Para secretária-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, índices altos de letalidade das polícias demonstram indiferença de governantes nas políticas de controle da PM
Por: Raimundo Oliveira, da Rede Brasil Atual
São Paulo – A falta de controle da violência, principalmente a policial, e o discurso de governantes estaduais como Geraldo Alckmin (PSDB), governador de São Paulo, que dão legitimidade política ao uso da “força” como regra por parte da polícia, não como exceção, demonstram que além de não ter êxito no combate ao crime, a política de segurança pública do estado mais populoso e mais rico do país é indiferente aos direitos humanos. Entre 2007 e 2011, de acordo com informações do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 2.311 foram mortas pela polícia no estado de São Paulo.
Para a secretária executiva e coordenadora de projetos do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Samira Bueno, mesmo com a redução de quase 70% nos casos de homicídios naquele período no Estado de São Paulo, o número de assassinatos ainda é alto e esta diminuição não foi acompanhada de queda nas taxas de mortes provocadas pelas polícias, principalmente a Polícia Militar. “O resultado ‘morte’ era para ser uma fatalidade nas operações da polícia, e não o padrão. São Paulo tem uma média de 4 mil a 4,5 mil homicídios por ano e 20% do número das mortes ocorridas na cidade são praticadas pela polícia”, afirma a pesquisadora.
Segundo ela, a falta de controle do uso da força por parte da polícia no Estado de São Paulo é evidenciada por dois dos principais parâmetros internacionais usados sobre o tema: o primeiro, quando o número de mortes causadas pela polícia for maior que 10% do total de homicídios em geral, e o segundo, quando há mais mortes do que feridos.
“A grande questão é que no Brasil a gente não consegue mudar o padrão de uso da força policial. Em alguns momentos se conseguiu reduzir. Em 1996, por exemplo, houve 200 casos de mortes por policiais no Estado de São Paulo. O governo, quando implementa políticas públicas voltadas ao controle das polícias, consegue reduzir as taxas de letalidade, mas não é capaz de mudar o padrão de uso da força”, afirma. Isso faz com que as taxas variem conforme as crises cíclicas de violência que têm ocorrido em São Paulo desde o início da década de 1990.
Em análise feita para o 5º Relatório Nacional sobre Direitos Humanos no Brasil pelo Núcleo do Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP), Samira aponta que casos de violência institucional no Brasil nos últimos anos costumam ser acompanhados de respostas frágeis por parte do poder executivo, do Judiciário, das polícias e do Ministério Público. A análise no relatório foi feita juntamente com Renato Sérgio de Lima, membro do conselho de administração do fórum.
Para ilustrar esta afirmação, Samira e Lima apontam como exemplo a nomeação de Nivaldo Cesar Restivo, feita por Alckmin, em setembro deste ano, para o comando das Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota). Ele responde a processo por denúncia de lesão corporal grave que teria ocorrido após o massacre de 111 presos no presídio do Carandiru, em outubro de 1992. Restivo participou da operação de rescaldo em que 87 presos sofreram agressões e maus tratos. O massacre do Carandiru ocorreu em outubro de 1992 e até hoje os 120 policiais militares envolvidos no assassinato e em agressões não foram julgados.
No mesmo mês que nomeou Restivo para o comando da Rota, Alckmin ao defender ação do grupo especial da PM paulista em operação que resultou na morte de nove pessoas em Várzea Grande Paulista, na Grande São Paulo, disse que “quem não reagiu, está vivo”. Em cerimônia de transmissão do cargo na Secretaria de Segurança Pública no mês passado, o governador disse que o policial militar “é” o Estado em contraposição ao discurso de Fernando Grella, secretário empossado, que havia afirmado que os policias “representam” o Estado. Alckmin foi enfático ao dizer que os policiais não apenas representam o Estado, mas que eles realmente “são” o Estado.
De acordo com Samira, os índices de letalidade das polícias em São Paulo desde meados da década de 1980 oscilam de acordo com as políticas de segurança definidas pelos governadores e seus secretários de segurança, ora atingindo picos como o de 1992 (1.470 mortos em operações da PM, incluindo aí os 111 do massacre do Carandiru), quando Luiz Antonio Fleury Filho era governador, ora baixando, como os cerca de 200 por ano entre 1996 e 1997, durante governo de Mário Covas (PSDB).
