No momento, não é a ideia central comentar os crimes contra a humanidade perpetrados pelo Governo autocrático de Bashar al-Assad na guerra civil da República Árabe Síria, mas destacar que já se passaram aproximadamente dois anos e nada foi feito para dirimir este conflito armado, especialmente pelo Tribunal Penal Internacional. Antes de estender esta reflexão, entretanto, cumpre tecer um breve resumo de alguns óbices jurídicos encontrados no modelo dogmático do Direito Internacional para o caso sírio.
O principal deles tem relação com o regulamento interno da Corte Internacional de Justiça, que a proíbe de interceder sobre casos desta magnitude, apesar dela ser o principal órgão judicial das Nações Unidas, conforme preconiza o Artigo 92 da Carta da ONU (1949). A razão para tanto está relacionada a sua argumentada incompetência para atuar em conflitos internos, que somente dizem respeito ao direito interno dos Estados.
A resposta para tais entraves jurídicos consiste no fato de estes institutos terem sido construídos para obstar um terceiro conflito bélico mundial. Todavia, a guerra civil é o conflito armado que mais ocorreu, e ainda acontece, desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Vale ressaltar que há um conflito armado quando se verifica o recurso à força armada entre Estados, ou quando há violência armada prolongada entre um governo e grupos armados organizados, ou entre tais grupos no interior de um país.
Então, que medidas devem ser tomadas para se restaurar o “equilíbrio de paz” no cenário internacional, obstado pelo desconforto de fatores endógenos e truculentos do conflito civil na Síria?
A experiência jurídica internacional tem demonstrado que o Estatuto de Roma, tratado internacional que estabeleceu o Tribunal Penal Internacional, é o mecanismo mais eficaz para resolver a situação da Síria e aplicar os preceitos do direito humanitário internacional. Pode-se exemplificar esta afirmação com os casos de guerra civil da ex-Iuguslávia, Somália, Libéria e Ruanda, todos julgados pela Corte.
O direito humanitário internacional se aplica desde o início desses conflitos armados e se estende além da cessação das hostilidades até o estabelecimento de uma paz abrangente, ou, nos conflitos internos, até que se obtenha uma solução pacífica. Até esse momento, o direito humanitário internacional continua a se aplicar em todo o território dos Estados beligerantes, ou, nos conflitos internos, em todo o território sob controle de uma das partes, haja ou não combates de fato. Em linhas gerais, é a responsabilidade de proteger o preceito fundamental da intervenção humanitária.
Em 2011, a guerra civil na Líbia durou oito meses e também foi um dos palcos emblemáticos da primavera árabe. Diferente da Síria, o Tribunal Penal Internacional expediu ordem de prisão para o ex-ditador Muamar Kadafi, com objetivo de julgá-lo pelos crimes atrozes cometidos contra a sociedade civil no país. Neste caso, é importante mencionar que o Conselho de Segurança foi uníssono, pois agiu sem óbices quanto à resolução publicada pela Assembleia Geral da ONU, que autorizou a intervenção no território líbio. Já no caso da Síria, o Tribunal Penal Internacional sequer citou Bashar al-Assad para instaurar uma investigação.
As iniciativas para ambos os casos são subjetivamente diferentes, tanto da ONU quanto do Tribunal. Só que no caso do Tribunal Penal Internacional há precedentes que autorizam a sua aplicação imediata, e o fato de a Síria não ter assinado o Estatuto de Roma não obsta a competência da Corte para julgar qualquer crime de sua competência. Quando um Estado não assina ou ratifica o Estatuto – caso da China, Rússia e Estados Unidos – o obstáculo jurídico é apenas procedimental, pois ele fica desobrigado das decisões proferidas pelo Tribunal.
No Direito Internacional, o principal fundamento do Tribunal Penal Internacional é julgar o autor de um ou mais crimes internacionais cometidos; ou seja, não será julgado um país, mas um indivíduo. No caso da Síria, o agente público que representa a nação é o Presidente Bashar al-Assad, quem ordenou e anuiu com massacres de civis nacionais e estrangeiros. Logo, é completamente plausível a denúncia e a instauração de processo contra o líder autocrático sírio. Em 15 de julho de 2012, o Comitê Internacional da Cruz Vermelha classificou oficialmente o fatídico episódio como um conflito armado não internacional, isto é, uma guerra civil. Neste sentido, a medida já havia oferecido, em 2012, a oportunidade da aplicação do direito humanitário internacional e, consequentemente, a adoção da Convenção de Genebra de 1949 para a investigação de crimes de guerra na Síria. Até o presente momento, entretanto, nada foi realizado.
Uma das hipóteses possíveis para não se ter adotado providência para dirimir o conflito armado sírio pode ter um viés econômico, pois é notório que a Líbia é o maior produtor de petróleo do continente africano, enquanto que a economia síria se restringe apenas ao turismo local. Além disso, no Estado líbio e parte oriental do Deserto do Saara há o Sistema Aquífero de Arenito Núbio. Ou seja, a Síria, hoje, é economicamente menos atrativa do que a Líbia foi em 2011 para os membros do Conselho de Segurança e, inclusive, o Tribunal Penal Internacional, que atua como órgão independente. Na atual conjuntura dos fatos, o cepticismo é mais forte do que a credulidade dos interesses reais de ambos os órgãos internacionais.
O Tribunal Penal Internacional precisa tomar uma postura mais dinâmica e firme. A sua intervenção na guerra civil da Síria é fato que já deveria estar consumado, pois existe segurança jurídica para tanto e a iniciativa internacional estabelece a sua eficácia desta forma.
Nada obstante, há outro ponto interessante ainda não debatido pelo Tribunal Penal Internacional, mas que também pode ser colocado sub judice no processo do conflito armado na Síria, que é o julgamento dos rebeldes. Em nenhum tribunal os rebeldes foram julgados, somente os agentes estatais responsáveis por crimes de guerra. É uma situação nova, pois se sabe que muitos dos insurgentes que atuam em conflitos internos são terroristas ou xenófobos. O Tribunal Penal Internacional deveria começar a julgar estes indivíduos para conter a proliferação do caos que uma guerra civil proporciona em seu território.
É importante dizer que a crescente interdependência dos países no mundo contemporâneo faz com que seja cada vez mais difícil para as nações não envolvidas e as organizações internacionais ignorarem os conflitos civis, principalmente devido à abrangência e às pressões advindas dos meios de comunicação modernos na atual era da sociedade da informação e do conhecimento digital, que não tolera tiranias e regimes ditatoriais. Este fenômeno ampliou o espectro de democracias já consolidadas e trouxe reforço especial para a democratização de nações oprimidas por regimes totalitários. Ademais, isso acontece ao mesmo tempo em que a evolução da legislação internacional sobre os direitos humanos contribui para pôr fim à crença tradicional da norma jurídica internacional de que os eventos que ocorrem no interior de uma nação não dizem respeito a outros Estados ou indivíduos. Por fim, a omissão do Tribunal Penal Internacional deve ser resolvida, e já, senão, até quando os países limítrofes que acolhem os refugiados, também alvos dos ataques do exército sírio, resistirão?
Por Prof. Me. Rodrigo C. Silva *
Centro Universitário Monte Serrat
* Professor Mestre em Direito Internacional pela Universidade Católica de Santos (UNISANTOS), Pesquisador e Consultor na área de Governo Eletrônico. É Cientista da Computação e sócio membro da Internet Society/ISOC Brasil.