Tradução de Raphael Sanz
Cada vez que nos enterramos de uma notícia desagradável, uma violação sexual, um feminicídio, um massacre ou um ato terrorista, nossa primeira reação e última é consternarmos e ficarmos ali; como se com isso cumpríssemos com nossa cota de consciência social, como mostra do nosso compromisso coletivo. Com toda a injustiça e dor que através da história fez este mundo em pedaços, nós seguimos nos refugiando em nossa egolatria. Até que a dor não nos toque de perto e não nos rasgue a pé em carne viva, nós seguiremos alheios, desumanos e insensíveis à desgraça alheia.
Desgraça que é resultado de nosso silêncio, apatia e inconsequência política. Defender a alegria, dizemos, como escudo para não nos ver na necessidade de transformar o pensamento em ação. Medo de nos armar de valor e lutar pelo que é justo, porque enquanto não sejamos nós os maculados, tudo está bem.
Consternarmos, com um grito de espanto, em uma missa de corpo presente. Consternarmos como um louvor, em uma coroa de flores. Em um instante de sossego que nos apazigua e nos exclui da realidade. E nos vestimos de gala e brindamos e ousamos festejar o dito privilégio da nossa felicidade. De ter um jardim próprio enquanto milhares morrem de fome nas ruas do mundo. De ter mobiliado uma sala de jantar onde milhares comem do lixo. De ter água quente e banheira, enquanto muitos morrem de sede.
E festejamos essa lição fina que acabamos de comprar, o par de sapatos novos que combina com nossa coleção, a mudança de telefone inteligente e nossas viagens de férias que necessitamos expor ao mundo através das redes sociais, para que nos vejam pois, como pessoas com vidas cheias de prazer. Privilegiados!
E mostramos ao mundo os reconhecimentos que nos dão, imersos na vaidade que nos faz sentir únicos, imortais, importantes. Sobressalentes. Enquanto isso o mundo desmorona na velocidade da luz. Enquanto milhares perecem nas entrelinhas do capital, mesmo que nos transforme em escravos do consumismo, nos aparta da realidade e nos mantenha em um perene estado de choque que nos manipula como bonecos de corda, marionetes.
E a vida é outra quando estamos longe da dor, por isso fugimos dela, não a encaramos. Por isso fingimos não vê-la, nos fazemos de desentendidos quando a vida nos pede a gritos que reajamos. E por isso as mortes de milhares de crianças por fome nos consternam momentaneamente. O que causam em nossa consciência as crianças que morrem vítimas de genocídio? Também importam? Quanto importam? O que é um genocídio para nós? Qual é o significado de uma guerra? De uma invasão?
Mas a vida segue, dizemos, e nos escudamos no mundinho da indolência e da nossa alegria e felicidade, que pregamos por aí. Ali sim estamos a salvo, ali podemos viver a nossa banda larga, sem que um ápice de nossa consciência nos encare. E nos mostre nossa podridão humana, nos faça sentir o fedor que expele da nossa pele moribunda. Nos acomodamos para que sejam outros os que vão para a linha de frente. Pobres diabos sonhadores de merda!
Nos dói a vida somente quando a água quente acaba, quando a luz se vai, quando acaba o shampoo, ou quando por culpa do trânsito chegamos tarde a um compromisso. E nos sentimos as pessoas mais infelizes do mundo quando chega o Natal e não temos dinheiro para comprar uma ceia e uma festa com essa gala, ao estilo burguês.
E curiosamente não desaba nosso mundo quando vemos que na Síria a invasão e o genocídio estão acabando com a beleza da primavera que sempre floresceu no sorriso das crianças. Ou o que está fazendo Israel com a Palestina, esse genocídio, esse roubo de terras, essa usurpação. Ou quando o mar devora quinhentos refugiados por semana. Ou quando o deserto disseca dezenas de imigrantes indocumentados que buscam chegar aos Estados Unidos. Não nos dói a alma quando um governo neoliberal pelo qual votamos mói a pau o mais maculados pelo sistema e pela impunidade.
Nos dói, sim, e nos consternamos para a vida toda quando a tragédia bate a porta da nossa casa e a habita junto conosco. E nos consternamos quando o reconhecimento e o aplauso não chegam, então nos deprimimos e nos deixamos cair por conta do nosso narcisismo.
E enquanto nós estamos deprimidos por banalidade, porque não temos dinheiro para fazer um corte de cabelo ou para comprar essa garrafa de cachaça de exportação, a vida em outras latitudes do planeta, ou mesmo virando a esquina, está nos pedindo a gritos que voltemos a enxergar. Se apenas tivéssemos a decência de olhar, escutar e sentir tudo o que o mundo nos diz constantemente, seríamos outra humanidade, não a porcaria nojenta que habita este planeta.
Consternarmos não é suficiente. O mar não seria mar sem a força das ondas e da tempestade.