Apesar da tentativa de criminalização do boicote no governo Sarkozy, franceses judeus e não-judeus defendem cada vez mais as sanções e o movimento BDS.
Leneide Duarte-Plon, de Paris
O que têm em comum o filósofo e linguista Noam Chomsky, o bispo sul-africano Desmond Tutu, a escritora e ativista Naomi Klein, o historiador israelense Ilan Pappe, os filósofos Etienne Balibar, Edgar Morin, Jacques Rancière, o músico do Pink Floyd Roger Waters e o cineasta Ken Loach ?
Todos defendem o boicote a Israel como parte da luta política para denunciar a ocupação de Jerusalém-Leste e da Cisjordância, que vai pouco a pouco inviabilizando um futuro Estado palestino. Com a colonização, Israel já anexou de fato grande parte do território palestino. O boicote pretende, ainda, expor o apartheid dos árabes israelenses (20% da população de Israel), que vivem em Israel como cidadãos de segunda classe.
Intelectuais de diversos países são ativos participantes da campanha internacional BDS (Boycott-Desinvestissement-Sanctions), que prega o boicote a produtos israelenses e a todo intercâmbio cultural, artístico ou esportivo com Israel.
Manifesto pede pressões internacionais
Apesar da tentativa de criminalização do boicote pelo governo Sarkozy, franceses judeus e não-judeus defendem cada vez mais as sanções e o movimento BDS.
« Combater o antissemitismo e condenar a política israelense ». Com esse título, a fina flor da intelligentsia francesa, publicou um manifesto no mês de maio deste ano, no jornal Libération. Entre as dezenas de signatários, havia diversos intelectuais judeus como os filósofos Étienne Balibar e Edgar Morin, além dos filósofos Jean-Luc Nancy e Jacques Rancière.
« Como podemos constatar, o prosseguimento da colonização de Jerusalém e da Cisjordânia, assim como o bloqueio aéreo, maritimo e terrestre de Gaza, condenam a população civil a apenas sobreviver, na melhor das hipóteses. Na pior, a morrer no meio de ruínas. As sanções e pressões internacionais são, portanto, necessárias para mudar essa política”.
« Os israelenses que desejam uma outra realidade política necessitam de apoio e pensam que somente sanções tomadas contra esse governo podem ser eficazes a fim de que sejam reconhecidas as legítimas aspirações dos palestinos a viver em paz, com fronteiras seguras ».
Anos atrás, Serge Grossvak, membro da Union Juive Française pour la Paix, assinou uma carta aberta à então ministra da Justiça, Michèle Alliot-Marie, que havia feito uma lei que previa penas de prisão para quem participa ativamente da campanha BDS (Boycott-Désinvestissement-Sanctions) em toda a França.
Ele começava a carta dizendo : « Eu confesso que boicoto as mercadorias de Israel porque não quero produtos que nascem no sangue e na dominação. Eles exalam o odor do ódio e da opressão ».
Para defender o boicote e marcar um ano do bombardeio de Gaza iniciado em plena Copa do Mundo de 2014 (quando o mundo inteiro estava voltado para o que se passava nos campos de futebol brasileiros) palestinos e franceses reuniram-se na Place Saint-Michel em Paris, dia 4 de julho. Na praça, uma exposição ambulante de fotos mostrava o massacre de Gaza que durou mais de 50 dias e deixou 2145 mil mortos, incluindo mulheres e crianças. Desse total, 80% eram civis. O que surpreende é que 83% dos israelenses apoiaram o bombardeio de Gaza, entre eles 95% da população judaica.
No encontro em Paris, todos os que tomaram a palavra defenderam o boicote aos produtos israelenses e a todo acordo de cooperação cultural ou esportiva com Israel. Para esses ativistas, essa é a melhor forma de denunciar o apartheid dos palestinos e as seguidas agressões armadas a Gaza (em 2008-2009 e depois em 2014, matando inclusive crianças abrigadas em escolas da ONU), que resultaram na morte de grande número de civis e na destruição parcial de Gaza, considerada a maior prisão do mundo a céu aberto.
Caetano e Gil pensam que devem cantar em Israel
Muito tempo ignorado pela grande mídia brasileira, o boicote a Israel começou a ocupar o noticiário dos jornais e das redes sociais com a notícia da apresentação em fim de julho de Caetano Veloso e Gilberto Gil em Israel. O músico Roger Waters, um dos fundadores do grupo Pink Floyd e militante do movimento BDS, chegou a escrever a Caetano Veloso pedindo que ele e Gil cancelem o show.
