No dia 19 de janeiro, cheguei ao Pinheirinho para realizar um trabalho fotográfico. O ensaio seria sobre as lutas pelas quais as mulheres têm passado nos últimos anos e as moradoras do Pinheirinho seriam algumas das personagens retratadas – não somente, mas também elas. Acompanhada de Anderson, um colega fotógrafo que havia estado por lá, cheguei no início da tarde à ocupação. Ao lado da cerca que margeava o terreno de 1,3 mi de m², estava a carcaça de um ônibus queimado dias antes. O ato indicava um pouco o grau de tensão que reinava ali desde o final do ano passado, quando foi expedida uma liminar que previa a reintegração daquela área ocupada desde 2004 por mais de 1600 famílias.
Entre idas e vindas de liminares autorizando e impedindo tal reintegração, tentativas de resistência, incertezas e desconfianças reinavam.
Logo na entrada do terreno, uma casa sem reboco e em chão batido funciona como sede administrativa da comunidade. Alguns sofás velhos, cadeiras, dois banheiros, uma mesa e garrafas de café ocupam o espaço. Homens, mulheres, crianças que entram por ali, todos me cumprimentam. Peço para chamarem uma das lideranças e, após alguns minutos, Juarez, um homem de 1,80m, magro, olhos claros, rosto marcado, aparece guiando uma bicicleta, pois, segundo ele, como a área é muito grande, percorrê-la a pé seria inviável, ainda mais quando se precisa articular a comunidade, atender a imprensa e sobreviver. Claro, pois durante todo o tempo – independentemente da reintegração ou não – tanto ele quanto os demais moradores precisam trabalhar e Juarez tem seu sustento dividido entre uma pequena mercearia dentro da própria casa e a catação de sucata nas áreas próximas, atividade predominante entre boa parte das famílias que vivem ali.
Explico minha intenção com o ensaio fotográfico e Juarez logo me encaminha à casa de Dona Francisca, uma senhora negra de 67 anos de idade com cinco filhos, quatro dos quais também vivem ali. Toda sorridente, gesticulando com as mãos repletas de anéis e pulseiras, ela me recebe e começa a contar sua história. Natural da Paraíba, em 2004 veio viver no Pinheirinho por não ter condições de pagar aluguel. Aos poucos, com o salário do marido e o dinheiro recebido por ela para cuidar das crianças da vizinhança, foi construindo a casa. Naquela quinta-feira, o que há sete anos fora um barraco de madeira em meio ao mato repleto de cobras, agora era um imóvel de alvenaria de um quarto, sala, cozinha, banheiro e área externa. “Isso aqui é um paraíso. Antigamente tinha que levantar às quatro da manhã para pegar 50 litros de água para o dia todo, agora não”, conta referindo-se ao sistema de água encanada conseguido pelos moradores, o popular “gato”. “A gente quer pagar a água e a luz, mas ele não regulariza nós (sic)” fala citando o prefeito da cidade, João Cury.
No quarto, cimento e reboco aguardam a poeira da tentativa de desocupação abaixar para darem forma à tão sonhada suíte do casal, ou melhor, de Dona Francisca, já que o marido morreu há três anos sem conseguir terminar a reforma. Mas Dona Francisca quer dar vazão àquele sonho e já está na quarta prestação do material da suíte. Ao custo de R$ 98,00, cada prestação é pouco menos de um quinto de sua renda. Outra intenção de Dona Francisca para logo é ajudar na organização da festa de oito anos de existência do Pinheirinho, no próximo dia 26 de fevereiro.
Feito esse primeiro contato com a moradora, parto para conhecer três outras. Encontro Dona Cleonice, catadora de papel, Dona Nilzete, dona de casa, e Nani, mãe do pequeno Lucas, de exatos sete dias de vida. Cada uma me conta parte de sua história e ficamos de nos reencontrar na próxima semana para dar continuidade ao meu ensaio, mas já no domingo recebo a informação de que a polícia havia entrado no local e as famílias estavam sendo despejadas. Aquelas mulheres não saem da minha cabeça. Volto ao Pinheirinho no início da tarde daquele dia, a reintegração ainda está sendo feita, famílias inteiras se dirigem à frente do terreno onde tendas de plástico branco armadas pela prefeitura serão suas novas moradas. A polícia reprime com bombas de borracha e efeito moral qualquer reação que não a aceitação silenciosa de ter sido retirado de casa somente com a roupa do corpo.
