Por: RBA
Movimentos golpistas arrefecem, defesa da democracia e da reforma política ganham espaço. Mas se a sociedade não conduzir o debate, o Congresso não mudará financiamento de campanhas.
Na terceira semana de abril, a imprensa anunciou que a oposição, enfim, iria anunciar seu pedido de impeachment da presidenta Dilma Rousseff. Parte do PSDB, com destaque para o líder do partido na Câmara, Carlos Sampaio (SP), afirmava haver elementos suficientes e que não era preciso esperar mais nada. No dia 28, o senador Aécio Neves segurava o time, afirmando que era preciso agir de forma articulada e responsável. O mês que passou parece ter visto um arrefecimento das manifestações antigoverno, o que foi visível no ato do dia 12. Ao mesmo tempo, tomou corpo o debate pela reforma política, o que já indica certa normalidade da agenda institucional. E as principais atividades de rua tinham como mote a crítica ao projeto de lei sobre terceirização.
“O senador Aécio Neves baixará o tom em relação ao impedimento da doutora Dilma”, escreveu o jornalista Elio Gaspari em sua coluna de 26 de abril. “Resta saber o que colocará no balcão do PSDB. Desde que a doutora sequestrou-lhe a agenda econômica, Aécio transformou-se no trombone da orquestra, faz barulho com pouca melodia.”
Ao participar em abril de um debate no Sindicato dos Engenheiros de São Paulo, que tinha como tema justamente a importância da democracia, o ex-governador Cláudio Lembo observou que a imprensa havia parado de falar no tema. “As coisas estão se acalmando”, disse. Para ele, falava-se de “uma grande crise institucional, que não havia”.
Agenda positiva
O cientista político Fabiano Santos, do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Iesp-Uerj), acredita que a bola, agora, está com o governo. “Precisa mostrar uma agenda positiva e a capacidade de tocá-la”, disse, em entrevista ao jornal Valor Econômico. “Primeiro, administrar a crise econômica, aprovando o pacote de ajuste fiscal, que vai trazer dificuldades, mas vai permitir ao governo mostrar uma agenda mais palatável. Isso pode tirar parte do poder de manobra dos segmentos mais radicalizados da oposição.”
Diretor do mesmo instituto, o sociólogo Adalberto Cardoso afirmou à Folha de S.Paulo que os defensores do impeachment querem, na verdade, impedir a continuidade do “processo de limpeza” representado pelas investigações contra a corrupção, uma antiga prática empresarial no Brasil. “O que vivemos hoje é parte de um processo de limpeza e, espero, de correção dessa herança histórica de conluio entre o público e o privado. As elites e vários agentes sociais não sabem separar o público e o privado. O Estado sempre funcionou a serviço das elites econômicas. Quando há um amplo combate à corrupção, o potencial de crise é muito grande. O que a Lava Jato está expondo é a forma como o capitalismo se organiza no Brasil.”
Para o sociólogo, a operação mexe “com profundos interesses” empresariais e políticos. “Aqueles que estão clamando pelo impeachment estão querendo impedir que essa limpeza continue. A história recente mostra que há um certo viés na ação anticorrupção, principalmente no Paraná. Só petista ou próximo ao PT vai para a cadeia. Há uma profunda revisão do que é o nosso capitalismo, e o agente desse processo é o governo. Nenhum outro governo jamais fez isso. Está agindo sobre o coração do capitalismo brasileiro, que é inteiramente corrupto. É essa imbricação entre o público e o privado que está sendo desvendada hoje. Infelizmente, pelo viés antigovernista dos agentes da PF, não se investigou nada da época do FHC”, afirma Cardoso.
“Artificial e sem fundamento”
O advogado Marcello Lavenère Machado estava à frente do processo que culminou com o impeachment do então presidente Fernando Collor de Mello, em 1992. Em 1º de setembro daquele ano, Lavenère, à época no comando da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), e o presidente da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), Barbosa Lima Sobrinho, apresentavam o pedido de impedimento à Câmara dos Deputados. O advogado afirma que as circunstâncias atuais são muito diferentes.
“Naquela ocasião, a matriz das irregularidades era o presidente da República. O que eu noto agora é diferente. Existem casos de corrupção em alguns lugares, especialmente na Petrobras, e há um esforço para se chegar à presidente da República e até a um ex-presidente. Em 1992, não havia viés partidário. As denúncias partiram do irmão do presidente. Agora é um ato politico das oposições, que querem mudar de alguma forma o resultado das eleições no ano passado”, afirma Lavenère, chamando de “golpe partidário” o movimento atual. “Uma proposta de impeachment artificial, sem fundamento político nem jurídico.”
Ao ponderar sobre a dificuldade de se fazer previsões sobre a situação política, o advogado acredita que uma iniciativa partidária não tende a prosperar. Lembra novamente de 1992, quando conta ter sido procurado por quatro parlamentares, dois senadores e dois deputados, de legendas distintas, com o pedido para que assinasse o pedido de impeachment de Collor. Alegavam não ter credibilidade suficiente. Por isso, Lavenère avalia que se algum partido da oposição quiser levar à frente essa bandeira, a tendência é que caia na vala comum. “Impeachment não se faz pelo desgosto de um partido.”
