedalada” com números oficiais sobre a mobilidade humana no Brasil.
As palavras “non sense” de Temer são reforçadas pelo atual ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, que afirmou “ser discriminatório excluir os haitianos da possibilidade de serem tratados como refugiados” “só porque são da América Latina. Ou seja, utiliza-se de um estereótipo, de um preconceito para, teoricamente, combater outro…
O país que nas palavras de Temer é acolhedor com migrantes e refugiados, em verdade trata a migração como caso de polícia. Afinal, quem regula as migrações no Brasil é o famigerado Estatuto do Estrangeiro, que vê o migrante como uma potencial ameaça à segurança nacional. E tem na Polícia Federal a grande executora e beneficiária de um sistema no qual o migrante é repleto de deveres e tem sua cidadania cerceada. Um sistema tão nefasto que, em sua maioria, vai contra a Constituição vigente no Brasil – ou seja, as migrações no Brasil são regidas por um código inconstitucional.
Essa situação esquizofrênica cria diversos limbos para os migrantes, em suas diversas formas. Limbos esses que muitas vezes são tratados com medidas paliativas. E uma delas é o chamado visto humanitário, concedido principalmente para os haitianos que vieram ao Brasil a partir de 2010. Visto esse que tem validade de cinco anos – ou seja, após esse período, o portador do visto fica novamente em situação indocumentada.
Ora, um país que se propõe defensor da inclusão e da não criminalização não pode ter uma política migratória baseada apenas em vistos provisórios, em “jeitinhos” e paliativos. No entanto, é preciso reconhecer que o visto humanitário, sim, cumpriu um papel importante na regularização – ainda que precária – dos haitianos que chegaram ao Brasil. Mas o período de concessão do visto humanitário para os haitianos termina em outubro deste ano, e uma não renovação dessa medida representa um retrocesso em relação esse grupo.
Existe atualmente toda uma discussão no âmbito global sobre os chamados refugiados ambientais, que são deslocamentos gerados por conta de mudanças abruptas do clima ou desastres naturais de grandes proporções, como elevação do nível dos mares que ameaça engolir países inteiros, tsunamis, desertificação e, inclusive, terremotos como o que devastou o Haiti em 2010. Ainda não existe um consenso sobre como lidar com os deslocamentos gerados por fatores ambientais, que tampouco aparecem entre os critérios que definem se uma pessoa é refugiada ou não. Ainda que determinado conceito não tenha sido incorporado à Convenção que define o que é um refugiado, a proteção e a garantia de direitos a pessoas mais vulneráveis transcendem qualquer pressuposto jurídico.
Vale lembrar que tramita atualmente na Câmara dos Deputados a Lei 2516/2015, que revoga o Estatuto do Estrangeiro e cria a nova Lei de Migração, esta com o paradigma de ver a migração sob o ponto de vista dos direitos humanos. No entanto, os debates se arrastam no Legislativo e a combinação de lobbies de quem não quer perder poderes com uma mudança na lei e divergências dentro da própria sociedade civil engajada na temática migratória emperram as discussões e uma futura adoção da nova lei. E assim se perpetua uma luta que remonta ao início da década de 1990, quando começaram as discussões para mudança do Estatuto do Estrangeiro.
Exemplos do quão distante da realidade está o discurso de Temer na ONU não faltam. Mesmo assim, é notável a força de milhares de brasileiros e migrantes que, mesmo apresentando divergências, conseguem desenvolver projetos e até mesmo pautar o poder público local em certos casos. Eles chamam a atenção para um fato que é ignorado por grande parte da sociedade, mas que é cada vez mais latente: o de que os migrantes, independente da nacionalidade ou status migratório, são cidadãos e parte da sociedade – e merecem ser tratados como tal.