No Brasil, a região do ABC, na grande São Paulo é um grande centro de luta sindical desde a década de 70. Um dos mais tradicionais sindicatos é o dos metalúrgicos, de onde Lula saiu para o país. Suas lutas tornam-se referência para outras categorias. Neste sentido, é interessante acompanhar a entrevista de seu atual presidente que defende que a democracia entre no ambiente do trabalho e uma política industrial que conduza o capital para a produção, além da especulação desenfreada dos governos neo-liberais.
Segue a entrevista de Rafael Marques para Paulo Donizetti de Souza e Vitor Nuzzi, da Rede Brasil Atual
São Paulo – O paulistano Rafael Marques entrou na Ford de São Bernardo, no ABC paulista, em dezembro de 1986, seis meses depois do afastamento da comissão de fábrica. O clima já era ruim, quando quando aconteceu, em 1990, a emblemática greve dos chamados golas vermelhas, nome dado aos trabalhadores do setores de Ferramentaria e de Manutenção, por causa do detalhe no uniforme. Para ele, foi um divisor de águas nas relações do trabalho: um exemplo de como uma empresa não deve proceder na negociação sindical. Rafael teria sido um dos demitidos, caso a greve não tivesse impedido a dispensa de 80 empregados. É funcionário da empresa até hoje. Na semana passada, assumiu a presidência do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, substituindo Sérgio Nobre, que vai se dedicar exclusivamente à função de secretário-geral da CUT. O mandato da atual diretoria vai até meados de 2014.
Na base do sindicato, a relação com as empresas mudou. Para isso, a entidade considera fundamental organizar os metalúrgicos nos próprios locais de trabalho. Esse é um dos princípios de anteprojeto apresentado há pouco mais de um ano ao governo federal, com o chamado Acordo Coletivo Especial (ACE), após três anos de debate. O assunto provocou polêmica, inclusive dentro da CUT, pois há quem veja na proposta um risco a direitos estabelecidos na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).
Rafael diz que tudo o que é novo causa algum “sofrimento”. Mas sustenta que a proposta dos metalúrgicos, ainda sob análise do Executivo, não retira direitos. “Ao contrário, melhora a CLT”, garante o dirigente. “O que falta discutir com as outras categorias, com as centrais, é que democracia nós queremos no ambiente de trabalho. Queremos fazer um bom debate”, afirma.
Ele se preocupa também em avanços na discussão sobre política industrial, tema que a imprensa “com foco mais financista” olha a contragosto. “O combate à inflação é muito importante, mas não massacrando o emprego, tirando direitos e reduzindo renda das pessoas… Esse debate está vencido. Mas não podemos baixar a guarda.”
Com 48 anos, Rafael tem um filho do primeiro casamento e dois enteados no atual. Gosta de passar as folgas com a família. “Sou um cara caseiro”, diz. “É legal ter um lazer com os amigos, conviver com os companheiros do sindicato, mas com o tempo ficando cada vez mais escasso, e priorizo minhas horas vagas para ficar em casa, que é meu porto seguro.” O tempo livre é curto, já que ele também ocupa a vice-presidência estadual do PT. Quando dá, o lazer preferido é a música. “O primeiro disco que comprei foi do Pink Floyd (Dark Side of the Moon)”, conta. Também gosta de futebol – é corintiano. Nas férias de fim de ano, vai tentar ler Os Irmãos Karamazov, de Fiódor Dostoiévski, que ganhou recentemente.
No seu começo de atividade sindical, você participou daquela greve dos golas vermelhas. O que você lembra disso, e o quanto aquilo ajudou a mudar a relação entre sindicatos e empresas? Aquela greve foi um conflito total.
O ambiente na fábrica era muito diferente do de hoje. Era um ambiente complicado, pior naquela época, final dos anos 1980, do que no começo da década, quando conquistamos a comissão de fábrica. Foram anos terríveis. A Ford voltou a ter um comportamento pré-comissão. Entrei em dezembro de 1986, seis meses depois de a comissão ser afastada. Essa greve foi naquele ambiente de planos econômicos, Bresser, Verão, Collor. Havia uma militância muito forte na Manutenção e na Ferramentaria. Queríamos fazer uma experiência de greve estratégica, que já tinha acontecido na Volks Caminhões. Na assembleia que decidiu ir à greve na campanha salarial, na Ford já havia um entendimento de que seria naqueles setores. Quando saiu um acordo geral, a Ford havia demitido 100 empregados, o que radicalizou o movimento. A greve continuou na Ford e na Brastemp, por questões específicas. Eles contavam que com as demissões o movimento ia enfraquecer. A resposta que eles deram foi cortar o ponto de quem não estava na greve. Foi o grande erro dos caras. Aí fugiu ao controle. A provocação da empresa foi muito mal recebida pelos empregados da fábrica que não estavam em greve. De 100 demitidos, regressaram 80 – inclusive, que não estaria aqui se não fosse aquela resistência. Mas ela não aceitava o retorno de dois diretores de base, o Bagaço (João Ferreira Passos) e o Zé Preto (José Arcanjo de Araújo). Depois, houve uma mudança de nomes e de conceito na Autolatina (holding que uniu Ford e Volkswagen de 1987 a 1996), no sentido de retomar um padrão diferenciado de negociação. Isso teve repercussão nacional, houve muito debate, escreveram sobre o que não deve haver numa relação de trabalho. Aquela greve foi um divisor de águas nesse processo.
