Para o professor Hector Bejar, o Peru hoje carece de um movimento social integrado para fazer frente ao poderio econômico que domina o país

Matéria de Marcio Zonta, correspondente em Lima (Peru) para o Brasil de Fato

O cenário político peruano desde o governo militar revolucionário do general Juan Velasco Alvarado, passando pelos conflitos armados entre senderistas (militantes do grupo armado Sendero Luminoso) e militares, aos governos mafiosos de Fujimori e Alan Garcia até o surgimento de Ollanta Humala sempre guardou elementos políticos distintos de outros processos latino americanos.

Numa conversa sincera e esclarecedora com a reportagem do Brasil de Fato, o ex-combatente das fileiras guerrilheiras de Che Guevara e hoje professor do departamento de sociologia da Universidade Maior de São Marcos de Lima, Hector Beja traz um relato reflexivo sobre a trajetória da política peruana.

Para Beja a esquerda peruana hoje está totalmente fragmentada e grande parte da população peruana desorganizada, “trabalhando, morrendo de fome e assistindo seis horas de televisão diariamente, sonhando com uma vida melhor”.

 

Brasil de Fato – Para começar Hector, conte sua trajetória política.

Hector Beja – Em 1953 entrei no partido comunista do Peru, que na época estava na clandestinidade, devido à ditadura militar no país presidido por Manuel Odria. Em 1959 me desliguei do partido por discrepâncias políticas. Em 1962 me incorporei ao processo guerrilheiro latino americano, onde atuei até 1966, quando fui preso. Depois de quatro anos encarcerado fui anistiado pelo governo militar revolucionário do general Velasco. Passei a trabalhar com esse governo na implantação da reforma agrária. Em 1975, quando cai Velasco novamente sou perseguido. Em 1976 fundei junto a outros companheiros um centro de pesquisas que editava a revista Socialismo e Participação. Nos anos de 1980 trabalhei na organização das ligas agrárias e na década de 1990 passei a integrar comitês contra o neoliberalismo. Atualmente, além de professor do curso de sociologia da Universidade Maior de São Marcos, tenho trabalhado junto a outros companheiros na tentativa de unir a esquerda peruana em torno de um projeto popular.

 

Sobre o movimento guerrilheiro, como funcionou no Peru?

No Peru tivemos quatro frentes guerrilheiras encabeçadas por duas organizações, o Movimento Esquerda Revolucionária- MER e outro do qual fiz parte, Exército de Libertação Nacional- ELN. As primeiras ações de luta armada no Peru começam na cidade e o ELN em sua primeira ação frustrada perde um de seus combatentes mais famosos do país, o poeta Javier Herauld.

 

Onde foram treinados os movimentos de luta armada peruanos?

Essas guerrilhas foram treinadas em Cuba pelos homens de Che Guevara. Viajei para Cuba em 1961, fiz a escola de guerrilha e participei da declaração de Havana, onde é afirmada a tentativa de uma grande integração latin-americana, além da segunda independência do continente. Por isso não lutei só no Peru, mas, em Cuba em 1962 e realizei ações na Bolívia em 1964, onde fiquei um ano nas minas bolivianas com trabalhadores mineiros.

 

E quando os movimentos guerrilheiros peruanos são liquidados?

Na verdade o Peru fazia parte de um esquema de luta armada que incluía Guatemala, Venezuela, Cuba, Brasil, entre muitos outros. Esse movimento guerrilheiro na América Latina dura com vigor até a morte de Che em 1967. No Peru, o processo se enfraquece em 1965, com uma grande operação do exército peruano apoiado pelos Estados Unidos.

As forças armadas peruanas sempre foram cobiçadas pela força bélica estadunidense desde a segunda guerra mundial por sua posição no Oceano Pacifico, de frente para o Japão. Na segunda guerra mundial, a marinha estadunidense organizou defesas em todas as marinhas da costa do Pacifico e trabalhou junto à marinha peruana, com escuta, transmissão de informação e vigilância de portos.

 

Teve alguma semelhança o movimento guerrilheiro peruano dos anos de 1960 aos grupos de 1980, Sendero Luminoso e Movimento Revolucionário Tupac Amaru-MRTA?

Têm origem similar, mas são épocas diferentes, por isso a guerrilha que fizemos não foi a mesma desses grupos que surgiram depois, embora também se originem de jovens da classe média da universidade de províncias, mas não chegamos ao terrorismo praticado pelo Sendero Luminoso.

 

Sendero Luminoso é um fenômeno que somente existiu no Peru. Como é a trajetória desse movimento e por que chega ao terrorismo?

