Compete à esquerda petista abandonar de vez o caudilhismo e o culto à personalidade, assim como condenar as bandalheiras e as alianças com os partidos tradicionais das classes dominantes.
As várias forças políticas que comungam os ideais da esquerda, no Brasil, precisam urgentemente reconstruir os seus instrumentos de luta na sociedade com análises, propostas e ações qualificadas para superar os danos gerais causados pelo lulismo, que é responsável não apenas pela descaracterização ideológica do Partido dos Trabalhadores, mas fundamentalmente pela rendição, domesticação e desarticulação das principais entidades e movimentos sociais populares construídos pelas classes trabalhadoras nas lutas de 1970, 1980 e 1990. Naquelas décadas nasceram a CUT, MST, MNU, CMP, Grito dos Excluídos, inúmeros movimentos de luta por moradia, centenas de organizações voltadas para a defesa dos direitos humanos, das mulheres, dos negros, da juventude e do movimento LGBT.
Com essas ferramentas, a força espetacular do povo deu as caras na Assembleia Constituinte que aprovou a Constituição de 1988; deu as caras na campanha eleitoral de Luiza Erundina, em São Paulo, em 1988; deu as caras na campanha eleitoral de Lula, em 1989; deu as caras no impeachment de Collor em 1992; deu as caras nas grandes manifestações contra as privatizações do Governo FHC. Mas, gradativamente, o lulismo tratou de hegemonizar a rebeldia popular e de excluir as correntes de esquerda que atuavam dentro do PT; tratou de sufocar inúmeras lideranças combativas surgidas interna e externamente, até culminar na aliança explícita com o empresariado nas eleições de 2002, tendo como vice o industrial José Alencar.
A trajetória do lulismo é a história de uma liderança popular surgida no meio operário e na ascensão da classe trabalhadora contra o arrocho salarial da ditadura militar, na retomada do sindicalismo combativo; uma liderança impulsionada por setores da Igreja Católica e apoiada por diversos setores da esquerda, apesar da prematura vocação anticomunista e antissocialista; uma liderança transformada em mito por setores politizados e intelectualizados das classes médias e idolatrada pelas massas populares; uma liderança que chegou ao governo federal em aliança com a direita oligárquica tradicional e que, desde então, utiliza todos os tipos de malabarismos para garantir o apoio eleitoral dos mais pobres e dos trabalhadores e, ao mesmo tempo, assegurar aos grandes grupos econômicos (bancos, agronegócios, empreiteiras) os maiores lucros da história do capitalismo brasileiro.
Loteamento do poder
Justamente por desprezar a principal contradição do sistema (trabalho versus capital) e a existência de doutrina ou programa, por fundamentar-se basicamente no imediatismo e no pragmatismo primitivo, o lulismo atraiu durante anos os mais diferentes segmentos e grupos sociais, ao ponto de se constituir num aglomerado de interesses dispersos, que mistura negócios privados com o Estado, tráfico de cargos, privilégios e benesses com os recursos dos cofres públicos. Entraram nesse balaio desde os especuladores financeiros que mamam nos juros da dívida pública, os grandes grupos do PAC e beneficiários do BNDES, as PPPs das corporações e organizações sociais, até a base da pirâmide amparada por Bolsa Família, Prouni, FIES e Pronatec.
Para manter esse conglomerado difuso como instrumento de poder, o lulismo tratou de articular no Congresso Nacional uma base parlamentar fisiológica cada vez mais gananciosa, e cada vez mais de direita (neoliberal e conservadora), sustentada com pixulecos variados, desde o mensalão, loteamento de ministérios e de cargos, verbas para parlamentares e a permanente troca de favores. Nas eleições de 2014 precisou ampliar de tal forma o leque de seu esquema de sustentação, que acabou por carrear ao Congresso Nacional um contingente expressivo de parlamentares manietados pelos lobbies mais nefastos do país, como o do agrotóxico, do fumo, das montadoras, ruralistas, fundamentalistas evangélicos e as bancadas da bola e da bala.
Se já era uma composição fisiológica sem qualquer compromisso programático, o lulismo ficou assentado num terreno ainda mais pantanoso, com estelionatários e reacionários de toda ordem. Em momento de crise econômica, ao contrário do que ocorreu nos seus dois primeiros mandatos, as alianças se esgarçaram ao mesmo tempo em que os setores médios e populares, protegidos por programas sociais em anos anteriores, retornaram à instabilidade histórica e à vulnerabilidade causada pelo aumento da inflação e do desemprego, e especialmente pela escassez de recursos nos cofres públicos para as “políticas compensatórias” do capitalismo.
O quadro de crise geral econômica e política, seriamente agravado pelas denúncias de corrupção na Petrobras e pelos processos da Operação Lava Jato, consumiu rapidamente a popularidade do governo Dilma Rousseff, enfraqueceu o PT e colocou em xeque o futuro do lulismo, na medida em que seus esquemas de sustentação estão sendo pulverizados pelas instituições do Estado (Polícia Federal, Ministério Público e Judiciário), pela mídia burguesa, pelos setores médios e pela estrutura partidária tradicional, dentro e fora de seu amplo e multifacetado arco de alianças, a começar da dobradinha com o PMDB.
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Coerência na ação
Na medida em que derrete em praça pública, o lulismo tem boa parte da sua base social capturada pelos setores mais conservadores da luta política, que levantam as bandeiras da oposição, da crítica ao governo e do combate à corrupção. As forças sociais do eterno governismo entram em estado de letargia oportunista à espera do que vai acontecer. E as forças sociais do campo da esquerda que ainda tentam conter a derrocada do lulismo são arrastadas para o centro do pântano, perdem espaço na sociedade e se isolam dos pobres e dos trabalhadores, exatamente porque empunham bandeiras desprovidas de significado e de coerência.
Afinal, por que os movimentos sociais populares e dos trabalhadores seriam contra o impeachment de uma presidente que mentiu na campanha eleitoral e que adotou o programa neoliberal defendido pela direita? Por que o movimento social dos trabalhadores e das esquerdas necessita ser omisso, silencioso ou mesmo conivente com os esquemas de corrupção? Por que os pobres e os trabalhadores precisam dar respaldo político para um governo loteado com os partidos tradicionais das classes dominantes? Por que apoiar um governo que não se empenha na reforma agrária, na construção de moradias e muito menos no investimento real dos serviços públicos de transportes, saúde e educação?
As forças políticas autenticamente de esquerda não podem ser reféns do “culto à personalidade” de uma liderança popular com trajetória direcionada para a direita. Assim como não podem ser reféns de um governo estruturado pelo lulismo para ser o gestor mais cômodo ao capital, aquele que trata de pacificar as massas trabalhadoras enquanto as grandes corporações abocanham sem nenhum constrangimento a maior parte dos recursos públicos. Os partidos e movimentos sociais populares de esquerda só serão respeitados pelos trabalhadores e pelo povo brasileiro quando se livrarem da influência do lulismo, quando criticarem abertamente as práticas adotadas pelo conglomerado lulista, quando, enfim, cessarem de vez com o endeusamento de uma liderança que abandonou há muito tempo o seu compromisso com a classe trabalhadora.
O futuro sem lulismo é restauração e renovação do protagonismo coletivo dos que apostam na verdadeira transformação social.
Publicado originalmente no Correio da Cidadania