Em seu último manifesto, “Carta à África”(1). Hugo Chávez exprime a sua convicção total de que cedo ou tarde os Africanos e os Latinos Americanos se consolidarão como um mesmo povo mas que somente eles mesmos serão capazes de concretizar este destino. Nós publicamos neste sentido uma entrevista do escritor Boubacar Boris Diop (Dakar, 1946), um dos mais importantes da África contemporânea. Em companhia de outros escritores, ele viajou várias vezes para Rwanda e seu romance: “Murambi, Le livre des ossements (Murambi, o livro dos ossos)” é uma viagem ao coraçao do genocídio que aconteceu entre abril e junho de 1994 (2). Esta entrevista publicada originalmente pela revista mexicana “Círculo de poesia” retoma temas como a necessidade de uma aliança entre a África e a América Latina, o intercâmbio entre os intelectuais, a revolução bolivariana e o exemplo de Chávez, a necessidade de escrever na lingua vernácula, ou ainda sobre o interminável colonialismo da esquerda francesa e ocidental.
Luis Martinez Andrade: Qual é o papel da literatura em um mundo tal como se apresenta para nós, quer dizer, com níveis de exclusão e de pobreza absurdos, situaçao terrível e sem esperança?
Boubacar Boris Diop: Sim, você tem razão, o mundo está muito mal, e cada vez que pensamos que irá melhorar, depois de alguns anos nos damos conta que está pior. A literatura sempre esteve aí, no início para advertir, para dar um alerta, para dizer: “Cuidado: a direção que estamos tomando não é boa.” Por isso, penso que o verdadeiro papel do escritor é acima de tudo, o de estar na vanguarda, de dizer aos que estão vindo: “Atenção, eu acho que isso vai acabar mal.” De uma certa maneira, o escritor é um visionário. No entanto ao anunciar o futuro não perde de vista o presente, seu papel é tanto o de apresentar os males da sociedade quanto o de ajudá-la a se curar. O escritor deixa evidente as desigualdades no seio das sociedades humanas mas também os desequilíbrios em escala internacional entre o Norte e o Sul, entre os países desenvolvidos e todos os países da Ásia, da África e da América Latina que são explorados. A poesia, assim como a literatura no seu conjunto, deve ser ativa e não somente contemplativa, deve ajudar a mudar o mundo.
LMA: Voce acha que a melhor poesia em francês se escreve atualmente fora da França?
BBD: Para mim, o maior poeta da língua francesa do século XX é Aimé Césaire. Mas Aimé Césaire era negro, estando obrigados a reconhecer sua genialidade o confinamos em algum lugar aonde não pudesse se mover. Se Aimé Césaire tivesse sido um poeta francês, branco, seu país teria construído um monumento nacional. Hoje, além da poesia, o teatro e a prosa estão mais vivas fora da França. Mas não temos que tentar escrever melhor que os franceses, o importante para nós, eu acho, é desenvolver nossas linguas maternas para estar em contato direto com nossos povos.(3)
LIMA: No seu romance “Murambi: o livro dos ossos” (1998) você realizou um trabalho de reconstruçao da memória. Qual é a sua opinião sobre o fenômeno da colonização?
