Setores progressistas reagem às tentativas de golpe por um projeto maior que as eleições. Para eles, não está em jogo um mandato, mas a construção da soberania nacional.
por Maurício Thuswohl, para a Rede Brasil Atual
De acordo o IBGE, cerca de um terço da população brasileira tem menos de 25 anos. Essa falta de memória prática em relação ao último período de ditadura no país, que só teve sua normalidade democrática restabelecida em 1989, talvez ajude a explicar por que a proposta de impeachment da presidenta Dilma Rousseff tenha prosperado no seio de alguns setores da população insatisfeitos com o governo ou que simplesmente querem ver o PT fora do poder. Fora isso, grande parte dos que viveram o autoritarismo não sabia exatamente de tudo o que ocorria porque o acesso à informação era um dos mais importantes direitos cerceados.
Hoje, na ausência de censura, o processo de desinformação fica por conta dos próprios meios de comunicação. São eles os porta-vozes dos setores empresariais e financeiros que historicamente sempre tentaram se apropriar da política – como em 1954, no momento que levou ao suicídio de Vargas, ou em 1964, quando esses atores sociais batizados de “forças ocultas” pelo ex-presidente Jânio Quadros contaram com apoio militar para tomaram o poder. O longo período de ditadura coincidiu com o agravamento da concentração de renda, a obstrução dos direitos sociais, o sucateamento dos serviços públicos em benefício da expansão dos negócios privados – como na educação e na saúde.
A reconstrução da democracia representou também a oportunidade de restauração dos direitos humanos, sociais, trabalhistas, de organização e de participação na vida política do país – a Constituição de 1988 é ponto emblemático do processo de reconstrução nacional. Mas aquelas tais “forças ocultas”, novamente tendo como fio condutor os meios de comunicação, voltam à carga com a ameaça golpista, desta vez travestida de uma tentativa de impeachment sem nenhum amparo legal.
Diante da ameaça, várias frentes têm sido criadas no Brasil para defender a democracia e buscar formas de dar fim a uma crise política que tem alguns elementos concretos – como a eleição de um Congresso de maioria conservadora e disposto a rever direitos sociais. E muitos elementos criados artificialmente pela narrativa em sintonia com o discurso oposicionista.
É nesse cenário que foi lançada em setembro, num ato em Belo Horizonte, a Frente Brasil Popular. Na ocasião, a frente divulgou o Manifesto ao Povo Brasileiro, em que defende “ampliar a democracia e a participação popular nas decisões sobre o presente e o futuro do nosso país” e “lutar contra o golpismo – parlamentar, jurídico ou midiático – que ameaça a vontade expressa pelo povo nas urnas e as liberdades democráticas”. Já presente em 22 estados, a Frente é formada por organizações dos movimentos sociais e centrais sindicais, como CUT, UNE e MST, além de movimentos de negritude, LGBT e de mulheres, entre outros. Também integram o movimento militantes políticos e parlamentares de diversos partidos e intelectuais.
Para o ex-ministro Roberto Amaral, recentemente rompido com o PSB e um dos articuladores da Frente Brasil Popular, o que está em questão é uma disputa entre o avanço e o retrocesso: “Há setores ávidos por impedir a defesa do direito dos trabalhadores, a política externa brasileira em defesa da soberania do país e a promoção das forças populares. A presidenta Dilma encarna tudo aquilo que a direita sempre detestou. A direita permite tudo na política brasileira, menos a ascensão das massas, menos o combate às desigualdades sociais”, diz.
O presidente nacional da CUT, Vagner Freitas, considera que a derrubada da presidenta criaria espaço para que as forças conservadoras atacassem os direitos trabalhistas, as políticas públicas de distribuição de renda, criadas ao longo dos últimos 12 anos, os empregos. “A tentativa de golpe contra a presidenta não é motivada pelo combate à corrupção ou outras razões. Os setores que não respeitam o resultado das urnas querem aprofundar um clima que facilite a retirada de direitos, o achatamento dos salários, criação da idade mínima para aposentadoria, terceirização sem limites. Basta observar as propostas que estão sendo defendidas no Congresso e por setores da mídia”, disse. “Ou você acredita que quem quer entrar no lugar da presidenta vai continuar se preocupando em manter programas sociais importantes criados pelo governo Lula e Dilma?”, questiona o presidente da CUT.
