Em reviravolta extraordinária, governo Dilma promete demarcar terra indígena e parece cancelar hidrelétrica no Rio Tapajós. Arqueóloga presente entre a etnia analisa conquista e seus limites
Por Bruna Rocha*
Os últimos dias têm passado como entre sonhos e pesadelos. Em número maior do que foi reconhecido nos últimos seis anos, uma série de demarcações de terras indígenas e territórios quilombolas foram publicadas no Diário Oficial da União. Isto, claro, é saudado por todos nós. No entanto, o mandato da presidente Dilma Rousseff está perto de ser suspenso por representantes corruptos das bancadas ruralista, evangélica e da indústria de armamentos; nunca imaginei que um dia testemunhasse um golpe parlamentar no Brasil. Ao assistir os desdobramentos do pavoroso espetáculo, penso muitas vezes naqueles, a presidente entre eles, que lutaram – alguns dando a própria vida – contra a ditadura que governou o país de 1964 a 1985.
Esses dois eventos – o reconhecimento territorial e a proximidade do impeachment – podem estar conectados. Aparentemente, o Partido dos Trabalhadores percebeu que seu tempo à frente do governo está se esgotando e por isso estaria adotando estas medidas – tanto como um aceno para sua tradicional base de apoio de esquerda, quanto para deixar “obstáculos” no caminho dos que estão prestes a usurpar o poder.
Nestes dias estranhos, as contradições não param por aí. O Partido dos Trabalhadores foi responsável pela execução de vários projetos inicialmente concebidos durante o regime militar – sendo a hidrelétrica de Belo Monte o mais notório, provocando etnocídio, caos e destruição no rio Xingu.
Mas, por ora, vamos comemorar essas vitórias inesperadas. Ainda estou tentando entender o que aconteceu na última semana com o reconhecimento oficial da Terra Indígena Sawre Muybu, também conhecida como Daje Kapap Eipi entre os Munduruku. Ao longo dos últimos anos, trabalhando como arqueóloga nesta área, tenho aprendido muito com eles e com os beiradeiros (ribeirinhos) das comunidades de Montanha e Mangabal que estavam ao seu lado durante os momentos mais duros, ajudando-os a abrir uma trilha no meio da floresta para assinalar os limites de sua terra durante as várias etapas da auto-demarcação. Começaram essa ação após repetidos atrasos no reconhecimento oficial do seu território — que duraram anos, enquanto se acelerava o processo de licenciamento ambiental para a construção de barragens na área.
As comunidades ribeirinhas e uma constelação de pessoas de diversos lugares trabalharam – e muito – para ajudar os Munduruku a conseguir essa vitória histórica. E agora, ao que parece, pode-se abrir o caminho para algo que há muito tempo parecia impossível: o cancelamento da maior barragem planejada para a Amazônia, a hidrelétrica de São Luiz do Tapajós, que inundaria 723 quilômetros quadrados de floresta atualmente ocupada por povos da floresta e unidades de conservação. O Ibama suspendeu o processo de licenciamento ambiental relacionado a esta barragem, algo que poderá prenunciar a desistência do projeto. Quase inacreditável!
É impossível dizer ao que esta reviravolta pode levar e é provável que venha uma reação. O destino da área agora depende da palavra final da Funai, que precisa se pronunciar conclusivamente sobre a possibilidade de inundação da Terra Indígena. No entanto, com mudanças políticas importantes acontecendo a todo o momento nos altos níveis do governo, é muito cedo para se sentir confiante de que vencemos definitivamente. A Funai poderá ainda argumentar que é possível remover os Munduruku para outra parte do seu território para abrir caminho para a inundação pela barragem, contornando, de forma perversa, a Constituição brasileira — que proíbe estritamente o deslocamento forçado de povos indígenas de suas terras.
Não obstante, a conquista é um marco para os Munduruku e seus aliados. Os Munduruku sempre insistiram que este processo aparentemente irreversível poderia ser interrompido. Agora estão próximos de conseguir isso: é uma profunda lição para todos nós.
Neste momento é importante também lembrar algumas das muitas dificuldades que os Munduruku enfrentaram. A primeira delas foi a superação da invisibilidade. Lembro-me da propaganda do Programa de Aceleração do Crescimento que afirmava que a barragem era um projeto ambientalmente viável que afetaria apenas “florestas virgens”, que logo se regenerariam. Esta simulação de sustentabilidade foi vergonhosamente apoiada pela ONG ambientalista WWF, ou World Wildlife Fund [1].
Enfrentaram também fome na auto-demarcação; sofreram com água contaminada – este segue sendo um problema perene; o cacique Juarez e outro apoiador foram ameaçados de morte. Superaram inúmeros revezes políticos e a intimidação estatal imposta pelas operação El Dorado que levou à morte de Adenilson Kirixi e pela operação Tapajós – que entra para o registro como momento de maior vergonha para a ciência do país, quando se aceitou que pesquisadores fossem escoltados por homens fortemente armados da Força Nacional de Segurança enquanto helicópteros sobrevoavam, invadindo territórios indígenas e ribeirinhos (o termo “pesquisador” continua sendo associado entre os povos da floresta que ali vivem a tentativas de expropriação territorial por empreendimentos/governo).
Mesmo assim, a serenidade de Juarez seguiu, inabalável, sua generosidade firme. Acabo de conversar com ele e perguntei o que eles estão pensando sobre a situação absolutamente inesperada por todos. Respondeu que a publicação do relatório foi motivo de grande felicidade, porém, não é possível compreender o que está por trás destes desenvolvimentos e ainda há uma sensação de grande insegurança, um receio de que a Funai venha a permitir o alagamento parcial da Terra Indígena. Por isso, seguem preocupados com o que pode vir a acontecer. Explicou ainda que “esse território é para garantir o nosso futuro, o futuro dos nossos netos e do povo brasileiro”. Juarez faz um apelo, para que “o mundo não deixe que a nossa luta seja perdida. Queremos que o mundo olhe e dê essa força pra nós, para que esta barragem – e nenhuma outra no rio Tapajós – seja construída”.
Por tudo isso, é uma experiência incrível estar na Amazônia neste momento e testemunhar diretamente como essas mudanças influenciam na vida das pessoas que conhecemos pessoalmente.
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[1] Isto é claramente visível nos seus mapas interativos da região, supostamente destinados a mostrar os impactos da construção da barragem. Os mapas relacionado aos projetos hidrelétricos de São Luiz do Tapajós e Jatobá ignoram a ocupação indígena e beiradeia, somente apresentam espécies de animais e plantas conhecidas na área. Mesmo neste termos constitui-se num esforço duvidoso, uma vez que, em termos científicos, esta é uma das regiões menos conhecidas da Amazônia. Veja http://www.wwf.org.br/natureza_brasileira/reducao_de_impactos2/lep/tapajos/ e clique no ponto que representa São Luiz do Tapajós, onde se afirma que “0” territórios indígenas seriam afetados pela construção da barragem.
* Bruna Rocha
Bruna Rocha é professora de arqueologia na UFOPA (Universidade Federal do Oeste do Pará). Texto publicado originalmente em inglês no dia 25 de abril de 2016 no Latin America Bureau: http://lab.org.uk/signs-of-hope-for-the-munduruku. Versão em português por Cândido Cunha, atualizada por Bruna Rocha para o blog Língua Ferina.