Eu tenho uma opinião pessoal que o Sendero Luminoso surge das oligarquias rurais afetadas pela reforma agrária, especialmente dos filhos dessas oligarquias que ao serem desapropriados passam a viver refugiados nas cidades do interior, sobretudo nas universidades. Esses jovens acusam o sistema com argumentos de uma esquerda radical maoista, porém com uma raiz aristocrática. Seu principal líder, Abimael Guzmán, é uma espécie de teórico que reformula o maoísmo. Penso que chegou à condição de terrorismo por desespero, porque ficaram muito isolados politicamente e então passaram a obrigar as pessoas a seguirem seus mandamentos com atos de terror que matavam campesinos a facadas e pondo bombas em pontos centrais de Lima. E dessa forma alcançaram seu objetivo marcando a política peruana por dez anos.

 

E o MRTA?

Esse grupo também surge da classe média de Lima e norte do país e vem do Alianza Popular Revolucionaria Americana. Eles queriam fazer uma guerrilha semelhante à de Cuba e Nicarágua, porém em 1985.

 

Mudando de assunto, quem é Ollanta Humala?

Humala era um comandante do exército peruano que aparece num movimento muito estranho, que se levanta contra Alberto Fujimori já no final de seu mandato, em 2000. Esse movimento nem chega a realizar nada de concreto e tem como membros conhecidos apenas Humala e Antauro, seu irmão, que lançam um pronunciamento contra a ditadura civil-militar fujimorista. Dessa forma ganha notoriedade nacional, passa a ser referência à população contra Fujimori e começa a organizar sua candidatura e a fundação do Partido Nacionalista Peruano – PNP.

 

A esquerda peruana apoiou Humala nas eleições de 2011?

A esquerda não tinha um candidato para as eleições, se esperava que fosse Humala. Nesse período tratamos de unificar os setores de esquerda, sindical e partidária. A ideia era fazer um movimento de unificação e se entender com Humala, porém isso não foi possível, ele negou qualquer forma de negociação com os partidos de esquerda nas eleições, que acabaram partindo cada um para o seu lado.

 

A esquerda peruana está fragmentada?

Muito fragmentada. Por exemplo, o movimento social que tem muito vigor está fracionado pela luta contra a mineração no norte, que é de extrema importância, contra as transnacionais famintas pelos projetos de mineração, porém esse grupo não dialoga com os mais de 50 mil mineiros informais que buscam sua regularização. Por outro lado, professores e médicos lutam por melhores salários e condições de trabalho de maneira separada. Além dos indígenas que lutam isolados na selva peruana contra as petroleiras. Nada que culmine num grande movimento nacional.

 

E os partidos?

No Peru você tem dois partidos comunistas, assim como no Brasil, e uma gama de partidos de esquerda menores, além do Partido Socialista que é uma espécie de social-democracia mais radical, porém com uma tendência muito burocrática. Como desconfiam uns dos outros, não são capazes de fazer um movimento conjunto. Isso favorece a oligarquia econômica peruana que não encontra um enfrentamento social a altura do seu poder.

 

E por que essa Fragmentação?

São grupos de famílias com interesses diversos, por detrás de toda essa propaganda de coletividade e comunismo que existe no Peru, tem interesses. Da oligarquia econômica mais poderosa aos mais radicais de esquerda há interesses familiares. E assim cada um busca seu espaço conforme seu ciclo de poder.

 

Quem é a oligarquia peruana hoje?

Um grupo de mineradores da família Benavides associados à transnacional estadunidense Newmont. Outra parte que compõe essa oligarquia tem ligação com os capitais mexicanos, embora esses já tenham perdido espaços para os Estados Unidos. E um terceiro grupo de chilenos sócio da elite peruana no comércio, na comunicação e no transporte aéreo. Claro que esses três grupos também disputam entre eles, porém frente a um inimigo comum se unem. E, por fim, penso que começa a se desenhar outro grupo com a chegada das mineradoras chinesas e brasileiras no país.

 

Se a esquerda se unisse e alcançasse 10% a 15% de votação nas eleições federais teria condições de participar mais das decisões governamentais do país?

Claro, teríamos a possibilidade concreta de fazer oposição e lutar por um projeto popular para uma população que está extremamente desprotegida, trabalhando, morrendo de fome e assistindo seis horas de televisão diariamente, sonhando com uma vida melhor.

 

As mais de três mil ONGs atuando hoje no país, como elas influenciam no cenário político peruano?

Em dados momentos já influenciaram mais. Elas foram fundamentais para a caída de Fujimori, somente com a esquerda tradicional Fujimori não cairia. Na época essas ONGs moveram os intelectuais “progressistas” e reuniram muitos seguidores do cristianismo de esquerda pela argumentação dos direitos humanos. Essas organizações representam uma classe média alta, social-democrata, que em países pobres como o Peru tem muita influência. Agora não esperem que elas resolvam os problemas sociais, pelo contrário, elas postergam sua resolução, fazem apenas luta pela democracia liberal e não pelos direitos sociais.