Manobra inconstitucional
Especialistas dizem que faltam bases jurídicas para que se inicie o processo. Carlos Ayres Brito, ex-ministro do Superior Tribunal Federal (STF), diz que para tanto seria preciso que a presidenta incorresse em crime de responsabilidade, cometido no atual mandato. De outra forma, diz o jurista, o pedido de impeachment é inconstitucional: “À luz da Constituição, os mandatos não se intercalam. O crime de responsabilidade incide a partir de atos atentatórios à Constituição, como diz o Artigo 85, na fluência do atual mandato”. Em entrevista à página 18, o jurista Dalmo Dallari também sustenta esse parecer: para que Dilma seja acusada de crime de responsabilidade, seria preciso provar que ela desrespeitou a Constituição, e no atual mandato, fato que não ocorreu.
O jurista Modesto da Silveira, que como advogado se notabilizou pela defesa de políticos, sindicalistas e líderes rurais perseguidos pela ditadura militar brasileira, também ressalta a ilegalidade de um pedido de impeachment contra Dilma: “Tudo o que sai da regra constitucional de um país pode ser considerado golpismo. Está havendo essa tentativa agora, não de maneira violenta, como aconteceu em 1964. Estão querendo violar as regras constitucionais, o que pode criar graves problemas, inclusive um golpe violento, um antigolpe etc. Quando um presidente não se submete aos grandes interesses econômicos dos banqueiros e das grandes multinacionais, a tendência é desestabilizá-lo, derrubá-lo e, se necessário, até matá-lo. Aconteceu na história, em qualquer lugar do mundo”, alerta.
Em 25 de setembro, Silveira participou no Rio de Janeiro do lançamento estadual de outra frente também constituída em defesa da democracia. O Fórum 21, já lançado em São Paulo, Porto Alegre e Brasília, conta com importante participação de intelectuais e representantes da imprensa alternativa na missão de produzir conteúdo para que organizações progressistas da sociedade civil possam elaborar saídas para a crise e deter a ofensiva da direita no país.
“Mesmo nos piores momentos da vida brasileira, sob a repressão de um aparato ditatorial impiedoso e da censura mais esférica à opinião democrática e progressista, conseguimos reunir as reservas morais e intelectuais da nação para reagir. Felizmente, não vivemos hoje sob uma ditadura das armas. Mas, enfrentamos um compacto sistema de asfixia ideológica e financeira, talvez inédito na história nacional. Ele sonega à sociedade o debate desassombrado do passo seguinte do nosso desenvolvimento, em meio a um recrudescimento da crise mundial; interdita projetos alternativos ao receituário conservador e desqualifica a política, portanto, a democracia, como verdadeiro lócus de um futuro hoje capturado pela usurpação dos mercados”, diz em manifesto o Fórum 21, entidade que conta com a participação da Rede Brasil Atual.
Parlamentares de esquerda que vivem a realidade da Câmara dos Deputados, acompanham o que chamam de manobras da direita: “Há um processo inequivocamente golpista. Desrespeita a Constituição, a lei, estamos vivendo um cenário de sério risco à democracia. Isso acontece na Câmara, e tem como protagonista seu atual presidente e partidos de oposição que, combinadamente, montam o cenário para transformar a Casa em um tribunal de exceção. A presidenta Dilma tem os seus defeitos, mas não é desonesta, ao contrário de boa parte daqueles que hoje subscrevem o pedido de impeachment”, diz o deputado Wadih Damous (PT-RJ), ex-presidente da OAB no Rio.
