Em política, a cegueira fatal é daquele que não quer enxergar por covardia. Priorizar a pauta da austeridade é atirar contra sua própria base.
Lindbergh Farias e João Sicsú
Fizemos o Brasil mudar. O presidente Lula transformou a história do Brasil. Aqui foi estabelecido um modelo de crescimento, com inclusão social e distribuição de renda. Elegemos a presidente Dilma para dar continuidade ao projeto de desenvolvimento iniciado pelo presidente Lula. Reconhecemos as dificuldades que a presidente Dilma tem enfrentado: o conservadorismo do Congresso, a campanha oposicionista da grande mídia e os movimentos golpistas pelo impeachment.
Sempre estivemos, e estaremos, ao lado da presidente na defesa do seu mandato e dos valores democráticos. Reconhecemos também os problemas da economia mundial, suas crises e desaceleração generalizada. Contudo, a presidente errou, em 2015, ao convidar Joaquim Levy para dirigir a pasta da Fazenda. Suas políticas somente aprofundaram os problemas fiscais e aumentaram o desemprego. Sua substituição era uma necessidade. Agora seria a hora de mudar a política econômica. E retomar o projeto do presidente Lula. Mas fomos surpreendidos com as novas intenções do Governo.
Na última sexta-feira (19/02), o Ministério da Fazenda lançou o documento Reforma Fiscal de Longo Prazo. A proposta do Governo é repetir em 2016 a mesma política de austeridade fiscal de 2015. Mas é mais que uma política para mais um ano. É uma reforma que estabelece regras permanentes. Para o ano corrente, o documento afirma: “o governo realizou um grande esforço de contenção de gastos em 2015 e continuará na mesma direção em 2016”. O Governo considera que o corte de gastos “…não foi suficiente para gerar superávits primários…”. Superávit primário é o nome da poupança que o governo faz para pagar juros aos rentistas e banqueiros. Portanto, mais cortes de gastos correntes ocorrerão. O primeiro corte de R$ 23,4 bilhões já foi anunciado também na última sexta-feira.
O Governo indica como causa do problema fiscal a redução do crescimento e a elevada rigidez do gasto público (contudo, deveria dizer que desonerações aos empresários e despesas públicas com juros são as verdadeiras causas do problema). Para recuperar o crescimento não é sugerida nenhuma medida, mas para “flexibilizar os gastos públicos” (isto é, reduzir despesas obrigatórias) sugere inúmeras possibilidades – até mesmo a suspensão da política de valorização real do salário mínimo que impõe gastos à Previdência. O Governo abandona a afirmação de que é a redução da atividade econômica uma das causas do problema fiscal e nada fala sobre a recuperação do emprego e da renda. E o documento ratifica: “a recuperação da estabilidade fiscal depende do controle do crescimento do gasto público”.
E propõe explicitamente “para controlar o gasto obrigatório é necessário reformar a Previdência, controlar o gasto com pessoal e adotar um limite global para o gasto público da União”. Nenhuma palavra é dada sobre os gastos absurdos com o pagamento de juros (em 2015, foram mais de R$ 500 bilhões). Essa rubrica estaria protegida pela proposta do Governo, para esse gasto não há limites, porque obviamente não é gasto primário nem é gasto com pessoal.
Além disso, o Governo assume o discurso conservador de que é preciso “evitar pressão recorrente por aumento da carga tributária”. Todos sabemos que há uma enorme injustiça tributária no país. Quem paga imposto no Brasil são os pobres, a classe média e os funcionários públicos. Sabemos também que se fosse feita justiça fiscal, a carga tributária tenderia a subir na medida em que ricos, milionários, bilionários, banqueiros, bancos e multinacionais pagam uma carga de impostos desprezível, inadequada ao poder econômico que possuem. Mas sobre essa injustiça nada é dito, é apenas garantido para o “andar de cima” que o governo não está disposto a aumentar a sua carga tributária.
Por fim, o documento estabelece regras que limitariam os níveis de gastos públicos e caso haja ameaça de descumprimento dos limites apresenta uma lista de medidas que serão adotadas. E aí o documento apresenta a lista, um tanto quanto óbvia para os ouvidos conservadores: corte de gastos de custeio (ou seja, programas e gastos sociais), suspensão de concursos públicos, corte de salários dos funcionários públicos, corte de benefícios a servidores públicos e suspensão do aumento real do salário mínimo.
Em política, a cegueira fatal é daquele que não quer enxergar por covardia. Priorizar uma pauta dessa como centro da ação estratégica é atirar contra sua própria base em um momento que travamos uma guerra contra o impeachment, que tivemos uma vitória parcial nas ruas ano passado, mas cujos ataques especulativos da forças conservadoras – caso baixemos a guarda – podem retornar antes que se possa respirar. Se algum estrategista do governo pensa que vai conseguir neutralizar as elites adeptas do neoliberalismo com essa pauta, desconhece a história. Esse pessoal está em guerra sem retorno nem acordo contra nosso projeto político.
O que pode acontecer com esse movimento arriscadíssimo de cedência permanente de espaço ao adversário – visando erroneamente cativá-lo – resulta em Dilma imobilizar ou perder aqueles que ainda estavam dispostos a ir para as ruas em sua defesa. Em 1938, nos ensaios da Segunda Guerra Mundial, o primeiro ministro inglês, Neville Chamberlain, por medo e em nome de uma “paz” dos cemitérios, entregou os territórios da Checoslováquia a Hitler sem disparar um tiro. Da tribuna do parlamento, a voz de estadista de Churchill advertiu: “entre a guerra e a desonra, você escolheu a desonra e terá a guerra”. Assim aconteceu na história. Ainda é tempo de não acontecer assim no Brasil, contudo, advertimos: o tempo urge e estamos prestes a esgotar os últimos minutos.
Fonte: Carta Maior