**Lia, sua companhia está desde 2004 estabelecida na Favela da Maré. O que a levou a fazer esta opção?**
Em 2003 eu comecei a pensar o que eu poderia fazer a mais. Como é que eu poderia estabelecer um diálogo entre a arte contemporânea, a dança contemporânea, e uma parte da população do Rio de Janeiro que é completamente à parte de todas estas manifestações, que é a população não só que vive nas favelas, mas que vive na periferia. E comecei a pensar que meu desejo estava indo nesta direção. Desejo como artista e desejo também como cidadã. Porque eu moro numa cidade, num país, onde há uma desigualdade imensa, e uma parte da cidade parece que é invisível, que é a favela. A favela é invisível pra quem mora na zona sul, que é a zona mais rica. Então comecei a pensar que formas eu teria de estabelecer este contato.
**O fato de estar lá influenciou o seu trabalho?**
Sem dúvida, porque o lugar em que a gente mora influencia. Quando você muda de país, por exemplo, é a mesma coisa. A gente absorve coisas do lugar, a gente muda por estar em contato com coisas diferentes. E apesar da Maré ser dentro da cidade, é muito diferente, o estilo de vida e tudo. Sem dúvida, coisas que eu não saberia dizer exatamente quais, mas coisas importantes, se misturaram comigo e com meu trabalho.
A maré é enorme, são 140 mil habitantes. É uma favela das maiores do Rio de Janeiro. E uma coisa curiosa é que o bairro em que a gente trabalha dentro da favela se chama Nova Holanda.
A gente dá aulas para a comunidade também. Aulas gratuitas, todos os dias, depois do nosso ensaio. A Fundação Prins Claus é que financia este projeto de aulas para a comunidade. É a velha Holanda ajudando a Nova Holanda.
**E sobre ‘Pororoca’, o espetáculo tem uma linguagem muito própria. Como você chegou a ela?**
Eu não sou uma coreógrafa que faz um monte de trabalhos. Demoro muito tempo pra elaborar. Também tem toda a questão financeira, a questão da formação de artistas para poderem criar junto comigo os trabalhos. Acho que ‘Pororoca’ inaugura alguma novidade pra mim. Eu sinto e vejo que é um jeito de mexer diferente, que eu estou há muito tempo pensando, mas que nós conseguimos finalmente colocar em prática neste trabalho.
Mas cada trabalho tem a sua própria história, o seu próprio jeito de mexer o corpo, sua própria organização. Cada trabalho é um universo, é uma tese, digamos assim. Uma tese de doutorado.
**É um espetáculo muito corajoso, pelo tipo de linguagem, pelo fato de não usar música, e por isso acaba sendo um espetáculo difícil para o público, mas ao qual ninguém fica indiferente. Que reações você tem recebido das pessoas e até que ponto você busca uma provocação da plateia?**
Eu não penso ‘vou fazer isso pra causar aquilo’. Acho que cada trabalho tem necessidades muito específicas. É como se o trabalho fosse uma pessoa. Por exemplo, nós somos 11, 12 comigo. Parece que o trabalho é o 13º que chega. Tem uma personalidade própria e nem tudo o que você deseja cabe ali. E neste caso a gente até experimentou música, mas não entrava, aí não adianta colocar que fica ruim. Fazendo um trocadilho, faz ruído quando a gente põe música, não combina.
**Na maneira de trabalhar o movimento neste espetáculo, é como se você quisesse destituir os bailarinos de qualquer técnica, para que o movimento seja mais cru. E há o contato físico constante. Isso deve ser muito difícil para os bailarinos…**
É uma técnica na verdade. Tudo é contato. Na verdade, a gente improvisou muito, depois a gente parou e escreveu. Agora, depois de dois anos da estreia, eu penso, não é tão difícil, mas foi dificílimo fazer esta criação. Quando ela aconteceu eu estranhei, achei aquilo meio esquisito, demorei um tempo pra poder mexer no material e organizar melhor. Agora está mais azeitado.
**Você tem influência de outras artes no seu trabalho? Tem algo que te inspira?**
Tudo, mas sempre parto da literatura. Acho os livros a coisa mais maravilhosa. Eu parto sempre de alguma leitura, de alguma poesia. Isso me inspira muito. Artes visuais também, cinema, tudo, mas basicamente livros.
**No caso específico deste trabalho, teve um ponto de nascimento da ideia?**
Teve uma coisa muito forte pra mim. Eu tinha lido vários outros livros do Guimarães Rosa, mas nunca tinha lido o ‘Grande Sertão…’. E em 2008, quando estava começando a fazer ‘Pororoca’, eu falei: vou ler este livro agora, preciso ler. Eu li e tive uma experiência arrebatadora. Entrei num universo que ele criou e que mexeu muito comigo. E eu queria criar algum coisa – claro que eu nem posso falar que queria criar uma coisa como o ‘Grande Sertão…’ -, mas uma coisa que pudesse fazer com que as pessoas entrassem num universo, como Guimarães Rosa faz com a gente quando a gente lê. Eu achava que eu estava num filme enquanto eu lia, não que estava lendo um livro. Aí eu li uma crítica muito legal do Antônio Cândido em que ele dizia que ‘Grande Sertão…’ é um livro que é usado de muitas formas. Por exemplo, Tom Jobim pegou o livro, botou no ouvido e escutou ‘Águas de Março’. E eu peguei ‘Grande Sertão…’ e ‘Grande Sertão…’ dançou ‘Pororoca’ pra mim.