Por Leonardo Sakamoto*
O Senado da Argentina aprovou o matrimônio entre pessoas do mesmo sexo. Quando a presidente Cristina Kirchner sancionar a mudança (e ela o fará, pois é defensora da proposta), o país será o primeiro da nossa machista América do Sul a universalizar esse direito. Gays e lésbicas poderão constituir oficialmente casais, com os mesmos direitos dos pares heterossexuais, incluindo herança, direito a pensões, adoção de filhos. Houve fortes protestos contra e a favor da mudança na legislação mas, ao final, ganhou a razão – vitória que pode ser computada na conta da sociadede civil argentina e suas organizações em prol dos direitos dos homossexuais.
O que mostra, mais uma vez, de que a discussão de quem tem um futebol mais bonito e eficiente está em aberto, mas em termos de civilidade o Brasil ainda tem muito o que aprender com o irmão do Sul. Por aqui, a Advocacia Geral da União defende a união estável de casais homossexuais. Em nome da Presidência da República, a AGU argumenta que as relações homossexuais existem independentemente de amparo legal, embora países já tenham mudado sua legislação para incluir essa possibilidade. O parecer tratando do tema veio para apoiar a Procuradoria Geral da República, que pediu para o Supremo declarar inconstitucional o artigo do Código Civil que considera a união possível apenas entre homens e mulheres.
Na Argentina, para possibilitar o matrimônio, houve uma alteração na legislação trocando “homem e mulher” para “cônjuges”. Há propostas tramitando no Congresso Nacional brasileiro para permitir a união civil entre pessoas do mesmo sexo, mas distantes de serem aprovadas. E a questão do matrimônio, então, é lenda. Afinal de contas, isso é pecado…
Apesar da influência de grupos religiosos contrários à mudança, mais cedo ou mais tarde, a lei será alterada no Brasil também, garantindo dignidade e combatendo o preconceito. Já está indo aos poucos: é um homem que consegue estender o plano de saúde para o seu companheiro, é uma mulher que consegue a pensão de sua companheira. O problema é que essa marcha está sendo bem lenta quando, em verdade, deveria correr rápida para dar tempo às pessoas que hoje vivem de desfrutarem uma nova realidade.
É um absurdo que a essa altura da história nossa sociedade ainda esteja discutindo se deve ou não universalizar direitos. Que, de tempos em tempos, gays e lésbicas sejam espancados e assassinados nas ruas só porque ousaram ser diferentes da maioria. Que seguidores de uma pretensa verdade divina taxem o comportamento alheio de pecado e condenem os diferentes a uma vida de inferno aqui na Terra.
Consciência não se aprende na escola, nem é reserva moral passada de pai para filho nas famílias. Mas sim na vivência comum na sociedade, na tentativa do conhecimento do outro, na busca por tolerar as diferenças. O Congresso Nacional, que hoje está sentado em cima de propostas de mudança, é fruto do tecido social em que está inserido – e sim, a esbórnia que ganha as páginas policiais, digo, de política, é um reflexo de nós mesmos. Na prática, uma (não) decisão legislativa tem em seu âmago o mesmo preconceito das piadas maldosas contra gays ou dos pequenos machismos em que nós (e não me excluo disso) nos afundamos no dia-a-dia. O que difere é o tamanho do impacto, não sua natureza.
Coloquemos a culpa no processo de formação do Brasil, na herança do patriarcalismo português, nas imposições religiosas, no Jardim do Éden e por aí vai. É mais fácil atestar que somos frutos de algo, determinados pelo passado, do que tentar romper com uma inércia que mantém cidadãos de primeira classe (homens, ricos, brancos, heterossexuais) e segunda classe (mulheres, pobres, negras e índias, homossexuais etc.). Tem sido uma luta inglória, mas necessária. Que inclui uma profunda reflexão sobre nossos próprios comportamentos. No final, será uma escolha entre a barbárie da intolerância e a civilização.
*Jornalista e doutor em Ciência Política. É coordenador da ONG Repórter Brasil e seu representante na Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo.