A avaliação dos erros do lulismo e dos governos do PT é condição imprescindível na luta em defesa
da democracia, por reformas estruturais e para a organização e fortalecimento das classes trabalhadoras.
O governo Dilma Rousseff está acabado, foi arrasado pela crise econômica, pelo descontentamento da população e pelo Congresso Nacional que ajudou a eleger ao abrigar no “presidencialismo de coalizão” políticos conservadores e partidos de direita. Mesmo com todo o fisiologismo praticado pelo Palácio do Planalto para assegurar uma base parlamentar contra o impeachment, o processo foi aprovado por 367 a 137 votos. Como governar com essa minoria e com ampla e massiva desaprovação na sociedade?
Por trás da queda estão, evidentemente, as forças do capital, os grupos que disputam o gerenciamento das políticas neoliberais, as classes médias empenhadas na manutenção de seu padrão de vida, os políticos oportunistas que topam qualquer parada para agradar eventuais donos do poder e ao mesmo tempo seus currais eleitorais – e as classes trabalhadoras e setores populares não organizados que estão na moita em cauteloso distanciamento. Como governar diante de tamanha confluência de interesses pelo impeachment?
Mas, também, o governo Dilma acabou por seus próprios erros, pela desatenção com os reais problemas do povo brasileiro e pelo distanciamento de compromissos programáticos, por não ter dado o devido respeito aos desvios éticos que campearam nas diferentes instâncias da administração praticados por seu partido e por demais partidos da coalizão ou não. Em nenhum momento os casos revelados pela imprensa e pelas instituições da República (Polícia Federal, Ministério Público e Judiciário) foram devidamente repudiados e condenados. Ao contrário, o PT e o governo focaram mais na inconveniência das delações e vazamentos do que no mérito das denúncias.
Não cola mais na sociedade a visão maniqueísta do bem e do mal, de que “nós” não praticamos crimes e defendemos a democracia e que “eles” são de direita, corruptos e golpistas. O desgaste político do governo Dilma e do PT começou bem antes das eleições de 2014, quando apenas 38% dos eleitores votaram pela reeleição, enquanto 62% dos eleitores ficaram com Aécio, branco, nulo e abstenção.
Começou bem antes das fantasias criadas pelo marketing eleitoral para encobrir a real situação da economia e bem antes do racha com o PMDB e demais siglas da chamada base aliada.
Alienação
Em seus primeiros pronunciamentos após a aprovação do processo de impeachment na Câmara dos Deputados, dias 18 e 19 de abril, a presidente Dilma tratou o episódio como se fosse tão somente um problema de conspiração, traição e golpe contra ela, apenas uma perseguição pessoal para puni-la por um crime que não cometeu. Fez questão de dizer que se sente injustiçada e indignada, que é vítima da truculência da oposição. Insiste no papel de vítima. Não fez qualquer referência à inabilidade política e aos enormes equívocos administrativos e políticos de seu governo. Atua dessa forma por decisão tática, cinismo ou alienação da realidade?
Da mesma maneira, não fez qualquer referência ao crescente descontentamento da população com seu governo, notadamente desde os protestos de 2013. Também não se referiu ao prolongado sofrimento da população, que paga caro com o terrível aumento de desemprego, arrocho salarial, inflação, inadimplência e perda de proteção social nos serviços públicos e nos programas do Estado. Em nenhum momento das entrevistas dadas aos jornalistas brasileiros, dia 18, e aos jornalistas estrangeiros, dia 19, a presidente fez qualquer referência aos danos causados por seu governo aos milhões de trabalhadores brasileiros – e ao povo em geral – nos últimos três anos. Tratou a crise econômica apenas como um desdobramento da crise internacional.
Será que ela se esqueceu das promessas feitas logo após os protestos de junho de 2013, quando já estava claro o forte descontentamento na sociedade? Será que ela se esqueceu das promessas feitas na campanha eleitoral de 2014 e que foram anuladas por atos do governo logo após a divulgação do resultado das urnas? Será que ela se esqueceu de que aprovou mudança no seguro-desemprego, no auxílio-doença, na pensão por morte e no auxílio-social? Será que ela se esqueceu do congelamento do Bolsa-Família e dos cortes realizados no Minha Casa Minha Vida, ProUni, Pronatec e FIES? Será que ela se esqueceu de que havia colocado na ordem do dia a volta da CPMF para tirar mais dinheiro do povo e a reforma na previdência para reduzir direitos dos trabalhadores? Será que ela se esqueceu da escalada dos juros da Selic e da enorme explosão da dívida pública? Será que ela se esqueceu dos tarifaços divulgados logo após as eleições nos preços dos combustíveis e da energia elétrica? Será que ela se esqueceu do brutal estrago feito durante os governos do PT ao patrimônio da Petrobras?
Enfim, após ser desbancada da Presidência da República em polêmico processo de impeachment, Dilma Rousseff quer ser eterna vítima de um golpe da direita (de seus aliados até recentemente), fala em resistir e lutar até o último momento para recuperar o cargo, mas em nenhum momento procura verificar porque o seu governo perdeu respaldo na sociedade e no Congresso Nacional. Por quê? Onde a coisa desandou? Por que os eleitores e os parlamentares da base aliada passaram a desaprovar o governo e a torcer pelo impeachment? Não dá para colocar toda a culpa na conspiração do vice Temer, na ação nefasta da grande mídia, nas manobras de Cunha e nas investigações da Operação Lava Jato.
Inconsequência
Sem a realização de uma profunda avaliação crítica da derrocada do Governo Dilma e das forças de esquerda que embarcaram no lulismo, desde a Carta ao Povo Brasileiro, em 2002, torna inconsequente contestar o golpe político-institucional aplicado pela Câmara dos Deputados no dia 17 de abril, assim como a abertura do processo no Senado, assim como defender a democracia focada na volta da Dilma, assim como defender a cassação de todos os políticos beneficiados com os recursos roubados da Petrobras, assim como lutar por reformas estruturais, assim como defender eleições gerais para tentar superar a crise política.
A luta de resistência dos trabalhadores e de defesa da democracia dificilmente terá ampla credibilidade na sociedade se toda a culpa do processo continuar sendo atribuída à maquinação diabólica da oposição de direita. A luta terá maior respaldo popular e das classes trabalhadoras se a presidente Dilma Rousseff e o PT realizarem uma profunda autocrítica de seus próprios erros e deslizes em todo esse processo. Afinal, Dilma e PT tiveram mais votos do que Aécio Neves nas eleições presidenciais de 2014, ganharam mais quatro anos de mandato. Mas, por que não tiveram competência política para se conservar no governo? Por que não conseguiram ampliar o apoio na sociedade? Por que não adotaram medidas de interesse dos trabalhadores e dos setores populares?
Não basta colocar a culpa na oposição. Nem dá para alegar desconhecimento das regras do jogo e do perfil dos jogadores. Para apostar no futuro, Dilma e PT precisam admitir primeiro quais foram os seus erros – políticos, econômicos, administrativos e éticos. É o mínimo que se espera de quem pleiteia representar parcelas dos trabalhadores e se colocar no campo da esquerda. Sem fazer autocrítica, Dilma e o PT persistem na trilha da despolitização e do alheamento que estão trilhando de forma explícita e acelerada desde os protestos massivos de 2013. A construção de processo de luta e a reviravolta política em defesa das classes trabalhadoras passam pelo resgate do compromisso ético, coerência programática, autenticidade da representação, articulação das forças de esquerda e pela apresentação de projeto de poder expurgado dos erros do passado.