Representante de uma coalizão de mais de uma centena de organizações que se mobiliza pela reforma política, Lavenère diz haver um risco real de que, sem reação popular, seja feita uma anti ou pseudoreforma. Especialmente com o presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), chancelando o financiamento empresarial de campanhas – “a fonte de corrupção”, como define o advogado.
“Vai depender dessa pressão, da organização da sociedade, da opinião pública, dos veículos de comunicação”, afirma Lavenère. Para ele, quem defende a manutenção do financiamento privado “ou está muito mal informado ou não quer que a corrupção acabe”.
Ele destaca outras três propostas da coalizão, que inclui entidades como a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e a OAB: um sistema proporcional “mais justo”, paridade de gênero (igual número de candidatos entre homens e mulheres) e valorização dos mecanismos de consulta popular, como referendos e plebiscitos, previstos no artigo 14 da Constituição.
Iniciativa popular
“O Brasil precisa de uma urgente reforma política, não apenas em campo eleitoral”, afirmou o cardeal Odilo Pedro Scherer, ao jornal O São Paulo, da Arquidiocese. “Há diversas propostas de reforma política. A CNBB ajudou a elaborar uma dessas, transformada em projeto de iniciativa popular. Esse projeto de lei, para o qual estão sendo coletadas assinaturas, é fruto de um consenso entre muitas entidades da sociedade. Observo que é uma proposta suprapartidária”, disse o cardeal. “Não será um projeto de lei perfeito, mas ele pode e deve ser aperfeiçoado pelo Congresso Nacional.”
No ato do dia 12 de abril, manifestantes voltaram a se reunir na Avenida Paulista, em São Paulo, em menor número do que em 15 de março, para pedir – com variados graus de ênfase – a derrubada de Dilma. Alguns voltaram a reivindicar “intervenção constitucional militar”. O perfil daquele público foi analisado a partir de uma pesquisa organizada pelos professores Pablo Ortellado, da Universidade de São Paulo (USP), e Esther Solano, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
A maioria tinha renda acima de
R$ 3.900 e ensino superior completo, era de cor branca e dizia “confiar pouco” na imprensa – mas metade “confiava muito” na revista Veja, tradicional porta-voz da atual oposição. Refletindo um clima de boataria e de desinformação, mais de 60% acreditam na intenção do PT de implementar um “regime comunista” no Brasil e mais de 70% embarcavam na repetidamente desmentida informação de que um filho do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva seria sócio da Friboi, maior empresa do setor frigorífico no país.
No mesmo dia, a poucos quarteirões dali, entidades e pensadores se reuniam para refletir sobre o momento político, fazer críticas – mais ponderadas – ao governo e discutir alternativas. Um dos presentes afirmou: “A democracia, como valor, tem de ser inquestionável”. Dezesseis dias depois, um debate em São Bernardo do Campo para lembrar a greve de 1980 dos metalúrgicos do ABC também destacava a importância de se retomar a normalidade institucional após duas décadas de ditadura.
Só no voto
O subprocurador da República Eugênio José Guilherme de Aragão, por exemplo, disse que o país vive dias difíceis. “Quando parte da sociedade ousa caminhar por caminhos tortuosos, fazendo acenos ao autoritarismo, festejar a democracia é preciso”, afirmou. “Quem quiser governar o Brasil vai ter de passar pelo voto do povo e ganhar a eleição”, acrescentou o secretário-geral da CUT, Sérgio Nobre. Além das críticas ao projeto da terceirização, a defesa da democracia foi um dos motes das manifestações do 1º de Maio.
Em termos históricos, o sociólogo Adalberto Cardoso vê um momento único no Brasil, sem paralelo com o período de João Goulart, sem conspiração militar. “É único também porque nunca tivemos instituições democráticas tão sólidas. Temos um Judiciário autônomo como nunca tivemos, um Parlamento que é representativo do que é o Brasil, que é conservador. Temos uma crise desse tamanho – com perda da capacidade do PT de liderar o centro político e sob pedidos de impeachment – e ela não está desestabilizando o sistema político. Pelo contrário, a crise reforça os aspectos virtuosos da nossa democracia. Isso também é uma novidade.”
Aos 77 anos, Marcello Lavenère lembra de sua condição de ativista e integrante da campanha “O petróleo é nosso”, nos anos 1950 (“Corri muito da polícia”), e afirma convicção com a melhoria institucional no Brasil. “A partir da nossa Constituição de 1988, o país tem passado por um processo de aperfeiçoamento da democracia”, afirma, citando o movimento pelas eleições diretas, o impeachment de Collor, o Plano Real (no governo Itamar Franco, assinala) e 12 anos de governos que buscaram melhorar as condições sociais da população. “Não estamos num paraíso, mas não demos nenhum passo atrás.”