Reencontro Dona Cleonice com o marido tentando entrar em uma das tendas. Despejados, somente conseguiram pegar algumas peças de roupas e um dos carrinhos usados para recolher papel. Trocamos poucas palavras, depois disso não a vi mais. À noite, vou para uma igreja, onde várias famílias estão abrigadas. Sou informada de que as tendas serviram como uma espécie de triagem para os “verdadeiros” abrigos, escolas e quadras poliesportivas, mas eles são insuficientes e o padre da região oferece a igreja como morada provisória. Lá está Dona Nilzete com os filhos e os netos, ela só consegue me dizer “Você viu o que fizeram com a gente? Por quê?”, tento achar alguma justificativa, mas não encontro.
Como ali há um número maior de mulheres e crianças, parto para encontrar Nani e Dona Francisca, pergunto sobre alguma mãe de recém-nascido, mas a única que encontro é a mãe de uma garotinha de um mês. Só reencontro Dona Francisca dias depois em um ginásio de esportes, o abrigo do Morumbi, também rotulado pela população de Favela do Cury. Sentada em um colchão encostado em uma das grades da quadra do lugar, ela não consegue olhar nos meus olhos. Com a cabeça baixa repete que trataram os moradores do Pinheirinho como se fossem bandidos. Sento com ela no chão e começamos a conversar, não tenho coragem de falar que estive no terreno onde era o Pinheirinho, inclusive em sua casa, e que tudo havia sido destruído. Ela então descreve o que deixou lá, como a cama, o rak, a mesa, os quadros, o guarda-roupa de cinco portas, o material do banheiro, o pé de manga ainda carregado… cada descrição minuciosa me leva para os destroços que havia visto e registrado há pouco. Ao final, ela me pergunta “Como vou conseguir recuperar tudo isso? Não sou mais uma menina, tenho idade, lá era a minha casa, eu construí ali bloco por bloco”. E ela insiste em ter alguma resposta minha, mas não consigo esboçar nenhuma, nem qualquer palavra de consolo. Agora quem não olha em seus olhos e abaixa a cabeça sou eu.
Entenda o caso Pinheirinho
O local conhecido como Pinheirinho, situa-se na região de São José dos Campos, interior de São Paulo, e foi ocupado durante oito anos por centenas de famílias sem-teto. O terreno pertence à massa falida da empresa Selecta, cujo proprietário é o especulador financeiro Naji Nahas, que já foi investigado e preso temporariamente pela Polícia Federal na operação Satiagraha. Após idas e vidas de medidas judiciais, em 22 de janeiro, sem aviso ou negociação com os moradores do local, helicópteros, carros blindados e mais de 1.800 policiais militares armados invadiram a área para retirar as pessoas de suas casas, calcula-se que 6.000 pessoas viviam lá.
Levados para abrigos temporários, os moradores permaneceram nestes locais até o último 6 de março quando o último abrigo foi desativado. Muitas dessas famílias perderam tudo durante a desocupação violenta do Estado que, como contrapartida, ofereceu a elas um auxílio aluguel de R$ 500 por 6 meses. O valor é insuficiente para alugar uma casa com 1 dormitório naquela região. Muitas famílias estão vivendo na casa de parentes ou amigos. Como vários moradores são naturais de outros Estados, a quem desejasse também foi oferecido passagem de volta à sua terra natal. Dona Francisca optou por ficar em São José dos Campos, como os R$ 500 não eram suficientes para alugar uma casa, foi morar com a filha e a família da mesma, também despejada do Pinheirinho.
Juliana Pereira – é jornalista independente e está dando continuidade ao ensaio sobre as lutas das mulheres no decorrer dos anos, embora não tenha previsão de quando ele irá terminar. As mulheres do antigo Pinheirinho estarão presentes no trabalho.
Confira aqui o ensaio completo: