Políticos de esquerda cobram do governo francês uma reação à altura do FranceLeaks que revelou que Chirac, Sarkozy e Hollande foram grampeados.
Leneide Duarte-Plon*, de Paris
Saber que o aliado americano espionou os presidentes Chirac, Sarkozy e Hollande (pelo menos até 2012), chocou o mundo político francês desde que estourou esta semana o FranceLeaks, revelado em reportagem exclusiva do jornal Libération e do site Mediapart, que intitulou seu dossiê completo : « La République sur écoute » (A República grampeada). François Hollande chegou a ter seu celular pessoal grampeado.
O que o jornal Le Monde ressaltou é que a cooperação estreita entre os serviços secretos ocidentais tende a limitar a reação oficial à revelação do escândalo FranceLeaks. Enquanto o Eliseu se mantém silencioso, Hollande apenas declarou que o fato era inaceitável, nos jornais, nas rádios e TVs o assunto monopoliza todas as entrevistas políticas desde terça-feira. Os mais indignados chegaram a citar como exemplo a reação da presidente Dilma Roussef que anulou uma visita de Estado a Washington, em 2013, ao tomar conhecimento das escutas telefônicas da NSA (National Security Agency), reveladas por Edward Snowden.
« Mesmo sendo fiéis aliados desde o governo Sarkozy, eles continuam a nos tratar como suspeitos ? » Essa pergunta poderia estar na cabeça dos defensores da aliança incondicional com o « amigo americano ». Um deles, Nicolas Sarkozy, logo depois de eleito em 2007, não hesitou em voltar ao comando integrado da Otan, que o general de Gaulle tinha decidido deixar em 1966.
Chirac teve a coragem de decidir que não participaria da invasão do Iraque em 2003. Seu ministro das Relações Exteriores, Dominique de Villepin, em discurso memorável na ONU, explicou porque a França se negava a participar da guerra ao Iraque programada por George Bush, que resultou no que se vê hoje : o Iraque desestabilizado, uma situação de caos absoluto que contaminou toda a região.
A desestabilização do Iraque e do Afeganistão através de uma guerra brutal, na qual os civis foram as principais vítimas, e as denúncias de tortura em Abou Ghraib fortaleceram o sentimento anti-americano e possibilitaram o surgimento do Estado Islâmico que se tornou o novo alvo dos ocidentais.
O sucessor de Chirac, Nicolas Sarkozy, não hesitou em se juntar aos americanos e ingleses para destronar Khadafi. Esse entusiasmo pró-americano de Sarkozy não impediu que, no seu governo, a França fosse barrada ao tentar se unir ao grupo « Five Eyes » (Eua, Grã-Bretanha, Canadá, Nova Zelândia e Austrália). Esse grupo de países uniu seus serviços de informação desde 1947. Tanto a Casa Branca quanto a CIA e a NSA disseram não aos franceses. A desestabilização da Líbia, na qual Sarkozy teve um papel central, só fez reforçar grupos jihadistas e amplificar o fluxo de migrantes no Mediterrâneo, em direção à Europa.
Espanto fingido
Tanto os socialistas quanto a oposição de direita fingem espanto e indignação com a revelação da espionagem americana, digna do Big Brother de Orwell. Mas alguns ministros, ex-ministros ou assessores diretos dos presidentes, menos hipócritas, confessam que sempre trabalharam com a hipótese de que poderiam estar sendo escutados pelas grandes orelhas da NSA e da CIA.
O ex-assessor e conselheiro diplomático de Sarkozy, Jean-David Levitte declarou que sempre trabalhou com essa hipótese e por isso evitava discutir assuntos sensíveis ao telefone. « Sempre pensei que estava sendo escutado, e não apenas por nossos amigos e parceiros americanos », disse.
A extrema-esquerda representada pelo Front de Gauche (Frente de Esquerda), que reúne o Partido Comunista, parte dos Ecologistas e o Parti de Gauche de Jean-Luc Mélanchon, aproveitou a ocasição para lembrar que sem os « lanceurs d’alerte » (não gosto de « delator » que, na origem, tem uma conotação negativa ; a verdadeira intenção desses militantes que denunciam a espionagem moderna é defender a democracia e os cidadãos), como Edward Snowden e Julian Assange, o mundo ignoraria todos os atos de espionagem permanente de chefes de estado feitas pela NSA (National Security Agency) dos Estados Unidos.
Os políticos da esquerda que se intitula « la gauche de la gauche », começaram uma campanha para que a França conceda o direito de asilo a Snowden e Assange, abrigados na Rússia e na Embaixada do Equador em Londres, respectivamente. Mas François Hollande não parece suficientemente corajoso para enfrentar o aliado e « amigo » que mantém um quartel-general de escutas telefônicas e de espionagem de mensagens eletrônicas a poucos metros do palácio do Eliseu. Exatamente no último andar da embaixada americana, onde fica o serviço especial de escuta da NSA, chamado Special Collection Service (SCS) devidamente dissimulado por janelas pintadas em « trompe l’œil ». Esse quartel-general da espionagem se situa, estrategicamente, a poucos metros do Parlamento (Assemblée Nationale), do Quai d’Orsay e do Elisey.
Jean-Luc Mélanchon denunciou : « As escutas são uma agressão contra nossa soberania e nossa independência, vindo de uma potência imperial que não tem amigos mas apenas interesses. Os ingênuos do pró-americanismo primário são os idiotas do vilarejo. »
Em, 2011, antes mesmo que Sarkozy tomasse a atitude de convidar o Quartet (grupo de quatro negociadores que tentavam fazer avançar o processo de paz no Oriente Médio entre palestinos e israelenses), os americanos recebiam a informação transmitida numa nota da NSA : « Nicolas Sarkozy e Alain Juppé estudam um convite ao Quartet mas não têm certeza de que conseguirão esse objetivo pois o grupo poderia se recusar a se deixar guiar por Paris ».
Enquanto isso, no país que grampeia todo mundo no mundo inteiro, as denúncias de que os chefes de Estado francês foram espionados por longos anos não emociona nem a imprensa nem o grande público.
*Leneide Duarte-Plon é jornalista, trabalha em Paris e é co-autora, com Clarisse Meireles, da biografia de frei Tito de Alencar, Um homem torturado-Nos passos de frei Tito de Alencar.
Fonte: Carta Maior