A disputa pela terra no campo e na cidade não é novidade mas os métodos devem ser conhecidos para que possam ser combatidos. Publicamos abaixo uma carta do grupo Direitos Urbanos | Facebook, uma iniciativa dos moradores de Recife (capital de Pernambuco no Nordeste do Brasil). Além da conhecida força da grana envolvida na especulação imobiliária, vale a pena seguir o texto para cair em conta do papel anti-democrático da justiça, nos vários níveis.

 “Sozinho, vi-o de novo cruel e forte, soprando, espumando. E ali permaneci, miúdo, insignificante, tão insignificante e miúdo como as aranhas que trabalhavam na telha negra.Foi esse o primeiro contato que tive com a justiça.” (Graciliano Ramos)

“Carta aberta ao povo do Recife em apoio e solidariedade às famílias da comunidade Vila Oliveira:”

A epigrafe é um trecho de um capítulo do livro Infância, de Graciliano Ramos. Nela, o escritor adulto lembrava de um cinturão com o qual seu pai, por alguma razão e do seu lugar de autoridade absoluta da casa, bateu violentamente nele quando criança, acreditando que o menino havia escondido o maldito objeto. O pai, depois da surra, logo em seguida, encontrara a correia dentro da rede. Ele mesmo a havia perdido. Questão crucial: como tirar a dor do menino e as marcas da violência deixadas no corpo? Como falar de justiça, de ressarcimento, quando a autoridade máxima foi a responsável pelo ato assimétrico de aplicação da violência? O silêncio do pai, incapaz de autocrítica, era o sentido da sentença mórbida sentida no corpo a chicotadas.

Na noite do dia 6 para o dia 7 de novembro de 2012, vinte famílias da comunidade Vila Oliveira foram expulsas de suas casas. Assistiram em seguida a destruíção das suas habitações, construídas com suor e trabalhos próprios há mais de 30 anos. O nome do cinturão: imissão de posse.O pai, sem rosto, é a autoridade invisível da justiça.

A área havia sido desapropriada em 1988, ano da Constituição Federal, pelo governo Arraes, que deu posse aos moradores. De 1993 a 2009 se arrasta o processo de contestação aberto pelos prentensos proprietários, com ganho de causa dos moradores em primeira instância, baseado em que, ainda que o terreno tenha pertencido de direito e de fato ao casal ingressante, a boa fé dos moradores e o lapso temporal transcorrido entre a ocupação e a resistência dos autores é suficiente para configurar a aquisição da propriedade por meio do exercício da posse ad usucapionem. Entretanto o Tribunal de Justiça de Pernambuco reverteu a decisão em 2011, quando o desembargador Adalberto de Oliveira Melo revogou a decisão anterior e julgou procedente o recurso do casal proprietário baseado numa ressalva nos termos de desapropriação entre a Santa Casa de Misericórdia e a Cohab que excluía os terrenos adquiridos por terceiros e registrados em cartório até então e num cálculo absurdo: o terreno de 1000m² ultrapassaria a área prevista em lei para uso capião urbano, entretanto não foi considerado que esta área está dividida por cerca de 20 famílias, gerando cotas de cerca de 50m². Sem assistência jurídica adequada, as famílias perderam o prazo para recurso e a decisão transitou em julgado, apesar da tentativa de recurso do Governo do Estado, através da Perpart, que não foi considerada parte legítima, embora seja gerenciadora dos passivos do governo e portanto, naturalmente legítma num caso que envolve desapropriação com a Cohab. Além de tudo, não há clareza nas informações divulgadas se o Ministério Público pode acompanhar devidamente o caso, como é obrigatório em situações de remoção.

Uma vez tomada a decisão judicial, sua execução pelo Estado, aconteceu da pior forma possível. A comunidade chegou a receber garantia da Promotoria Pública de que não seriam retirados, mas em meio a burocracia estatal, parte dos documentos que pediam a suspensão da execução chegou atrasada ao destino e, não só o pedido foi ignorado, como a execução da expulsão dos moradores e derrubada das casas aconteceu durante a noite, de forma truculenta, com presença do batalhão de choque, sem ao menos garantia moradia, abrigo ou ajuda financeira para as pessoas, sem controle público, a ponto de um a um dos advogados da parte ganhadora do processo ter sido permitido dar uma marretada na casa de uma senhora antes do início da desocupação. Diante dessa violência, não durou muito resistência dos moradores, que chegaram a colocar os botijões de gás para fora de casa, ameaçando, ameaçando durante toda uma manhã botar fogo nas casas caso a polícia tentasse desocupar à força, garantindo assim um pouco mais de tempo. A assistência do Governo do Estado chegou tardiamente, após o despejo e a destruição das casas, após noite e dia de completo e concreto abandono, com a promessa de relocação para conjuntos habitacionais próximos e cadastramento para auxílio aluguel de ínfimos R$150,00 e com o reconhecimento público da posse dos moradores sobre o terreno.

No limite, o que determinou a expulsão das pessoas e destruição das casas, foram aspectos processuais, que nada tem a ver com princípios fundamentais, garantidos pela Constituição Brasileira e pelos principais acordos internacionais em favor da Pessoa, como o direito à moradia, a dignidade da pessoa humana, e a função social da propriedade, e nem com a relação concreta dos moradores com o espaço que construíram e onde viveram até esta semana, e que era seu suporte para estar conosco na cidade, sob a promessa de proteção pelo poder público materializada no termo de posse. Isso apesar do direito ao uso capião ser assegurado a eles, tanto pela legislação vigente à época da abertura do processo que exigia ocupação por mais de 20 anos, quanto pela Constituição de 88 que exige apenas 5 anos de moradia contínua e pacífica. Essas pessoas têm direito não só às casas que construíram, como à terra que criaram: como boa parte da maré do Recife, o aterro foi feito a braço sobre o alagado pelos moradores hoje expulsos, numa época em que não havia a perspectiva de valorização que se verifica hoje no Pina (e que coincide com o novo acirramento da disputa pelo terreno). Nesse período, seu valor era reconhecido exclusivamente pelos próprios moradores, através do uso e do vínculo.

Triste contradição: a Justiça, (até que se prove o contrário) dentro da legalidade, cometeu uma trágica e irreversível injustiça. O cinturão na mão do pai em Infância.

Há que se encontrar o caminho dentro do Direito para corrigir a situação no que ela ainda tiver de reversível ou compensável. Principalmente quando o histórico do lado frágil, confirmado pelo episódio de ontem, é quase sempre o do desespero diante do Direito. Não poucas as vezes, é mesmo o Direito que vem esmagando e tirando os pingos de esperança das populações mais vulneráveis (como não seria se o lado fraco é sempre tão miúdo e insiginificante?) revelando que a justiça, pretensamente neutra, tem tido lado definido ao longo de nosssa história. Não se trata de uma somatória de escolhas pontuais pelo lado mais forte, mas de uma escolha estrutural, historicamente construída. Essa escolha se dá com contornos particulares no Brasil, na maneira como a Justiça (as políticas públicas e as relações sociais) permite(m) manejos e acomodações ao longo de um tempo mais estendido de forma que, vencida(s) pela força ou pelo cansaço, sempre cede(m) à pressão do mais forte em detrimento do mais fraco que deveria proteger, visando o ideal do equilíbrio.

Na Vila Oliveira, são 20 famílias pagando com um corte abrupto e profundo na trajetória de vida de cada um de seus integrantes e do grupo que formam juntas, aqui e agora, por um processo constante e paciente de naturalzação dessa escolha pelo lado mais forte, aqui levado a cabo pelo formalismo judicial.

É de dentro dessa naturalização que nos acostumamos com a idéia de que imissão ou reintegração de posse vêm sempre junto com remoção forçada e desrespeitosa, com abandono, com desamparo e com humilhação. É desse mesmo lugar que tendemos a não perceber a hierarquização que há nesse tipo de remoção em relação ao próprio direito à propriedade: do dono da terra, conforme reconhecido oficialmente, e do dono dos pequenos bens sobre a terra, dentro da casa: roupas, brinquedos, memórias, máquinas, ferramentas, etc.

Os moradores da Vila Oliveira foram tolerados no Pina enquanto estavam ocupando um resto de cidade, ainda que no miolo dela. Com o aporte de investimentos públicos e privados na área, tais como o Shopping Rio-Mar, a Via-Mangue e o Novo Recife, associados à saturação da exploração imobiliária de Boa Viagem, bairro vizinho, o Pina se tornou um novo foco de atenção e, através dessa mesma naturalização, de uma forma ou de outra, os moradores pobres que levantaram o lugar e construíram suas histórias misturadas à dele já não cabem mais ali. Isso porque admitimos que pobre não mora na cidade, mas nas suas bordas, nas suas frestas, nas suas sombras. Com mais ou menos pesar, todo mundo acaba pensando: “é assim que acontece”.

Mas não precisa ser. Outras comunidades, até mesmo Brasília Teimosa, apesar da história de luta e de ser uma ZEIS (Zona Especial de Interesse Social), sofrem a mesma pressão, e enfrentam o mesmo descaso. Com uma assessoria consistente por parte do Estado e com a devida atenção por parte da mídia (para além do informe de trânsito nos protestos, da notícia sensacionalista do despejo e do comentário rápido sobre o processo e o pretexto da desocupação) a históriana Vila Oliveira poderia ter sido outra. Agora cabe a esses mesmos canais dar a devida assistência às famílias, garantindo condições dignas, que incluem o direito de continuar morando no bairro que eles ajudaram a construir, e a adequada repercussão ao caso e ao seu contexto. Vigiar esse processo é de responsabilidade dos cidadãos, da sociedade organizada, dos corpos técnicos com suporte institucional, mas principalmente do poder público e da imprensa.

Além da devida assistência, social, econômica e jurídica às famílias agredidas, é urgente a revisão pelo Estado e pela mídia, em todos os canais disponíveis para isso, dos trâmites e das falhas que permitiram esse desfexo trágico, visando a máxima diminuição e compensação dos danos, e a atenção redobrada para que essa situação não se repita em outras áreas submetidas a condições semelhantes, que não são poucas. Não adianta a política de oferecer assistência e parecer comprometido após episódios trágicos como o da Vila Oliveira, é preciso agir estruturalmente para proteger as pessoas no seu direito à dignidade, à moradia e à cidade, antes que a comoção e a vergonha diante de uma tragédia o obrigue.

É em solidariedade aos moradores da Vila Oliveira, em atenção aos demais residentes em áreas do mesmo tipo e em apelo aos responsáveis nomeados acima que esta carta foi elaborada, construída coletivamente a partir do debate travado através do Grupo Direitos Urbanos | Recife no Facebook. Aqueles que compartilharem a mesma indignação e as mesmas opiniões, podem somar suas assinaturas nos comentários eletrônicos ao texto publicado no blog Direitos Urbanos | Recife.

 

Recife, 9 de novembro de 2012.

Direitos Urbanos | Recife

* matéria atualizada em 14/11, a versão anterior estava sem a epígrafe

 

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