Obrigaram-nos a cortar os cabelos “a zero” e a barba de quem a tivesse. Uns deveriam cortar os cabelos dos outros, o que causa grande constrangimento em quem corta e sensação de humilhação em quem tem seus cabelos cortados dessa maneira. É uma violência física e psicológica
Ederson Duda da Silva
Daniel Silva Ferreira
Eu, Ederson Duda da Silva, estudante do curso superior de Audiovisual e que trabalho como Editor de Imagens; e Daniel Silva Ferreira, que trabalha como Auxiliar de Designer, fomos abordados e presos na rua Artur Prado esquina de rua Pedroso, próximo à av. Brigadeiro Luis Antônio, bairro da Liberdade, São Paulo, por volta de 21h30 pela Polícia Militar durante o 3º Grande Ato Contra o Aumento da Tarifa de São Paulo terça-feira, 11 de junho de 2013.
Apesar de bem localizado, o endereço que os policiais fizeram constar no Boletim de Ocorrência foi “Praça da Sé, em frente ao Tribunal de Justiça”. Caminhávamos pela rua Pedroso em direção à av. Brigadeiro Luiz Antonio quando dois policiais à paisana atravessaram a rua e, apontando os revólveres e mandaram-nos encostar na parede. Fomos revistados rapidamente pela Polícia Militar e um outro policial do Rocam, de moto. Não portamos armas, não somos agressivos, não aceitamos nenhum dos adjetivos pelos quais nos chamaram a partir desse momento.
Um dos policiais nos disse que chamaria um outro para que reconhecesse em nós alguém que lhe tinha jogado uma pedra. Não fizemos isso. Não jogamos pedra ou qualquer outro objeto em qualquer pessoa, fosse policial ou não. Caminhávamos de volta para casa, após participar da manifestação. Mesmo assim, um outro policial foi chamado e deu o veredito: “Foram eles. Podem levar”.
A partir desse momento começou nosso martírio: Entre impropérios e muitos palavrões, nos algemaram e nos levaram para o 1º. Distrito Policial, no próprio bairro da Liberdade. Foi quando ouvimos uma das frases mais inusitadas de nossas vidas, dita por um dos policiais: “Agora vamos chamar a mídia. Vocês se preparem para ficar famosos.” Pensamos que fosse bravata. Mas eles tinham realmente esse poder. Uma equipe de reportagem da TV Globo logo chegou e nos gravou. Não fomos entrevistados, não falaram conosco. Fomos “apresentados à imprensa” somente. Mas um dos policiais da delegacia gravou uma fala, onde disse que estávamos sendo acusados de “desacato à autoridade, dilapidação do patrimônio público e agressão”. Só aí, ouvindo o policial falar à TV, soubemos das acusações que nos faziam. Injustamente, afirmamos.
Pensamos que, diante de tantos acontecimentos na Manifestação – da qual participamos pacificamente – a polícia se sentiu na obrigação de prender alguém, fosse quem fosse. Tanto que nos prenderam num lugar onde não transitam tantas pessoas, praticamente sem testemunhas, mas registraram um outro endereço – a praça da Sé – onde estava acontecendo um grande massacre da Polícia Militar contra os manifestantes.
Ficamos na delegacia em pé, encostados numa parede, enquanto três dos policiais que nos prenderam davam um “depoimento” ao delegado. Não ouvimos o que disseram, mas achamos estranho que isso não fosse feito na nossa frente. Afinal, não temos experiência nesse tipo de coisa. Nunca fomos presos antes.
Pedimos para fazer um telefonema, o que nos foi negado. Estranhamente, não nos comunicaram formalmente que ficaríamos presos, nem do que éramos acusados. Soubemos disso ao acaso, na hora em que o policial dava entrevista à TV. Nossa sorte foi que o dr. Bruno , advogado que já atendia outras pessoas e era nosso conhecido, nos ajudou àquela hora.
Permanecemos no 1º. DP até duas ou três horas da madrugada. Depois nos algemaram de novo, como se fôssemos perigosos, e nos transferiram para o 2º. Distrito Policial, no bairro do Bom Retiro. A razão dessa transferência, segundo os policiais, era de que no 2º. DP ficavam as pessoas presas “em flagrante”. Ora, flagrante do quê? Andávamos pela rua, simplesmente, na hora da prisão. Nada mais.
No 2º. Distrito ficamos numa cela com mais seis presos, que dormiam à hora em que chegamos. Nos acomodamos como pudemos e dormimos até a manhã seguinte. Por volta das 10 horas nos chamaram, nos identificaram com fotos e passamos por um aparelho de “reconhecimento da fala”, outra coisa que não conhecíamos nem sabemos para que serve.
…E veio mais uma transferência, a segunda em pouco mais de 12 horas. Antes de nos levarem para o CDP – Centro de Detenção Provisória – do Belém, nos levaram para o IML para exame de corpo de delito. Fomos com vários outros presos, pela nossa conta cerca de 30, algemados uns aos outros. Isso aconteceu dentro de apenas um caminhão da polícia, e o ar quase nos faltava na carroceria fechada.
Chegando ao IML ficamos, todos os presos, dentro de uma sala minúscula, de pé, esperando nossa vez de sermos examinados. Após o exame, nos colocaram novamente no caminhão para fazer outra transferência. Perguntamos várias vezes para onde estavam nos levando, mas ninguém respondia. A insegurança, diante dessa sensação de “não-existência”, é altamente estressante. Na verdade apavorante. Mas o pior ainda não tinha chegado.
