A tentativa de enganar nossos leitores com uma manchete que nada ou pouco tem a ver com a festa maior do futebol, é deliberada. Usamos este ardil, pertencente ao arsenal cotidiano dos meios massivos de manipulação e controle, com a pobre justificativa de alcançar migalhas de atenção, sabendo que, por várias semanas, não haverá coisa mais importante no planeta que uma bola rolando.
Nestes dias 14 e 15 de junho, enquanto os olhos de centenas de milhões estão dirigidos ao passional mundo futebolístico, no país vizinho e a poucas centenas de quilômetros da fronteira com o Brasil, na oriental cidade de Santa Cruz de la Sierra, está se desenvolvendo outro evento de cúpula, o do G77+China, celebrando o cinquentenário de seu nascimento.
Apesar de concentrar trinta e três nações e esperando a assistência de um número próximo à centena de delegações [incluindo ao redor de trinta primeiros mandatários], o importante evento será sem dúvida opacado pelos algarismos que lancem os primeiros encontros sobre a verde grama entre os bem conhecidos e amados rapazes, elite e vanguarda de cada nação.
Mas a mensagem que é esperada na cúpula do G77 merece ser transmitida. Então, para não ser desmancha-prazeres, sugerimos mudar brevemente de canal e se inteirar disso, mesmo que seja no intervalo.
Quem é o G77+China?
O G77 é um grpo de países, nascido em 1964 nas Nações Unidas, ao calor de uma reunião fundacional da UNCTAD [Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento]. O propósito desta agrupação de interesses foi o de anular o peso determinante dos interesses e a visão dos países do Norte Global, tentando salvaguardar as necessidades dos países em vias de desenvolvimento. Ao mesmo tempo, a organização foi pensada para promover medidas de cooperação Sul-Sul. Com o tempo, os setenta e sete países passaram aos atuais cento trinta e três, mas conservando o nome de G77 em referência ao marco primeiro.
É claro que estar sob a égide do órgão máximo de coordenação mundial, as Nações Unidas, tem vantagens, mas também muitos desprazeres. Por uma parte, países com pouca influência relativa conseguem nela ao menos um fórum onde se fazer ouvir, mas, além das ingenuidades diplomáticas declarativas, isso implica a submissão a um sistema gerado logo após a segunda guerra mundial, estritamente apegado às situações de poder relativo surgidas desse desastre global.
Um sistema cuja orgânica é controladas por um Conselho de Segurança, cujos membros permanentes são ameaçantes poderes nucleares, que podem vetar propostas alheias e impor as próprias.
Este sistema, constituído ademais no campo econômico por instituições como o FMI, o Banco Mundial e seu braço justiceiro, o CIADI, e vigiado atentamente por alianças militares expansivas e invasivas como a OTAN, encontrou fortes resistências nos últimos anos, levando-o a uma crescente decadência. Hoje, junto ao emergir de novos atores internacionais como a Organização de Cooperação de Shanghai, a CELAC, os BRICS, o projeto do Banco do Sul, formalizou-se o clamor por câmbios que reformulem o rol das Nações Unidas rumo a sua verdadeira democratização.
O que esperar desta cúpula?
Se bem o G77 agrupa todos os países do assim chamado “Sul Global” – excluindo especificamente os membros da OCE [Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico] – sua constituição dista muito de ser homogênea. Convivem em seu seio países paupérrimos da África subsaariana com a opulência do Bahrein, os Emirados Árabes ou o Sultanato de Brunei; os gigantescos Brasil, China ou Índia junto as nações de reduzidas dimensões como Butão, Suazilândia ou Djibuti. Assim mesmo, as orientações políticas representadas são diferentes e, em muitos casos, de franca oposição. Junto aos conservadores reinos de Marrocos ou Arábia Saudita, atuam nações de porte eminentemente revolucionários como Cuba, Equador ou Bolívia.
E é precisamente este último país, anfitrião desta celebração, quem dará os acordes de início a esta cúpula na voz de seu presidente e figura referencial, Evo Morales Ayma. Este dirigente surgido das entranhas de seu povo, logo de séculos de domínio colonial, marcado pelo capitalismo e sua mecânica de depredação. Junto a elevar a voz por uma radical transformação das relações entre os povos, rejeitará a apropriação indevida e destrutiva do meio ambiente produzida pela cobiça e insensibilidade das empresas transnacionais.
