Nova legislação utiliza a figura dos fideicomissos para entregar recursos naturais em concessões a investidores privados

Managua – Depois da ideia de privatizar cidades com a justificativa de combater a desigualdade social, outra iniciativa do governo do presidente Porfirio Lobo foi aprovada em Honduras: a Lei de Promoção do Desenvolvimento e Reestruturação da Dívida Pública, mais conhecida como “Lei Hipoteca”. Para movimentos sociais e outros setores da sociedade hondurenha, se trata de mais um elemento de um amplo processo de privatização do país, afundado em dívidas.

A sessão parlamentar de 20 de julho foi realizada no afastado município de Gracias, no departamento de Lempira, com a participação de uma quantidade muito reduzida de deputados, sem a possibilidade de discussão e debate, e sem contar com o registro eletrônico dos assistentes, para que conste como votou cada congressista.

A lei, cuja aprovação foi sucessivamente ratificada pelo plenário do Congresso Nacional em Tegucigalpa e que agora está sendo vetada por seu principal promotor e defensor, o presidente Porfirio Lobo, utiliza a figura dos fideicomissos para entregar em concessões a investidores privados, em sua maioria multinacionais, os recursos naturais do país considerados “ociosos”, para projetos de exploração. Em troca, o governo terá acesso a recursos líquidos para cobrir parte da gigantesca dívida interna, que vem aumentando principalmente por causa da crise originada pelo golpe de Estado que em 2009 derrubou o presidente Manuel Zelaya.

Depois de grandes manifestações e a menos de 100 dias das eleições, o presidente decidiu devolver a lei ao Congresso para observações. “Quando a lei chegar, irei vetá-la, para retirarmos esse tema das campanhas políticas”, afirmou Lobo. No entanto, para diversos analistas a aprovação só foi postergada. A ideia é não afetar a candidatura oficial, com o atual presidente do Congresso, Juan Orlando Hernández.

De acordo com dados fornecidos pelo Foro Social da Dívida Externa de Honduras a Opera Mundi, a dívida pública total, entre a consolidada e a flutuante, está calculada em cerca de 14 bilhões de dólares e superou os 70% do PIB (Produto Interno Bruto). Desse total, mais da metade corresponde à dívida interna.

“No caso de um morro, por exemplo, onde tenha sido detectada a presença de minerais metálicos, ou de um rio cujas águas vão ser utilizadas para gerar energia hidrelétrica, o governo emite um título com um valor por uma quantidade calculada na base e uma estimativa do fluxo de caixa que seria gerado em um prazo de tempo definido, e o coloca nos mercados financeiros”, explicou Gabriel Perdomo, técnico analista do Foro. Dessa forma, o investidor que adquire o dito título terá o domínio absoluto sobre o bem e gozará de amplos benefícios fiscais. Em troca, vai entregar ao governo a quantidade de dinheiro derivada da estimativa realizada.

Segundo Perdomo, esse mecanismo de titularização de fluxo de caixa futuro não apenas reflete a grave situação financeira na qual se encontra o Estado hondurenho, mas também provoca muitas dúvidas sobre a transparência do processo. “Com essa lei, que foi aprovada às pressas e sem nenhuma socialização ou discussão prévia, o governo se esquiva de todas as disposições e mecanismos legais contidos nas leis que regulam os processos de contratação pública, a transparência, o acesso à informação e a exploração de recursos naturais”, argumentou.

Além disso, o analista do Foro expressou uma profunda preocupação pela introdução, nessas operações, do tema do fideicomisso, “que é o mecanismo com a menor transparência que existe”, assim como os graves impactos sobre os recursos naturais do país e sobre as populações que vivem nos territórios que serão objetos de concessão e exploração. “O verdadeiro objetivo desta lei é puramente político. Vão vender os bens do Estado de forma barata e não transparente e, dessa maneira, terão acesso a novos fundos para melhorar a imagem do Executivo e dos candidatos do partido do governo, tendo em vista as eleições”, concluiu Perdomo.

Para o advogado constitucionalista Oscar Cruz, por trás da aprovação da “Lei Hipoteca” estão escondidos fins muito mais estratégicos, que têm a ver com o processo de consolidação dos grupos de poder e das oligarquias nacionais.

“Há um projeto em marcha que visa substituir a administração e o poder público pela administração privada, e ele está sendo posto em prática com a aprovação de leis e reformas constitucionais que, de fato, alteram as relações de poder existentes”, disse a Opera Mundi.

Entre as leis e reformas aprovadas, o jurista mencionou a Lei da Aliança Público-Privada, que deu vida à Comissão para a Aprovação da Aliança Público-Privada, o conjunto de decretos e reformas constitucionais que criaram as Zonas de Emprego e Desenvolvimento Econômico, mais conhecidas como Cidades-Modelo, assim como a Lei do Emprego por Hora.

“A nova lei vem para fechar um ciclo dessa estratégia, e o uso do instrumento mercantil do fideicomisso, controlado e administrado pelos três principais bancos do país – Banco Atlântida, Banco Ficohsa e Banco Continental – põe em risco o futuro da nação”, alertou Cruz. Segundo ele, com esta operação de entrega dos bens do povo, “estão criando as condições para que as gerações futuras tenham unicamente obrigações e dívidas a pagar, uma enorme mora de caráter social, mais marginalidade e empobrecimento”.

O advogado constitucionalista destacou também que existiriam vários elementos de inconstitucionalidade na Lei de Hipoteca, que são muito semelhantes aos que se detectaram na lei que criou as ZEDE. “Mesmo que saibamos que o sistema judicial responde aos interesses dos grupos de poder, vamos apresentar os recursos apropriados de inconstitucionalidade”, avisou Cruz.

As organizações que há muitas décadas defendem os territórios e os bens comuns do país asseguram que esta nova lei não apenas vai aumentar os fenômenos de exploração e pilhagem, mas, também, vai aprofundar a repressão.

O caso dramático do conflito agrário em Bajo Aguán e o assassinato de nada menos que 60 camponeses organizados, a repressão desatada contra as comunidades indígenas Lenca que protestam contra o desenvolvimento do projeto hidrelétrico “Agua Zarca” na região de Río Blanco, assim como a luta do povo garífuna em defesa de seus territórios e costas, que são invadidos por megaprojetos turísticos, hidrelétricos e monoculturas, são apenas alguns exemplos da grave situação que se está vivendo em Honduras.

“Há uma entrega absoluta do território e da soberania do país. Além disso, pretende-se inculcar a ideia de que nossos recursos são ociosos porque não estão sendo explorados. Isso violenta nossa visão de mundo de que a terra deve ser cuidada, e que é parte do habitat funcional dos povos” disse Miriam Miranda, presidenta da OFRANEH

A dirigente garífuna lembrou, também, que o enfraquecimento institucional derivado do golpe de 2009 aprofundou a entrega dos recursos naturais a quem dá o lance mais alto, e deu início a uma ofensiva midiática-cultural para promover a lógica individualista no país. “Hoje a aposta do sistema neoliberal é acabar com a visão coletiva e comunitária dos povos, onde o direito e o bem coletivo são mais importantes que o direito individual e a competitividade”, explicou Miranda. Para ela, o sistema “voraz e depredador em que vivemos”, considera o tema dos direitos coletivos uma “afronta e um perigo que deve ser combatido”. Neste sentido, Miranda convocou a sociedade hondurenha e os movimentos sociais a seguir com a luta de resistência nos territórios.

por Giorgio Trucchi, do OperaMundi