BBD: Eu acho que a colonização deve ser pensada a partir da relação com o colonizador. E nosso problema é que a França sempre se recusou a realizar a descolonização. Os países anglofones, por exemplo, tiveram seus problemas mas se pode dizer que de uma certa maneira são países independentes. Basta comparar com a República do Chade, o Camarões, Gana ou o Quenia para se dar conta. Não imaginamos o presidente de Portugal intervir na política interna de Angola. Mas se observarmos a situação no Mali, compreenderemos que a França se recusa a deixar a África, e continua a manter nossos países sob a sua tutela. Por isso um intelectual do Senegal, da Republica dos Camarões ou da Costa do Marfim, precisa ter plena consciência que a luta pela soberania nacional não está terminada. Nós não somos verdadeiramente independentes e nós devemos continuar a lutar. Como você sabe, o famoso “discurso de Dakar” nada mais foi que uma tentativa de teorizar o controle francês sobre suas antigas colônias. Em resumo, a situaçao pós-colonial não é a mesma em todos os países. Existe um especificidade da colonização francesa que ainda não terminou. Recordando o papel da França no genocídio dos Tutsi em Ruanda ou, para não irmos muito longe, as imagens que recebemos do Norte do Mali nós quase retornamos ao século XIX…
LMA: Eu acho até que o presidente francês François Hollande retomou o uso do termo “Francefrique”[1]
BBD: É verdade. Cada vez que um presidente é eleito ele se apressa em anunciar o fim da “Françafrique”. Mas o simples fato de falar desta forma já é uma confirmação que este sistema de dominação é injusto e imoral: nunca é o dominador que põe fim à dominação, este é o papel da vítima, que deve lutar para se liberar. Acreditar que um “bom” e simpático presidente francês vai entrar em contradição com este sistema seria desconhecer o jogo de forças econômicas. A França, por exemplo, controla o uranio da Nigéria, e a compania AREVA[2] não vai concordar em perder o controle. Existem também os bancos, as empresas de telecomunicações, etc. Em resumo, é importante para a economia francesa resguardar o controle sobre a Africa e o estado de espírito do presidente não tem nada a ver com isto. É ingênuo pensar que a Françafrique possa desaparecer sem a nossa própria luta.
LMA: Nós sabemos que o colonizado é dominado também a partir do seu imaginário. Como podemos, na situação de nativos de países pós-colonização, avançar no projeto de descolonização conforme pensado por Fanon[3]?
Eu gostaria antes de fazer uma observação: a primeira condição para superar uma situação negativa é compreende-la. Você se lembra do que Marx disse: “ Até o momento, os filósofos não fizeram mais que interpretar o mundo de diferentes maneiras. O momento agora é de transformá-lo”. Para mim, existe uma relação dialética entre a compreensão e a mudança. E elas podem estar separadas. A cada período histórico existe uma necessidade de identificar o ponto principal e passar para a ação. Frantz Fanon, que você citou, declarou: “Cada geração deve, em um estado de relativo aprisionamento, descobrir sua missão” E ele continua “essa geração tem a escolha entre realizar a sua missão ou traí-la”. Em um mundo onde as identidades foram liberadas, onde a consciência nacional se evaporou, nós podemos observar que existem povos dominados sem mesmo ter a consciência de que estão sendo dominados. Povos são assassinados em nome da luta pela democracia. Uma vez mais a mentira tenta se travestir em realidade.
É tempo de nós, intelectuais da América Latina, da Ásia, da África, mostrarmos que estamos vivendo em um mundo de aparências onde os fascistas se apresentam como humanistas generosos. Quem pode acreditar que a OTAN destruiu a Líbia e matou Mouammar Kadhafi por amor ao povo da Líbia? Esta mentira é inadimissível. Quem pode acreditar que a França interveio no norte do Mali unicamente porquê os moudjaidines aterrorizavam sua gente? Na realidade, é o triunfo da mentira, o triunfo de um certo Ocidente. O problema vem também do fato de que é muito difícil para nós contarmos com forças de ruptura no Ocidente. Durante a Guerra do Vietnam, na época das guerrilhas Latino-Americanas como as de Che Guevara, durante a guerra da Argélia, os progressistas podiam contar com as forças no seio do Ocidente. Hoje já não é mais possível. Vá para a França e eles vão te dizer, tanto a Direita quanto a Esquerda, que François Hollande fez uma boa ação pela África intervenindo no Mali. Nós devemos aprender a lutar. Então eu me pergunto, o que devemos fazer? Nós não podemos mais, como sua questão deixa transparecer, se recusar a agir, com a justificativa de que a burguesia nacional será pior após a independência política. O risco existe, mas a soberania nacional é um ponto de partida essencial, não podemos confiar nos extrangeiros para tudo.
LMA: Você é sem dúvida alguma um escritor engajado. Inclusive participando do Fórum Social Mundial. O que pensa sobre a relação que nós latino-americanos devemos estabelecer com os africanos? Como a Africa vê os governos progressistas latino-americanos?