Segundo Samira, na década de 1990 foram adotadas ações voltadas para o controle das polícias, como o afastamento do policiamento ostensivo por seis meses de policiais militares envolvidos em mortes, a criação da Ouvidoria da Polícia do Estado de São Paulo (1995) e a divulgação de informações oficiais da Secretaria de Segurança Pública (1995), mas na década seguinte houve retrocessos.
“Na última década o que se tem é que normalmente promotores de Justiça estão à frente da Secretaria de Segurança e o que se esperava é que, a partir do momento em que o Ministério Público, que tem como uma de suas prerrogativas constitucionais o controle externo das polícias, assumisse a secretaria, é que os índices de letalidade diminuíssem. Não só não foram reduzidos como, aparentemente, o controle das polícias sai da agenda do governo”, diz Samira.
De acordo com ela, os sinais dados pelos governantes, secretários de segurança pública e pelos comandos policiais são fundamentais para determinar a forma como as polícias agem. “Quando o Grella disse no discurso de posse que direitos humanos e combate ao crime não são incompatíveis isto é um sinal muito importante, um indicativo”, afirma. Samira vê com otimismo a indicação de Grella para a secretaria em relação à expectativa sobre controle do uso da força policial e diminuição das taxas de letalidade.
Do discurso aos atos, Samira aponta que o uso da Rota em operações de policiamento ostensivo coincidiu com os períodos de maiores taxas de letalidade da PM. “A Rota tem um papel fundamental, mas não deve funcionar no policiamento ostensivo. O que fez o Ferreira Pinto (Antonio Ferreira Pinto, ex-secretário de Segurança) foi o que Fleury fez no início da década de 1990, quando colocou a Rota no policiamento ostensivo. É o período com o maior número de mortes pela polícia. Foram 1.140 em 1991 e 1.470 em 1992,”, afirma.
Ferreira Pinto ficou cerca de três anos à frente da secretaria e foi substituído por Fernando Grella após uma onda de violência em São Paulo com aumento no número de homicídios em geral, mortes executadas por policiais, mortes de PM atribuídas ao Primeiro Comando da Capital (PCC) e de suspeita de atuação de grupos de extermínio formados por policiais militares.
Uma das questões apontadas pela secretária executiva do Fórum Nacional de Segurança Pública como evidência da falta de controle sobre as polícias é o uso dos registros de “resistência seguida de morte” e “autos de resistência” em boletins de ocorrências quando de mortes executadas por policiais durante operações de policiamento. O fim destes registros por parte das polícias civis estaduais em boletins de ocorrência foi recomendado por uma resolução da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República na primeira quinzena de dezembro, mas no Estado de São Paulo, por exemplo, o governo já informou que não vai abandonar o registro de “resistência seguida de morte”.
“Em São Paulo, um assassinato cometido por um policial não é registrado como homicídio, é registrado como resistência seguida de morte. O que quer dizer que o policial, em legítima defesa, teve de atirar e a culpa fica para a vítima. Com isso, ele vai ser julgado por um tribunal militar e não pelo poder Judiciário”, afirma.
Além de patinar no controle do uso da força pelas polícias, o governo paulista também tem tido uma atuação insatisfatória no combate aos crimes em geral e especialmente ao crime organizado. Segundo Samira, o bate-boca entre o ex-secretário Ferreira Pinto e o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, em outubro, no auge da crise de violência em São Paulo, após oferta do ministério para envio da força de segurança nacional, recusada pelo secretário, é uma evidência de erro na política de segurança estadual.
“Ou trabalha de forma integrada, ou vamos continuar nestes ciclos de violência, como em 2002, 2006 e agora, em 2012. São Paulo não está conseguindo combater o crime, temos uma redução no caso de homicídios, mas o número de crimes contra o patrimônio é altíssimo e há um problema grave, o crime organizado. De 2006 para cá, se começou a discutir o PCC (Primeiro Comando da Capital, facção política) e o governo chegou a dizer que tinha desarticulado o organismo. Mas o que percebemos nesta última crise é que isso está longe de acontecer”, afirma.