Leia aqui o relato de Kivanç Eliaçik, diretor da Confederação dos Sindicatos Progressistas da Turquia, sobre os protestos que há quatro dias atingem o país. Inicialmente, as manifestações eram contra a retirada das árvores de um parque de Istambul. Mas após a repressão violenta pela polícia, os ativistas se voltaram contra o primeiro-ministro Recep Tayyip Erdogan.
Por Kivanç Eliaçik – Para o Esquerda.net publicado pelo Portal Carta Maior
“O meu sindicato faz parte da plataforma com outras associações profissionais e de bairro. Esta plataforma contesta as obras na praça Taksim que irão demolir o parque que lá existe.
Quando soube que as escavadoras chegaram para cortar as árvores do parque, corri para lá. Em vez de acabarem com esta construção ilegal – o tribunal tinha suspendido o projeto de construção -, a polícia usou gás lacrimogêneo contra as pessoas que queriam salvar as árvores.
Na primeira noite, levamos tendas e sacos-de-dormir e fomos para o parque. Cantamos e conversamos até de madrugada. Milhares de pessoas juntaram-se ali essa noite e havia um concerto no palco. Discutíamos a reabilitação urbana, destruição ambiental, os direitos humanos e dos trabalhadores. Todas as discussões sublinharam que estes temas resultavam todos das políticas do governo. Estabeleceu-se um comitê que foi crescendo e mudando a sua composição.
Quando acordei de manhã, o acampamento estava afogado em gás lacrimogêneo e toda a gente corria de um lado para o outro. A polícia deitava fogo à tendas. Arrancaram as pequenas árvores que tinham sido plantadas na véspera. As escavadoras voltaram ao trabalho, protegidas pela tropa de choque.
Nós não queríamos nos vingar da polícia. Alguém estava lendo um romance com a ajuda dum megafone que se salvou do incêndio. Outro perguntava, cantando: “mas porque é que puseram fogo à minha guitarra?”.
Quando conseguimos entrar no parque, montamos tendas maiores. Ao fim da tarde já se juntavam dezenas de milhares de pessoas na praça. Entre eles, músicos famosos que cancelaram os seus concertos e vieram para o parque.
Pessoas de diferentes orientações juntaram-se… pessoas e trabalhadores em greve vindos de regiões que sofreram com a sede de lucro das empresas e do governo… adeptos de futebol, partidos da esquerda radical, associações estudantis, feministas, anarquistas, vegans…
Na noite seguinte estávamos melhor preparados. O lixo era recolhido periodicamente. Os voluntários das equipes de segurança patrulhavam a zona. As mulheres podiam andar confortavelmente e em segurança na área do acampamento. As novas leis do governo sobre o álcool tornaram o seu consumo em ação política. As pessoas cantavam slogans e canções enquanto bebiam.
Até de manhã foram distribuídas centenas de óculos de proteção, máscaras de gás, limão, vinagre e preparações caseiras a partir de comprimidos para as dores de estômago para diminuir os efeitos do gás lacrimogêneo. Havia milhares de pessoas no parque quando a polícia atacou às cinco da manhã. Não houve nenhum aviso e de repente já não conseguíamos ver nada. Evacuamos o parque, seguindo o plano que traçáramos antes.
Os confrontos nas ruas continuaram até ao amanhecer. Consegui esgueirar-me para dentro do parque sem problemas, aproveitando o cansaço da polícia. Olhei para a ponte do Bósforo bebendo o meu chá à sobra de uma árvore. Espero que não tenha sido a última vez que contemplo esta vista.
Os manifestantes tentaram entrar no parque, juntando-se várias vezes nas ruas laterais. A polícia impedia-os recorrendo ao uso da força excessiva. Toda a cidade se transformou numa arena de comício. Alguns manifestantes atravessaram a ponte que liga a Ásia à Europa.
Então, quem são estas pessoas que se juntaram na praça? Estaria mentindo se dissesse que todas partilham as mesmas opiniões e os mesmos objetivos. A única coisa que os juntava era a fúria contra o governo… A violência policial contra a juventude que protegia aquelas árvores gerou a reação das pessoas e todas as pessoas que eram contra o governo tinham saído às ruas.
Milhares de mulheres e homens que nunca tinham participado duma manifestação política enfrentaram a polícia noite dentro. Seguiram para uma nova manifestação sem sequer tomar café-da-manhã. Com as suas máscaras caseiras, revoltaram-se contra a polícia, às vezes cantando, outras vezes com gritos de indignação. Havia manifestantes de famílias abastadas, mas também desempregados… De associações muçulmanas aos partidos socialistas, muitos grupos diferentes caminharam ombro a ombro…
As pessoas que procuravam refúgio nas barricadas tuitavam, carregavam fotos para o Instagram com um capacete da polícia. Os mais novos desenhavam grafites desagradáveis para o primeiro-ministro. Outros bebiam cerveja quando podiam descansar… Encontrei um casal que planejava o seu casamento numa cabine telefônica onde me protegi da chuva de balas de borracha.
Nos últimos cinco dias, um número crescente de manifestantes divertem-se e manifestam-se ao mesmo tempo, sem dormir nem descansar. O slogan mais gritado é “Demissão do Governo!”. A violência da polícia não os está afastando. O medo já foi derrotado. Aprendemos a levantar a nossa voz quando estamos zangados. Algumas pessoas lutam, outras dançam. Há os menos sóbrios que lançam ataques ali à volta, enquanto outros recolhem o lixo e tratam os animais de rua.
Não sei o que irá acontecer amanhã”. Mas hoje é um novo dia e somos todos pessoas novas. O que é que estou fazendo agora? Enquanto dezenas de milhares de manifestantes estão exigindo a demissão do primeiro-ministro por muitas razões diferentes, eu estou escrevendo este texto em cima do capô de um carro da polícia destruído pelo povo.”