Candidamente, Caetano lhe respondeu que « Sartre e Simone de Beauvoir acreditavam em Israel ». Talvez não saiba que, acompanhado por Claude Lanzmann e Simone de Beauvoir em sua visita a Israel, em 1967, para preparar um dossiê para a revista Les temps moderne, Sartre rejeitou a proposta de Lanzmann de encontrar membros do exército de Israel. Não queria avalizar guerras coloniais.
Defender o boicote a Israel é defender a Justiça para o povo palestino mas é também defender Israel de uma virada para a extrema direita que leva ao abismo.
Essa é convicção de judeus como o filósofo Etienne Balibar e o fundador de Médecins sans frontières, Rony Brauman, ambos de origem judaica e defensores da campanha BDS. Juntamente com outros intelectuais, eles assinaram uma petição em setembro de 2014 defendendo a supressão do acordo de cooperação entre a École Polytechnique da França e o Technion de Israel. Segundo a petição o instituto Technion coloca as competências científicas desenvolvidas em conjunto « a serviço do complexo industrial-militar israelense, tornando-se uma peça importante do dispositivo israelense de ocupação dos territórios palestinos com tudo de ilegal que disso decorre ».
Mandela como exemplo
O boicote foi decisão dos palestinos em 2005, como uma opção por um tipo de luta não-violenta que conseguiu vencer o apartheid na África do Sul.
Mas a luta de Nelson Mandela não foi sempre não-violenta. O líder sul-africano participou da luta armada do Congresso Nacional Africano, depois de constatar que a via da não-violência não conseguira vencer o apartheid. Preso em 1962 com a ajuda da CIA, ele passou muitos anos na prisão, condenado a trabalhos forçados. Ao sair, dedicou-se à reconciliação entre brancos e negros e se tornou o primeiro presidente negro da Africa do Sul, símbolo mundial de toda forma de luta contra o racismo de Estado.
Em dezembro de 2013, Benjamin Netanyahou saudou a memória do grande homem mas alegou não poder arcar com as despesas para sua viagem à África do Sul. Na realidade, não queria comparecer à cerimônia do enterro, à qual estiveram presentes políticos do mundo inteiro. Como lembrou o jornal Le Monde, ele não teria como se esquivar das acusações de que o Estado judaico teve uma aliança militar secreta com o governo segregacionista de Pretoria, nos anos 1970 e 1980.
Mandela sempre demonstrou solidariedade com a luta do povo palestino e escreveu : « Estamos certos de que nossa liberdade será incompleta sem a liberdade dos palestinos ».
O BDS foi apresentado por seus criadores « como uma resposta solidária ao massacre organizado, premeditado e atroz de uma população sem defesa, sem possibilidade de sair da armadilha do bloqueio hermético. »
« Estou convencido de que as pressões externas representam a única resposta », diz o israelense Neve Gordon, que pertence ao grupo que defende a paz com os palestinos. « O campo da paz em Israel (grupo Paz Agora) tornou-se quase inexistente e a política israelense se radicaliza cada vez mais à extrema-direita ». Gordon, que defende a campanha BDS, diz que, como judeu escolheu criar seus filhos em Israel e militar no Paz Agora.
Naomi Klein, escritora (The Guardian, 1º de janeiro de 2009): “Basta. Isso já durou muito. Chegou o tempo do boicote. A melhor maneira de acabar com a ocupação sanguinária dos territórios palestinos é colocar Israel como alvo do mesmo tipo de movimento que pôs fim ao apartheid na África do Sul. As sanções econômicas representam a arma mais eficaz do arsenal da não-violência: renunciar a elas é uma forma de cumplicidade ativa”.
Nelson Mandela, prêmio Nobel da Paz: « Estamos certos de que nossa liberdade será incompleta sem a liberdade dos palestinos ».
Desmond Tudu, prêmio Nobel da Paz: “Israel, como a África do Sul, não conseguirá a segurança pelas armas. Somente pode obtê-la com o reconhecimento e o respeito dos direitos humanos”.
Ilan Pappe, historiador israelense: « A política criminosa de Israel se intensificou e os militantes palestinos procuraram novos modos de se opor a ela. Eles tentaram tudo : a luta armada, a guerrilha, o terrorismo e a diplomacia. Nada funcionou. Eles não desistiram e propõem agora uma estratégia não violenta, a do boicote, das sanções e do desinvestimento. É tempo de romper o silêncio sobre os crimes de Israel ».
*Leneide Duarte-Plon é jornalista, trabalha em Paris e é co-autora, com Clarisse Meireles, da biografia de frei Tito de Alencar, Um homem torturado-Nos passos de frei Tito de Alencar.
Fonte: Carta Maior