Depois da viagem dentro do caminhão da policia, com os outros presos, chegamos ao CDP Belém 2, onde fomos revistados e nos fizeram cortar as barras das calças, transformando-as em bermudas, pois lá era proibido calça que não fosse a padrão do uniforme interno – outra medida sobre a qual jamais ouvimos falar. Ficamos na “cela de inclusão” com mais 12 presos. Era uma cela escura, com o chão cheio de água, onde tínhamos que dividir as camas com outros. Chegamos lá depois da hora do almoço. Isso significa que o preso, depois dessa hora, não pode comer nada antes da hora da janta. Ou seja, ficamos sem comer o dia inteiro – e nada tínhamos comido no dia anterior.
Obrigaram-nos a cortar os cabelos “a zero” e a barba de quem a tivesse. Uns deveriam cortar os cabelos dos outros, o que causa grande constrangimento em quem corta e sensação de humilhação em quem tem seus cabelos cortados dessa maneira. É uma violência física e psicológica.
Ficamos lá até um pouco antes seis horas da tarde, quando nos chamaram para fazer outra identificação e depois nos separaram dos outros presos e, numa cela onde ficamos junto com outros dois presos por terem participado da Manifestação, passaram a nos dizer que éramos “inimigos do governo”, que a nossa prisão era política e serviria de exemplo para os manifestantes do lado de fora, entre outras coisas, como que nós “não sabíamos com quem estávamos lidando”. Além disso, um outro agente penitenciário veio nos dizer que não sabia ainda o que ia acontecer conosco e que estávamos sendo separados dos demais presos porque erámos “perigosos” e “para não organizar os presos acusados de delitos comuns”. Disse ainda que essa ordem partia de alguém muito acima dele, hierarquicamente, e, portanto não poderia questionar nem nada fazer. No CDP Belém-2 também nos chamaram de vagabundos, vândalos, baderneiros e de “terroristas do Estado” ao nos levar para um camburão e dizer que mais uma vez seríamos transferidos. Perguntamos e, novamente, nos disseram que não podiam responder – e que apenas o motorista sabia para onde nos levaria. Não sabemos o que pretendiam com isso – fora o absurdo que representa tratamento tão constrangedor, na tentativa de nos atingir humana e moralmente.
Esse é o comportamento que deve ter um funcionário público? O que ganha ele com isso? O que ganha a polícia – que ele representa – como instituição do Estado?
Mais uma vez, no carro, a transferência feita de novo na hora em que seria servido a janta – ficamos sem comer por mais de vinte e quatro horas – seguimos para o presídio de Tremembé, considerado de segurança máxima – como, soubemos depois, foi fartamente noticiado pela imprensa. Na viagem, o motorista freava abruptamente, provocando susto e queda. Durante o percurso, os agentes que nos transportaram diziam que estávamos sendo levados para o presídio de Urso Branco, que fica localizado em Rondônia, que morreríamos lá para servir de exemplo as pessoas do lado de fora que queriam se manifestar, que não deveríamos ter desafiado o Governo, que ganhamos “Passe Livre” pra cadeia. Soubemos que estávamos em Tremembé quando chegamos lá. Foi surpreendente até para os funcionários do presídio, que disseram que nós não deveríamos estar naquela penitenciária e que estávamos lá por ordem superior muito acima deles. Foi uma surpresa também para os presos, pois não somos criminosos nem suspeitos de crime algum.
Passamos de novo pelo processo de identificação e inclusão no presídio de Tremembé, pedimos para fazermos uma ligação – já que esse direito nos foi negado desde início – e disseram que não podíamos ligar, pois como presidiários não tínhamos esse direito lá, apenas na delegacia. Continuamos afastados de tudo o que estava acontecendo do lado de fora, sem poder falar com o advogado, avisar nossos familiares que estávamos sendo acusados arbitrariamente, pois tínhamos medo de que soubessem que estávamos presos através de noticiários – já que a TV filmou nossa prisão.
Só fomos soltos na quinta-feira, dia 12/6, depois de paga a fiança. Soubemos que estamos sendo processados por agressão, dano ao patrimônio público, desacato à autoridade! Isso nos deixa indignados, pois nada devemos nesse sentido e jamais nos envolvemos nesses crimes. Exercemos, simplesmente, o nosso direito de cidadãos, de nos manifestar contra o que não concordamos – no caso o aumento da passagem. Fizemos isso pacificamente, junto com milhares de pessoas. Se houve excessos e gestos incontroláveis, isso tem que ser creditado a outra conta que não a nossa. A truculência policial, que aumentou muito na segunda Manifestação, enquanto estávamos presos, pode ser considerada abusiva e incontrolável. Soubemos da prisão de mais de uma dezena de jornalistas, que foram impedidos de fazer seu trabalho. Mas outros continuaram em seu lugar, e a TV, os jornais e as fotos nas redes sociais puderam mostrar isso fartamente. Se houve alguma baderna, ela partiu da polícia do Estado de São Paulo, com certeza.
Assinado
Ederson Duda da Silva
Daniel Silva Ferreira
Publicado pelo Brasil de Fato