A forma de resolver conflitos é outra?
Mudou a qualidade e o ambiente. O ambiente do conflito é a mesa de negociação. Os interesses que divergem entre nós a gente tenta resolver numa mesa de negociação. Também atribuo isso ao fato de termos um governo de centro-esquerda, que também ajuda num processo de maior estabilidade entre o sindicatos e empresas. As greves não cessaram, mas ganharam outros contornos. Houve amadurecimento das partes. E há o desafio de aperfeiçoar o trabalho de base, para dar conta dessa mudança de ambiente, da greve para a mesa de negociação. Mas a greve continua sendo um instrumento importante. Nesta campanha salarial teve greve.
Tem a questão econômica, também. Com algumas oscilações, estes últimos anos foram de crescimento. Os dois últimos já foram anos não tão bons. Como vocês enxergam daqui para a frente, com a perspectiva de a economia não crescer tanto?
Nós pegamos dois momentos difíceis: 2009, rebatimento da crise internacional, e este ano. Mas nas campanhas salariais não tivemos tanto efeito. Este ano já foi mais difícil, com muita dificuldade no primeiro semestre. Porém, agosto foi o melhor mês da indústria automobilística no Brasil. Tivemos o benefício da intervenção do governo brasileiro, lógico, provocada por nós para não deixar que a crise afetasse ainda mais os trabalhadores. Este ano, apesar das dificuldades, fechamos a campanha salarial num índice muito bom, com 2,5% de aumento real. Como agosto foi muito bom, isso influenciou setembro. Se não houvesse as intervenções que ocorreram em 2009 e este ano, não teríamos os mesmos resultados e o desemprego seria maior.
Esse modelo de medidas emergenciais, como redução pontual de imposto e as desonerações da contribuição previdenciária sobre a folha de pagamento, não tem um certo limite? Não é necessário discutir mudanças mais profundas, estruturais?
O governo tem feito uma gestão macroeconômica, como o ministro Guido Mantega diz, “desentoxicando” determinadas práticas e conceitos. Operadores que estão na economia estão intoxicados por câmbio muito elevado, taxas de juros altas. Isso faz com que empresas ganhem mais dinheiro na especulação do que na produção. Acho que as medidas, tanto no câmbio como na taxa de juros, isso provoca um novo ambiente para um novo ciclo de investimento. O Brasil cresceu muito baseado no mercado interno, que foi garantidor de conquistas que tivemos na última década. Acho que o ciclo agora será de grandes investimentos privados, na indústria, diretamente na produção, infraestrutura, nas parcerias público-privadas. Acho que esse ciclo está se iniciando. Dentro do Plano Brasil Maior, com o regime automotivo e outros que vão surgir. Com nacionalização, pesquisa em tecnologia. Esse regime tenta também trazer processos decisórios para o Brasil. Isso tende a ser um novo horizonte para o mercado de trabalho brasileiro, e aí a educação profissional terá um papel fundamental. Acho que esse modelo novo nos trará vários benefícios. Estamos nos preparando para isso. No sindicato estamos discutindo um novo modelo de educação profissional, estudando um modelo experimental para a região do ABC, com gestão compartilhada, incluindo Senai, Instituto Federal, Universidade Federal do ABC, empresários, governos municipais. Esse processo pode nascer de um boom de investimento e de pesquisa e tecnologia. Nesse novo ambiente, quem quiser ganhar dinheiro vai ter de ganhar produzindo ou indo para o mercado acionário, não indo para o mercado financeiro.
O governo tem ouvido o movimento sindical? Houve alguma reclamação das centrais na época do lançamento do Plano Brasil Maior…
A relação com o governo é satisfatória. Lembro que na greve da Ford, a de 1999, quando a empresa demitiu 2.800 trabalhadores, tentamos uma audiência com Fernando Henrique Cardoso. Fomos recebidos pelo Antônio Carlos Magalhães, que era o presidente do Senado. O máximo que conseguimos foi uma notinha do porta-voz, de rodapé, desejando que conseguíssemos alguma saída. Mesmo há pouco, o José Serra, quando governador, não recebia os sindicatos. Queremos estreitar o nosso ambiente de tratar com o governo temas que são importantes para os trabalhadores. Transformamos essa questão da política industrial uma coisa muito maior do que ela seria. Lembro que em setores da mídia, principalmente essa com foco mais financista, a reação não foi boa. Hoje é difícil você ver alguém falando contra esse tema da indústria. Vencemos, inclusive, uma visão geral de que a indústria era um tema menos importante. Grande parte do que está contido no programa nasceu no sindicato, na central, nesses movimentos.
Alguns analistas e colunistas econômicos atribuem parte da queda do crescimento à redução do spread bancário…
É o viés financista, não é? A tese é se o banco se enfraquece, você tira recursos da economia real. A gente assiste isso todo santo dia, mais agora, em época de 13º, as empresas não conseguem financiamento. É porque não tem dinheiro? Não. O banco seleciona carteira, fica mais rígido com determinados números de clientes. O banco sempre quer o cliente mais seguro. Os bancos estão aumentando os preços dos encargos, as taxas. Quando falo em desintoxicação da economia, é exatamente isso. Podem ganhar dinheiro com a produção, mas perderam o hábito. O sistema bancário não pode ser isso. A Caixa e o Banco do Brasil cresceram em faturamento, porque começaram a irrigar. Aquilo que o banco privado não fez, os estatais começaram a fazer. Esse tipo de afirmação é exatamente daqueles que não acreditam que o Brasil pode andar com as pernas próprias, que pode priorizar a produção. É um estágio que a gente tem de vencer. Se a gente baixar a guarda, essa tese volta. O combate à inflação é muito importante, mas o combate à inflação massacrando o emprego, tirando direito das pessoas e reduzindo renda das pessoas… Esse debate está vencido. Só não podemos baixar a guarda.
Por falar em direitos, o Sindicato dos Metalúrgicos apresentou um projeto que está causando discussão inclusive dentro da CUT, que é o do Acordo Coletivo Especial (ACE). Como é que vocês estão fazendo essa discussão, você acha que está havendo um falso debate sobre essa questão de retirada ou não de direitos?
Tudo o que você propõe de novo causa um certo sofrimento. Quem propõe tem de trabalhar quadruplicado para expor o que significa aquilo, e quem não gosta tem resistência. Acho que estamos num período de iniciar um bom debate nacional. O Fórum Nacional do Trabalho, no começo do governo Lula, foi um palco importante de debates, que acabou culminando na legalização das centrais sindicais. Foi muito importante, mas ficou nisso. Não é só na categoria que a negociação está mudando de patamar. É generalizado. Há um novo entendimento, em vários setores isso já é uma realidade, e todo mundo precisa, para aperfeiçoar seu modelo de negociação, de organização no local de trabalho.
Nem todos os setores têm.
Em 20 anos aqui, conseguimos ter 13 comissões de fábrica, que depende de negociação com a empresa, que até apita no estatuto. No nosso modelo, quem decide se tal empresa vai ter uma organização no local de trabalho é o sindicato, não é a empresa. O estatuto dessa representação é o do sindicato. O que falta discutir com as outras categorias, com as centrais, é que democracia nós queremos no ambiente de trabalho. Se o patrão está lá na empresa, o sindicato está na sede, as chefias fazem o que patrão determina, sem um representante ali para defender o interesse dos empregados. Estamos avançando no Brasil do ponto de vista democrático. Participação popular, conferências no país sobre vários temas para compor a política pública. Isso é democracia. Mas também no setor privado temos de aumentar a participação democrática. Não é só fazer eleição de dois em dois anos. Precisa ter democracia no ambiente de trabalho, e para isso o sindicato é fundamental. Esse debate tem a ver com o aprofundamento da democracia no Brasil, e a nosso ver a organização no local de trabalho é uma bela ferramenta em favor dos trabalhadores. A base do nosso projeto é essa. Evidentemente que, baseado no que aconteceu no FNT, além de ter algumas divergências conceituais entre as centrais, muito mais conservadoras foram as entidades patronais. Ali sim está o auge do conservadorismo, gente que há 40 anos é dirigente patronal. O projeto também olha o equilíbrio entre organização no local de trabalho, que prospere a democracia, mas também não coloque os empresários numa contraofensiva. A base do equilíbrio é a negociação. Aqui no ABC a gente avança em conquista, em direitos. A resistência é um pouco do conservadorismo, que é natural quando você se tem um projeto novo. Tem de ter muito debate, muita conversa, tirar do processo o que é especulação. Estou convicto, o que a gente produziu vai contribuir muito para o modelo sindical no Brasil. E estamos dispostos a fazer um bom debate a esse respeito. É um projeto que também amplia a qualidade e a penetração na base.
O do ABC é um sindicato que já aprimorou, desde os anos 1970, esse processo de negociação. Exercitou isso. Dá para exportar esse processo para outras realidades?
Mas isso já existe, não é? Os químicos têm um processo de negociação intenso, não o vejo como tão diferente do nosso. Os bancários têm uma negociação nacional articulada, avançaram muito. O que estamos propondo não é uma coisa exclusiva do ABC. Pegamos nossa experiência, mas ela conversa com muitas outras experiências.
É exagero dizer que o projeto representa ameaça a direitos?
Não se tratar de permitir que o negociado prevaleça sobre o legislado. Pelo contrário, o artigo 7º da Constituição (que trata dos direitos sociais dos trabalhadores urbanos e rurais) está totalmente preservado. O que acontece com a CLT? Para reduzir jornada de trabalho aqui na categoria, a gente negocia a hora de almoço para compensar as horas aos sábados, porque as empresas que trabalham em escalas de revezamento trabalham em sábados. Então, a gente faz um acordo que reduz o horário de refeição e libera o trabalhador um sábado sim, um sábado não. Isso reduz os dias de trabalho da pessoa. Esses acordos são aprovados com 100% de adesão dos empregados. Aliás, a reivindicação vem deles, para ter o sábado livre. A gente faz essa negociação, a empresa tem de investir no restaurante, aí chega o fiscal e diz que essa negociação não pode ser feita, porque tem de ser uma hora de refeição. Como é que um acordo que tem 100% de adesão dos empregados, concordância do sindicato e da empresa, é aprovado em assembleia, pode ser invalidado por um fiscal do trabalho? Não concordo com isso, de jeito nenhum. Isso não tem o menor sentido. Nós negociamos PLR (participação nos lucros ou resultados), e em alguns casos os trabalhadores pediam três parcelas, e não duas, como está na legislação. Aí vem o fiscal e diz que só pode ser duas. Fizemos dois anos acordos desse jeito e tivemos de parar, porque o fiscal do Trabalho considera irregular. Mas se é um desejo dos empregados, como é que você não dá direito de essa negociação acontecer? É nesse patamar, em que você pode fazer diferente do que a CLT prevê, mas fazer melhor. Então, o projeto dá conta disso. Para ter legitimidade nesse processo, quais são as regras? Primeiro, o escrutínio tem de ser secreto e acompanhado. A proposta, para ser validada, tem de ter 60% de aprovação. Isso, na verdade, é uma forma de fazer para que não sejam retirados direitos. Agora, evidentemente que isso cria um certa confusão. Mas não é retirando direitos, é fazer diferente para melhor, e quem decide isso é o empregado envolvido e seus representantes. E o acordo coletivo especial é por adesão. Uma empresa que tem prática antissindical não pode fazer jus a esse tipo de negociação. Quem usa interdito proibitório não pode fazer esse acordo.
O que prejudicou o acordo sobre isenção de imposto de renda na PLR, que vem desde maio, quando houve uma sinalização positiva do governo?
O sinal positivo continua. O sinal continua dado para nós que haverá uma nova tabela. Estão prometendo para este ano ainda. Temos informação de sinal verde da Dilma ao ministro Mantega para formular uma proposta e nos apresentar. O retardamento dessa questão, e também do fator previdenciário, é que existem efeitos da crise internacional no Brasil. A previsão para o PIB era de crescer 4%. No Brasil, a crise se traduz em menor arrecadação do Estado, menor crescimento. Ainda tem um mercado de trabalho forte no Brasil, claro que agora está menor… Acho que essa é maior investida do governo, para não deixar o mercado de trabalho ser atingido pela crise. Há outras questões. O próprio Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) está num ritmo menor. Atribuo a isso alguns compromissos que não foram celebrados conosco. Temos de aprimorar nossa interlocução com o governo e com a Previdência. A proposta 85/95 pode ser uma proposta de transição interessante, sem estabelecer idade mínima. É melhor do que está acontecendo no resto do mundo. Agora, na Previdência você nunca vai ter uma lei que dure 50 anos. O próprio STF, que agora é tão falado, foi quem acabou com a tese do direito adquirido.
Você é um dirigente partidário e, ao mesmo tempo, de um dos mais importantes sindicatos do país. De que forma os trabalhadores que você representa podem se sentir seguros de que seu lado dirigente partidário não vai se sobrepor ao lado sindicalista?
Eu tinha duas opções, que estavam sendo apresentadas: presidir o PT no estado e presidir o sindicato. Optei pelo sindicato. A minha opção é a prova de que não vou colocar as questões partidárias à frente da categoria. Muita gente estava propondo isso (disputar a presidência estadual), mas eu optei pelo sindicato porque é onde eu surgi. O PT tem uma contribuição importante para a história do Brasil, assim como este sindicato tem. Fiz uma opção baseada na minha trajetória.