BBD: Você sabe, eu tenho uma grande amiga que é também líder no movimento do FSM (Forum Social Mundial) africano. Seu nome é Aminata Dramane Traoré, e ela acabou de homenagear Hugo Chavez no jornal semanal “Jeune Afrique”(3). Uma homenagem muito bonita onde ela lembra que Hugo Chavez demonstrou como um país pode gerenciar seus recursos naturais em benefício da população. Os africanos deveriam seguir este exemplo.
Você deve saber que há uns vinte anos atrás a CIA fazia a lei na América Latina, assassinando patriotas, destruindo todos os movimentos de insurreição, realizando um trabalho de destruição considerável. Sem a CIA os Pinochet no Chile, os Videla na Argentina ou os Stroessner no Paraguai não teriam podido existir. Mas as lutas de liberação em suas diversas formas, a luta em forma de guerrilha, ou nas organizações de massa, etc., fizeram com que progressivamente os dirigentes tomassem consciência dos interesses em seus respectivos países. Lula da Silva deve bastante ao Forum Social Mundial de Porto Alegre. Claro, existem também as lutas internas, bem como o papel do Partido dos Trabalhadores (PT) mas Lula deve muito a esta dinâmica alter-mundialista. Eu poderia citar igualmente o caso de Rafael Correa e claro, o de Hugo Chavez. Nossos dois continentes tem muita coisa em comum, mas que no entanto não se traduz em trocas ao nível exigido de nossos intelectuais da África e da América Latina. E é uma pena que as coisas se passem deste modo. Quando eu li Sabato, Garcia Marquez ou Juan Rulfo, para mim era como se fossem escritores africanos. Seus universos não diferem em nada do meu.
LMA: No seu livro “L’Afrique au-delà du mirroir” (2009) [Africa além do espelho] você explica que após uma viagem a Ruanda decidiu escrever na sua língua materna. Quais são as outras razões que o levaram a tomar esta decisão?
BBD: A carreira de escritor é muito complexa. Ela dá a impressão de ser calma, homogênea, ordenada quando, no entanto ela é bastante caótica. Eu comecei a escrever na minha adolescência, por volta dos 15 anos porque eu lia muito Victor Hugo, Molière, etc… E me diziam: “Menino, está muito bem escrito, você tem que continuar”. Eu me sentia orgulhoso desses elogios. Eu comecei a escrever em francês sem me dar conta que a possibilidade de escrever em uma língua estrangeira tinha grandes consequências ideológicas. As palavras do outro veiculavam a cultura dele e, mesmo se me distanciava da sua forma de pensar e da sua obra literária, a consciência ficava de certa forma confusa. Além do mais quando um senegalês que sempre viveu no seu próprio país como eu, recorre ao francês, ele se priva da musicalidade da sua própria língua, das suas vibrações. Eu notei que meus romances em francês não estão ligados à minha vida ou às diversas realidades do Senagal. As palavras são frias…. e elas não conseguem transmitir à narrativa a descarga elétrica necessária que só encontramos na nossa própria língua. Tudo isso ficou claro para mim quando me tornei adulto. Existem também as razões polítcas de passar do francês ao wolof, evidentemente. A França foi cúmplice do genocídio, participou do assassinato de um milhão de Ruandeses para defender a sua língua. Vendo tudo isso eu me disse que, finalmente como senegalês, utilizava uma língua que apodrecia o sangue e que poderia custar um dia ou outro a vida de centena de milhares de senegaleses. Então, sem parar de utilizá-la eu guardei uma certa distância do francês.
Devo ainda dizer que sempre fui um discípulo de Cheikh Anta Diop, o grande pensador africano que lutou toda sua vida pela valorização das nossas línguas. E finalmente, porque escrever romances que as pessoas vão ler na França ou na Bélgica e jamais no seu próprio país? Nos meus romances, eu menciono que a África vai mal. E é verdade. Mas a quem eu devo realmente dizê-lo? Aos estrangeiros ou aos africanos que são os que devem mudar a situação? Os Ocidentais adoram ouvir os intelectuais africanos dizerem que a África vai mal. Com isso eles justificam suas intervenções nos nossos problemas. Se a intervenção francesa no Mali foi recebida com tanto entusiasmo é porque os africanos estão convencidos que são incapazes de dirigir seu próprio destino, e que mesmo nas guerras os europeus devem intervir para lutar no lugar deles. Nós, escritores de língua francesa – eu inclusive, porém em parte – enviamos ao mundo a imagem de uma África corrompida e imatura. Digamos que isto seja verdade…e bom, neste caso escrevamos em uma língua que os africanos possam compreender para que possam eles mesmos mudarem a direção. No final das contas, a questão essencial é: por que escrever? A língua francesa é compreendida somente por cinco por cento dos senegaleses… a resposta não é evidente?