Segunda as informações preliminares, espera-se que os temas centrais na agenda do conclave sejam a necessidade de modificar as prioridades da sociedade humana, enfatizando na erradicação da pobreza, do direito irrestrito à saúde e educação das populações, junto à urgência de exigir avances sérios nos mornos e incumpridos acordos relacionados com o aquecimento global e a proteção meio ambiental em geral.
Ao mesmo tempo, serão denunciados os ataques contra a soberania alimentar dos povos, encarnados na ofensiva pela assinatura de tratados como o TTIP [Acordo Estratégico Trans-Pacífico de Associação Econômica], cujos objetivos são a proteção dos direitos de propriedade ilegítimos das corporações, violando o elementar direito humano a uma sobrevivência digna.
Outro tema central o constituirão os imprescindíveis câmbios nas estruturas internacionais, pondo de manifesto a nova situação de multipolaridade e superando os vícios dos andaimes imperialistas pós-colonial. O atual secretário geral das Nações Unidas, Ban Ki Moon, deverá apelar a todo seu estoicismo oriental quando vários dos delegados qualifiquem de cosméticas as propostas atuais de reformulação da organização mundial.
Outro tem de muita relevância serão as definições de cara aos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio para 2015, data em que está prevista a avaliação do que foi conseguido até agora e a projeção das novas metas de desenvolvimento a ser conseguidas para a nivelação das imensas desproporções de bem-estar entre os seres humanos nas diferentes regiões.
A voz dos Movimentos Sociais
Nos últimos anos, junto a estes encontros entre Estados, tem se feito sentir crescentemente a voz de atores organizados na base social. Como não podia ser de outra maneira, é justamente nesta cúpula que é realizada na Bolívia, onde este avanço da democracia real se fará sentir com mais força.
Em paralelo à cita dos emissários governamentais serão entregues vários documentos com chamamentos e reivindicações. A Cúpula Juvenil Latino-americana emitiu sua declaração final [1], debatida em torno a sete pontos temáticos: a mudança climática, cooperação Sul-Sul, migração e desemprego, erradicação da pobreza, desenvolvimento sustentável, propostas para ONU pós 2015, segurança alimentar com soberania, cultura, desenvolvimento e meios de comunicação.
A Cúpula das Mulheres, por sua parte, realizada os dias 29 e 30 de maio, colocou a ira nas postergações que ainda sofre o gênero em vastas regiões do planeta, negando-se seu acesso à igualdade de direitos e oportunidades longamente anelada. Ao mesmo tempo, destacaram os avanços da participação feminina em política, economia e ciência, mostrando seu forte protagonismo nos processos de câmbio.
Por sua parte o Fórum de Comunicação para a Integração de Nossa América entregará à Cúpula um documento denominado “Chamado à Cúpula do G77”, no qual se insiste na necessidade de estender e aprofundar os processos de paz a nível global, em concordância com a recente declaração da CELAC que define a América Latina e o Caribe como Zona de Paz. Neste Fórum estão nucleados numerosos coletivos de comunicação que promovem a integração regional e a democracia comunicacional – em franca oposição à atual direção dos meios concentrados, defensores do atual regime de iniquidades e controle da subjetividade.
No documento, ao que aderem centenas de organizações e personalidades comprometidas com a transformação social, entre outros proclamas, convida-se à Cúpula a “impulsionar ativamente a resolução pacífica das diferenças entre nações, ao desarmamento nuclear e convencional, à proibição da ciberguerra e das ciberarmas.” Na exortação, que é parte de uma campanha pela Paz impulsionada pelo Fórum, é clara e eminente a posição de enérgica “rejeição às tentativas de ingerência externa, destinadas a desestabilizar os processos de câmbio que estão sendo construídos em nossa região, e de abalar a credibilidade e avanço dos processos de integração.” [2]
“Escuta aí” – me gritam – “termine sua nota já, o juiz já apitou para começar o segundo tempo”.
Será que a humanidade se decidirá por cambiar o trâmite do encontro? Esperamos e trabalhamos para que assim seja. Deixamos uma época pra trás, esperamos que a que vem seja muito melhor.
Tradução: Ernesto Kramer
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[1] http://www.g77bolivia.com/es/declaracion-final-de-la-cumbre-juvenil-latinoamericana
[2] A chamada completa do Fórum à Cúpula G77+china pode ser lida em http://integracion-lac.info/llamado-g77