Matéria sobre o Mundial mostra uma perspectiva histórica e representativa do Brasil de 50 anos atrás e de hoje.
Há anos li na revista Selecciones uma nota ampla sobre o grande futebolista brasileiro Pelé (Edson Arantes de Nascimento), pouco tempo depois que o Brasil foi campeão no México em 1970.
O que mais me lembro daquela entrevista foi quando perguntaram a ele o que significava o futebol para seu país, uma nação com milhões de pobres, em especial de etnia afro-descendente.
A resposta de Pelé, se não me falha a memória, trazia implícito algo que anos depois comecei a entender: “Se no Brasil não existisse o futebol, há tempos que teria acontecido uma revolução social”.
Por isso então apreciei uma reflexão solidária do melhor futebolista do mundo.
E entendi que Pelé dizia, como falamos nós jornalistas, “desde os sapatos da gente”, ou seja, desde a dor, a miséria, a escassez, a falta de oportunidades, o racismo.
Pensei que dizia pelo sentimento de um povo vítima não só da injustiça e da desigualdade, mas da corrupção dos políticos que roubavam sonhos que esses mesmo políticos vendiam para que os pobres votassem neles.
Mas não. Pelé, tão famoso e com tanta fortuna acumulada graças ao dom de bater bola como ninguém, falava desde os sapatos de “outra gente”, da gente do poder econômico, judicial e político, da gente que até agora vê a pobreza como parte da paisagem pitoresca do Rio de Janeiro, onde as favelas tomam os morros enquanto ricos tomam as praias e o mar.
Há quase um ano, mais de um milhão de brasileiros saíram às ruas exigir melhores condições de vida, mais acesso à saúde e a educação públicas, salários dignos, tarifas de transporte público de acordo com o bolso dos pobres, e um freio à corrupção de quem reveza no poder político e no governo.
E Pelé voltou a repetir seu rol de bombeiro, de apaga-fogo, com outras palavras, porém no mesmo contexto histórico, que quase não mudou em 50 anos.
Diferente do que disse Neymar, a nova estrela do futebol brasileiro que joga pelo Barcelona na Espanha, Pelé pediu que a gente “se concentre no futebol”, se fazendo de escudo para um sistema socioeconômico que, ao que parece, vive uma grave crise fiscal.
Enquanto Neymar expressa que, junto a outros grandes do futebol de seu país, apoia os protestos porque corresponde ao governo atender as necessidades dos pobres, Pelé, vestido com a camiseta da lendária seleção nacional, tenta fazer com que a gente, indignada e farta, esqueca da péssima qualidade dos serviços públicos e trate de que o futebol, outra vez como no tricampeonato mundial, amorteça o protesto social.
O mal-estar dos cidadãos mostra, justamente, o elevado gasto público (15 bilhões de dólares) pela Copa das Confederações do ano passado, o Mundial de Futebol que acontecerá no próximo mês e as Olimpíadas de 2016.
Porém nos anos 70 não havia internet. Nem páginas web. Nem redes sociais. Nem Facebook. Nem Twitter. Nem blogs. E hoje sim.
Dessa vez, Pelé se tornou foco de rechaço e vaia cibernética tão massivo quanto os que recebeu a presidente Dilma Rousseff, uma ex-guerrilheira, militante de esquerda e brilhante ex-ministra de Lula, e uma mulher que em sua juventude passou anos encarcerada e torturada pela feroz ditadura militar de extrema direita que assolou o Brasil.
Após o golpe, começou no Brasil uma ditadura militar que se extendeu até as eleições de Tancredo Neves em 1985 (onze anos durou essa tragédia), porém de que poucos sulamericanos recordam, pois essa tirania que encarceirou, matou e enviou ao exílio muitos militantes de esquerda, foi ofuscada pelo horror do pinochetismo chileno que se deu no golpe militar contra o presidente socialista Salvador Allende, eleito democraticamente, e pelas outras ditaduras sangrentas na Argentina e Uruguai.
Vamos ler o que dizem os historiadores Manoel Soriano Neto, Vinicius Simoes e Boris Fausto, além de documentos e arquivos compilados no Wikipedia:
“O golpe foi amplamente apoiado por jornais como O Globo, Jornal do Brasil e Diário de Notícias, por grande parte do empresariado, dos proprietários rurais, parte da Igreja Católica, governadores de estados importantes (como Carlos Lacerda, de Guanabara, José Magalhãoes Pinto, de Minas Gerais, e Ademar de Barros, de São Paulo), e amplos setores da classe média.
Um dos motivos para o golpe foi a campanha que esses meios de comunicação fizeram a fim de convencer às pessoas que Goulart levaria o Brasil a um governo parecido com o de Cuba. Por isso se dizia nesses anos que “o que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil”.
Os proprietários de terras e os empresários também desejavam o controle da crise econômica. O temor à “esquerdização” era compartido pelos Estados Unidos, por isso o governo norteamericano ofereceu apoio logístico de sua frota naval no Oceano Atlântico para auxiliar aos golpistas em caso de precipitar uma resistência armada de Goulart aos seus aliados. A notícia do golpe foi recebida com alívio pelo governo de Washington, satisfeito de saber que o Brasil não seguiria o mesmo caminho de Cuba.”
Pelé precisa recordar-se do que ocorreu naqueles anos nefastos, pois, naquele momento, talvez ele estivesse muito ocupado em olhar-se no espelho a desfrutar de sua fortuna e sua fama universal. E a Neymar há de se aplaudir, não só pelo seu talento em campo, por seus gols geniais e seu inegualável carisma para chegar ao coração da torcida, mas porque mesmo tendo fama e dinheiro, é consciente do que ocorre em seu país.
Assim reportaram as agências meses atrás:
“Estou triste por tudo que está acontecendo no Brasil. Sempre tive fé que não seria necessário chegar ao ponto de sair às ruas para exigir melhores condições de transporte, saúde, educação e segurança. Tudo isso é obrigação do Governo”, disse Neymar em sua conta, junto à imagem da bandeira do Brasil.
“A única forma que tenho para representar e defender o Brasil é no campo, jogando futebol. E entro no campo inspirado por essa mobilização”, disse.
“Tenho amigos e família que vivem no Brasil. Por isso, quero também um Brasil mais justo, mais seguro, mais são e mais honesto”, acrescentou, quem agora usa na seleção Brasileira a camisa 10 que fez a fama de Pelé…”.
Enquanto isso, no desespero de serem escutadas, milhares de famílias carregaram cartazes, latas e tábuas, e armaram barracas ao redor dos estádios onde ocorrerão os jogos.
Paradoxos do Mundial: estádios espetaculares como naves espaciais cercados por misereaveis casinhas como caixas de papelão.