Fonte (espanhol): http://circulodepoesia.com/nueva/2013/03/entrevista-con-boubcar-boris-diop-africa-literatura-y-politica/
Traduçao: Alexandre Oliveira do Couto
Notas:
- Hugo Chavez, “Lettre à l’Afrique” (Carta para a África), 21/02/2013, http://venezuelainfos.wordpress.com/2013/02/24/lettre-dhugo-chavez-a-lafrique-21-fevrier-2013-formons-un-seul-peuple-un-seul-continent-nous-ne-pouvons-rien-attendre-sinon-de-nous-memes/
- Ver http://www.zulma.fr/livre-murambi-le-livre-des-ossements-572001.html
- Aimé Césaire : “É preciso antes de tudo compreender como a colonização atua descivilizando o colonizador, brutalizando-o no sentido próprio da palavra, degradando-o, acordando instintos escondidos, incentivando à luxúria, à violência, o ódio racial, o relativismo moral, e mostrar que a cada vez que um Vietnam acontece, uma cabeça é cortada, um olho é transpassado e que na França nós aceitamos, a cada vez que uma jovem é violentada e que na França nós aceitamos, um habitante de Madagascar é torturado e que na França nós aceitamos, um peso morto é adicionado sobre a civilização, uma regressão universal acontece, uma gangrena se instala, um foco de infecção se estende e ao final de todos estes tratados violados, de todas estas mentiras propagadas, de todas estas expedições punitivas toleradas, de todos estes prisioneiros amarrados e interrogados, de todos estes patriotas torturados, ao final deste orgulho racial encorajado, da disseminação desta arrogância, existe o veneno instilado nas veias da Europa e o progresso lento mas seguro da selvageria do continente.[…]”
- Aminata Traoré. “Hugo Chavez était un résistant”. « Jeune Afrique », 7 mars 2013, http://www.jeuneafrique.com/Article/ARTJAWEB20130307083907/
Artigos adjacentes :
- 1. « O dia em que Burkina Faso fabricou sua bandeira Bolivariana » http://venezuelainfos.wordpress.com/2013/03/20/video-esp-fr-le-jour-ou-le-burkina-faso-fabriqua-son-drapeau-bolivarien-el-dia-que-burkina-faso-tejio-su-bandera-bolivariana/
- 2. “Porque a África deve se inspirar imperativamente de Hugo Chavez” http://venezuelainfos.wordpress.com/2013/03/23/pourquoi-lafrique-doit-imperativement-sinspirer-dhugo-chavez-libre-opinion/
- 3. “África, mãe paciente da revolução bolivariana” http://venezuelainfos.wordpress.com/2012/05/26/afrique-mere-patiente-de-la-revolution-bolivarienne/
[1] A expressão “France-Afrique” parece ter sido empregada pela primeira vez em 1955 pelo antigo presidente da Costa do Marfim, Félix Houphouëu-Boigny, para definir as boas relações com a potencia colonizadora francesa, onde ele era deputado, ao mesmo tempo em que militava pela independência do seu país. No início a expressão que tinha uma conotação positiva, foi se transformando em um conceito pejorativo após o surgimento do livro de François-Xavier Verschave. Fonte: Wikipedia
[2] Empresa francesa construtora de reatores nucleares (N.T.)
[3] Frantz Fanon (20/07/1925 – 6/12/1961) – Franco Argelino nascido na Martinica era Filósofo, psiquiatra e revolucionário. Escritor cujo trabalho inspirou por mais de quatro décadas movimentos nacionais anti colonialismo na Palestina, Sri Lanka e EUA. Fonte: Wikipedia