O deputado Chico Alencar (Psol-RJ), que faz oposição ao governo, também alerta contra as pretensões golpistas em curso: “Nós, do Psol, temos muitas divergências com os caminhos que o governo Dilma tomou e está tomando, mas isso não significa que, por divergir de um governo, possa se considerar destituí-lo. A gênese de quem propõe o impeachment hoje é autoritária e tem um quê de golpista. Os principais proponentes não têm um histórico de luta pela reconquista da democracia no Brasil e, portanto, não têm a dimensão da importância do voto para eleger prefeito, governador, presidente”, diz.
A deputada federal de Pernambuco Luciana Santos, presidente nacional do PCdoB, diz que os conservadores querem impor sua agenda ao governo, apesar de terem perdido a eleição. Segundo Luciana, a atual luta política é “adversa” para a esquerda. “Temos de fazer a luta de conteúdo, defender imposto sobre grandes fortunas, a repatriação de remessas feitas ao exterior e outras bandeiras progressistas. Mas, para isso, precisamos fazer a defesa do governo Dilma. Do contrário, não haverá alternativa à esquerda. Se hoje não está bom (se Dilma cair), ficará pior”, disse. A deputada afirma que o momento não é de críticas e diferenças entre membros da esquerda, incluindo Marina Silva (Rede) e Ciro Gomes (PDT). “São atores importantes. Ciro foi solidário a Lula no primeiro mandato, em 2005. É contra o golpe e contra o impeachment. Marina tem tido uma posição firme contra o impeachment.”
Mórbida semelhança
Segundo os analistas, os atores sociais que hoje tentam desestabilizar o governo são parecidos com seus “antecedentes” políticos em outros momentos da história: “Em 1954 estava se montando um golpe profundo para as instituições. Esse movimento foi retido pelo suicídio de Vargas, que adiou esse golpe por dez anos. Os personagens do golpe de 1954 estavam todos na tentativa de impedir a posse de Juscelino em 1955, todos na tentativa de impedir João Goulart em 1961 e todos na instalação da ditadura em 1964. São as mesmas forças, a mesma oligarquia, o mesmo capital financeiro”, diz Roberto Amaral.
As diferenças, é claro, também existem: “Os atores são similares, usam métodos parecidos de manipulação da imprensa, de tentar dividir e inviabilizar o país. O que muda é que, com exceção dos fascistas e débeis mentais que pedem intervenção militar, não se trata mais de pedir esse tipo de modelo. O modelo agora é manipular o que está na Constituição, interpretar à maneira golpista o que está na Constituição”, diz Wadih Damous.
Para Modesto da Silveira, embora as semelhanças entre os períodos históricos “não apareçam de maneira visível e muito clara”, a motivação de entregar as riquezas nacionais – no caso atual, o pré-sal – aos interesses das economias mais ricas permanece a mesma: “Não aceitam o vice-presidente Michel Temer, que não é da total confiança deles. Para cumprir essa missão, querem colocar o Aécio Neves, aliado do grande capital e dos grandes grupos econômicos. Será o maior crime que o Brasil poderá ter cometido contra si mesmo se tolerar essa tentativa de entregar a Petrobras a interesses privados. A Petrobras tem a perspectiva de ser um dos maiores produtores de petróleo do mundo, portanto, ela se tornou extremamente importante neste momento para os traidores da pátria, os brasileiros a serviço de interesses estrangeiros. Esse é o golpismo atual”.
Chico Alencar, que também é professor de História, diz que esta não se repete: “O contexto é outro e a conjunção de forças é outra. Talvez o espírito de revanche ou uma visão de querer chegar ao poder por vias tortas que não tenham como base a manifestação livre da população seja um elemento comum. Mas, fora disso, eu não acho que seja igual, até porque o processo nem começou de verdade, são as primeiras movimentações. Do ponto de vista do poder econômico, do PIB, o governo Dilma não tem nenhuma contradição maior com as oligarquias agrárias, o setor financeiro e o grande capital. Então, não vejo contexto semelhante ao de 1964, quando havia um governo comprometido com reformas de base, ou com o Getúlio, que tinha elementos como a nacionalização e a Guerra Fria. Agora, o contexto internacional e brasileiro é outro”, diz.
Fonte: Rede Brasil Atual
wn