Por Luiz Carlos Azenha | Publicado em 16 de abril de 2016
Nova York, anos 80. Eu era correspondente da TV Manchete. O grupo imobiliário japonês Mitsubishi compra 50% do Rockefeller Center, um símbolo turístico e empresarial dos Estados Unidos. A imprensa local não perdeu o simbolismo do fato, que veio na esteira de outros investimentos japoneses nos Estados Unidos. Sobrava poupança no Japão.
Um livro havia atiçado o nacionalismo dos norte-americanos: Japão como número um, de Ezra Vogel. Era a ameaça amarela, apresentada agora em tons mais diplomáticos. Falar em declínio dos EUA é garantia de capturar a atenção da opinião pública.
Por trás daquela onda semi-xenofóbica, havia um interesse claríssimo, expresso muitas vezes nas capas de jornais, especialmente no grande diário de negócios, o Wall Street Journal.
Empresas americanas queriam abrir o mercado japonês. O argumento era de que, enquanto o grupo Mitsubishi podia comprar livremente o Rockefeller Center (um negócio que provou-se péssimo), empresas como o Walmart enfrentavam barreiras para entrar no Japão, que dava vantagens aos donos de biroscas locais.
Resumo do filme: eram norte-americanos estimulando uma onda sobre a ascensão inevitável do Japão — com a consequente decadência dos Estados Unidos — para cobrar concessões do governo japonês. Fique registrado: as previsões provaram-se estapafúrdias e os anos 90 foram a década perdida para os japoneses.
Passei, ao todo, quase 20 anos nos Estados Unidos. Glen Burnie, Maryland. Manhattan, Queens, Roosevelt Island, Nova York. Bethesda, Maryland (nas cercanias de Washington).
Testemunhei mais de uma vez o fenômeno que descrevi acima: o estímulo ao nacionalismo com o objetivo de extrair concessões de parceiros econômicos. Hoje, a promessa mais importante do candidato republicano Donald Trump é jogar duro com China. Logo a China, que com sua mão-de-obra massiva e barata ajudou a salvar o capitalismo.
Por outro lado, em minha carreira de correspondente não me lembro de ter feito uma única reportagem em que norte-americanos tenham atirado concretamente contra seus próprios interesses.
Cobri, por exemplo, o escândalo dos gastos do Pentágono, que são denunciados desde os anos 80.
O mais famoso episódio foi o da tampa de privada pela qual uma empreiteira teria cobrado 640 dólares. Na verdade, tratava-se de um lavatório para um avião. Exageros à parte, é aceito nos Estados Unidos que existe um conluio entre parlamentares, fornecedores do Pentágono e o Departamento de Defesa. As instalações militares se espalham por centenas de distritos eleitorais, garantindo intercâmbio de verbas e votos.
Apesar disso, a atuação do FBI em casos de corrupção é absolutamente discreta. Uma busca e apreensão na sede do Pentágono, transmitida ao vivo com helicópteros pelas redes ABC, CBS e NBC, é inimaginável. Não porque não haja corrupção. É porque jamais os Estados Unidos exporiam suas estranhas em público para o mundo, com repercussões óbvias para a política externa. Discrição, sempre, é o que rege o aparelho estatal.
Acreditem: mesmo para experientes jornalistas norte-americanos, extrair um documento oficial vazado por uma autoridade é uma impossibilidade. Acima da luta política, estão os interesses coletivos. Não é por acaso que eles começaram na costa Leste da América do Norte e acabaram no Alasca.
ESCOLA DAS AMÉRICAS x ESCOLA DE PROMOTORES E JUÍZES
Fundada em 1946, funcionando inicialmente em uma base militar no Panamá, a Escola das Américas ficou famosa. Seu objetivo, na guerra fria, era estabelecer uma relação próxima entre as elites militares dos Estados Unidos e de todos os países da América Latina. Teve um papel crucial no futuro do continente. Através dela, Washington desenvolvia assets, o jargão utilizado para definir aliados que podem ter um papel crucial para a política externa do país.
As relações desenvolvidas na escola foram essenciais para a influência de Washington em todo o seu quintal, especialmente na instalação de ditaduras anticomunistas nos anos 60 e 70.
Porém, vivemos novos tempos. Ditaduras como aquelas não interessam mais. Vivemos no mundo do consenso forjado pela cultura e pela mídia.
Hoje, como está comprovado pela análise das várias revoluções de veludo que aconteceram no entorno da ex-União Soviética e no Oriente Médio, a influência externa na política local se dá através da sociedade civil, notadamente da atuação de jovens via internet.
Os Estados Unidos têm uma longa história de diplomacia civil. É o outro lado das operações clandestinas. Não se trata de comprar corações e mentes, mas de naturalizar a hierarquia que coloca Washington sempre numa posição superior — política, diplomática, econômica e culturalmente.
Hoje os Estados Unidos são os maiores interessados na cooperação internacional com promotorias de outros países.
Há vários motivos para isso. Em primeiro lugar, é preciso forjar uma legislação internacional razoavelmente homogênea que reduza os custos de atuação das grandes corporações. É um consenso que interessa a Washington construir, à sua imagem e semelhança. É o arcabouço jurídico de um governo mundial sob tutela dos Estados Unidos.
Em segundo lugar, existe uma óbvia assimetria que favorece os Estados Unidos. O país dispõe de um aparato policial e de inteligência que é mastodôntico. Passa pelo FBI, pela CIA, pela National Security Agency (aquela que ouviu conversas de líderes mundiais, inclusive de Dilma Rousseff) e pelo Departament of Homeland Security.
Quais foram as situações concretas em que estas agências ajudaram o Brasil a investigar, por exemplo, as atividades da Boeing ou da Chevron?
É de uma obviedade gritante: a capacidade dos Estados Unidos de investigar e denunciar a corrupção alheia é infinitamente maior que a de qualquer outro país em fazer o mesmo em relação a empresas baseadas nos Estados Unidos.
Não há como garantir que esta “colaboração” não seja assimétrica ou politicamente dirigida. Vivemos na Era da Informação — os Panama Papers que o digam.
Será que teremos Delaware Papers? Delaware, para quem não sabe, é um paraíso fiscal onde estão instaladas as sedes de grandes corporações norte-americanas, que assim tiram proveito de vantagens fiscais.
Por outro lado, o Ministério Público Federal vai ajudar os Estados Unidos a processar nossa maior empresa, a Petrobras. Executivos da Embraer serão acionados no Brasil por pagar propina na República Dominicana. O almirante Othon Luiz Pinheiro da Silva, pai do programa nuclear brasileiro, foi preso por determinação do juiz Sérgio Moro. Dados relativos a operações da Eletronuclear se tornaram públicos.
Não, em nenhum momento apoiamos a corrupção ou o acobertamento de corruptos. Porém, o MPF e a Justiça brasileira não podem desconsiderar os aspectos geopolíticos de sua atuação. O mundo mudou. Estamos todos interconectados. A guerra de informação deixou de ser algo dos livros de ficção.
Por isso, é preciso agir sempre com ponderação, com discrição e sem espetáculo. Nunca em defesa dos corruptos, mas da preservação de algo que vai além da presunção de inocência: há grandes interesses econômicos em jogo e a ingenuidade pode custar caríssimo.
Exemplo? Uma empresa tem como um de seus principais bens a imagem que ela é capaz de projetar no mercado internacional. A maior construtora brasileira, capaz de competir por obras em todo o mundo, será enterrada pela Operação Lava Jato. Mas a Odebrecht não operou no vácuo, como ficou demonstrado na contabilidade paralela que o Jornal Nacional omitiu: políticos de praticamente todos os partidos operaram em cumplicidade com a empresa.
É preciso acabar com a prática, não destruir a empresa.
O IDEALISMO DO JUIZ MORO
O juiz Sérgio Moro é obcecado por botar abaixo o sistema político brasileiro. Isso está claro nas próprias palavras que escreveu sobre a Operação Mãos Limpas. Seria uma impossibilidade se o sistema político fosse de fato representativo e não estivesse corrompido por relação promíscua com os grandes financiadores.
Porém, o método “revolucionário” de Moro pode, ao fim e ao cabo, trazer mais danos que benefícios ao Brasil. Assim como o MPF, o juiz desconsidera circunstâncias geopolíticas e econômicas num momento de profunda crise mundial.
Além de apaixonado pela Operação Mãos Limpas, o juiz Moro também demonstra uma grande admiração pela Justiça dos Estados Unidos.
Em seus textos e despachos, ele frequentemente cita decisões tomadas por juizes americanos.
Talvez isso tenha se desenvolvido nas duas ocasiões em que Moro foi estagiar lá. Em 1998, passou um mês na Harvard Law School, em Boston. Em 2007, foi fazer uma visita de três semanas bancada pelo Departamento de Estado.
Citado pelo Washington Post, o advogado Carlos Zucolotto, amigo de Moro, disse ao jornal que o juiz do Paraná tem admiração pelo rigor e eficiência da Justiça dos Estados Unidos. “Ele está transmitindo uma experiência da cultura norte-americana, de como os advogados de lá se comportam em processos como este”, disse Zucolotto ao jornal.
Devemos dar um desconto ao amigo de Moro, que pode ter ficado entusiasmado ao dar entrevista ao jornalista Dom Phillips. Porém, é improvável que as breves passagens de Moro pelos Estados Unidos tenham dado a ele insight sobre o funcionamento real do sistema.
Minha primeira reportagem nos Estados Unidos foi sobre o assassinato do mafioso Paul Castellano diante da churrascaria Sparks. Era, por sinal, a preferida de Paulo Francis, que costumava dizer que os mafiosos sabiam comer bem.
Cobri todo o desmanche da máfia de Nova York nos tribunais. Não foi um espetáculo bonito de se ver, com óbvio cerceamento de defesa em nome de um “bem maior”.
O promotor Rudolph Giuliani tinha claras pretensões políticas quando enfiou na cadeia o chefão John Gotti.
Giuliani sempre adorou uma prisão espetaculosa que não dava em nada, por falta de provas. Tornou-se, lá adiante, prefeito de Nova York.
Provavelmente, Moro idealizou a Justiça norte-americana da mesma forma que idealizou a Operação Mãos Limpas.
A realidade é que a Justiça dos Estados Unidos, que conheci na intimidade durante a cobertura de dezenas de casos, encarcera negros de uma maneira desproprocional e condenou dezenas de pessoas à morte com provas questionáveis.
Desde os atentados às Torres Gêmeas, em 2001, advogados de defesa foram acusados de colaborar com réus em casos relacionados ao terrorismo. Os EUA têm uma tradição de advocacia radical, que desafia o Estado. Entrevistei Lynne Stewart, que foi presa por supostamente transmitir mensagens de um réu a seus colaboradores. No futuro vai provar-se que ela foi vítima de intimidação estatal, vigilantismo contra o direito de defesa.
Note-se que, na Lava Jato, Moro foi informado por uma empresa de telefonia que gravava um escritório inteiro de advogados, pertence a Roberto Teixeira, que representa o ex-presidentre Lula. Mesmo informado, não recuou. Está claríssimo que Moro está disposto a solapar garantias constitucionais — neste caso na relação advogado-cliente — para atingir seus objetivos.
NÃO HÁ MAIS BOBO NO FUTEBOL
A viagem que o Departamento de Estado bancou para Moro nos Estados Unidos é muito tradicional. São três semanas de imersão na sociedade americana, para troca de conhecimento. Conheço jornalistas que fizeram a viagem, vários. Os convites partem de consulados ou embaixadas norte-americanas, com tudo pago.
O IVLP existe desde os anos 40. É certamente o mais conhecido programa do vasto aparato da diplomacia civil dos Estados Unidos.
Não, as pessoas não são submetidas a lavagem cerebral, nem a hipnose por agentes da CIA.
Repito: trata-se de naturalizar a ideia de que os Estados Unidos pairam sobre o Universo, expressão do Destino Manifesto.
O ex-presidente José Sarney fez a viagem em 1964. A presidente Dilma Rousseff em 1992, quando ainda estava no Rio Grande do Sul. Gilberto Gil foi em 1989 e 1990. Provavelmente para garantir financiamento ao projeto, a turma do IVLP costuma dizer que já levou aos Estados Unidos 335 chefes de governo ou chefes de Estado antes deles assumirem o poder. O que justifica o nome: Programa de Visitação de Lideranças Internacionais.
É um bom augúrio para o candidato Moro, se ele um dia quiser tirar a toga e encarar a carreira política.
Nas peças de propaganda do IVLP, há menção constante ao ex-primeiro ministro Tony Blair, que britânicos chamavam de “cãozinho de colo” de George W. Bush.
A descrição dos objetivos do programa é clara:
O IVLP é o principal programa de intercâmbio profissional do Departamento de Estado. Através de visitas curtas aos Estados Unidos, líderes estrangeiros atuais ou emergentes, numa variedade de campos profissionais, experimentam o país em pessoa e cultivam relacionamentos duradouros com colegas norte-americanos. Os encontros profissionais refletem os interesses dos visitantes e apoiam os objetivos da política externa dos Estados Unidos.
NÃO VIVEMOS NO VÁCUO
Por isso, é importante ter clareza: não vivemos no vácuo.
O ex-presidente Lula, dentro de circunstâncias tornadas possíveis por um boom de commodities, armou com o ex-ministro Celso Amorim uma política externa que, longe de garantir completa soberania ao Brasil, ofereceu ao menos um caminho para que o capitalismo brasileiro tirasse proveito de vantagens geográficas e competisse pelo mercado da América Latina com os Estados Unidos.
A Washington desagrada especialmente a ideia de que a energia da América do Sul — do Brasil, Venezuela e Bolívia — seja utilizada de forma prioritária para induzir o desenvolvimento local.
Como bem sabem os industriais paulistas usuários da energia barata que vem do gás boliviano, sem energia confiável e de valor razoavelmente previsível, não há futuro.
O controle das fontes e a determinação do preço desta energia é central para a capacidade de competir por mercados, sempre dentro da lógica do capitalismo.
Os Estados Unidos buscam uma diversificação de fontes de energia que os livrem da dependência do petróleo do Oriente Médio. Miram, obviamente, nos lugares geograficamente mais próximos: costa da África e América do Sul.
Venezuela, Bolívia e Brasil têm algo em comum: elites locais associadas ao projeto dos Estados Unidos de contenção dos BRICs, em particular Rússia e China.
Depois do interesse pela energia, há óbvia tentativa dos Estados Unidos de controlar a cadeia tecnológica, essencial para garantir a submissão econômica alheia.
As decisões do Brasil de construir um submarino nuclear em parceria com a França e os caças militares em parceria com a Suécia desagradaram aos Estados Unidos. Foram perdidos negócios imediatos e fornecimento de peças a longo prazo. Perdeu-se o controle do cliente. Para o Brasil, fazia sentido: as decisões se inseriam no projeto brasileiro de exercer sua soberania de forma menos limitada.
Quando se tornou secretária de Estado de Barack Obama, Hillary Clinton prometeu trocar as custosas intervenções militares no Exterior pelo eficaz soft power, do qual o Brasil tem a melhor “tecnologia mundial”, desenvolvida pelo Itamaraty. Há pistas de que isso já esteja acontecendo.
O presidente Barack Obama, depois de visitar Cuba, passou por Buenos Aires para encontrar-se com o novo presidente Maurício Macri, sinalizando a retomada do tradicional jogo dos Estados Unidos na região: equilibrar o Brasil com a Argentina, aproveitando-se da antiga desconfiança que o Brasil desperta na vizinhança, por seu tamanho e potencial econômico.
O silêncio de Obama, que fez apenas uma referência anódina à crise brasileira, é sintomático de algo maior e muito mais importante: o desabamento daquela arquitetura diplomática projetada por Lula, Celso Amorim e o Itamaraty, se acontecer, deixaria o Brasil menor. No cruel jogo de poder que existe nos bastidores sorridentes da diplomacia, um Brasil menor interessa aos Estados Unidos. Grosseiramente, seria o equivalente a vencer uma guerra sem dar um único tiro. É o que pode acontecer domingo, se aprovado o processo de impeachment.
Fonte: VioMundo