Os memorandos de tortura liberados pela Casa Branca provocaram choque, indignação e surpresa. O choque e a indignação são compreensíveis – em especial o testemunho no relatório do Comitê de Serviço das Forças Armadas do Senado sobre o desespero de Cheney-Rumsfeld para encontrar ligações entre o Iraque e a Al-Qaeda, ligações que foram depois usadas como justificativa para a invasão, fatos irrelevantes. O ex-psiquiatra das Forças Armadas, Major Charles Burney, testemunhou: “dedicamos grande parte do tempo a tentar estabelecer uma relação entre a Al-Qaeda e o Iraque. Quanto mais frustradas as pessoas ficavam por não conseguir estabelecer esse vínculo, mais pressão havia para usarmos os meios que poderiam produzir resultados mais imediatos”; ou seja, tortura. O jornal McClatchy relatou que um ex-oficial sênior da inteligência, familiarizado com os interrogatórios, acrescentou que “a administração Bush aplicou pressão incansável nos interrogadores para que usassem métodos duros nos prisioneiros, em parte para encontrar evidências de cooperação entre a Al-Qaeda e o regime do ditador Iraquiano Saddam Hussein… (Cheney e Rumsfeld) exigiram que os interrogadores encontrassem evidências de colaboração entrw a Al-Qaeda e o Iraque… Havia pressão constante sobre as agências de inteligência e os interrogadores para que fizessem o que fosse necessário para obter informações dos prisioneiros, especialmente daqueles mais importantes e, quando voltavam de mãos vazias, o pessoal de Cheney e Rumsfeld lhes dizia para forçar mais.”
Essas foram as revelações mais significativas, pouco reportadas.
Embora o testemunho sobre a crueldade e as fraudes dessa administração seja chocante, a surpresa com o quadro geral revelado é, apesar disso, surpreendente. Uma simples razão para isso é que, mesmo sem investigação, é razoável supor que Guantánamo fosse uma câmara de tortura. Que outro motivo haveria para enviar prisioneiros para um lugar fora do alcance da lei – casualmente, um lugar que Washington está usando na violação de um tratado que foi imposto a Cuba sob a mira de armas? Alegam-se motivos de segurança, mas é difícil levar isso a sério. As mesmas expectativas de prisões secretas e rendições, e foram atendidas.
Um motivo mais amplo é que a tortura tem sido prática rotineira desde o início da conquista do território nacional até muito depois, quando as empreitadas imperiais do infant empire – como George Washington chamou a nova República – se estenderam até as Filipinas, Haiti e outros lugares. Além disso, a tortura era o menor de muitos crimes de agressão, terror, subversão e estrangulamento econômico que mancharam a história dos EUA, muitos deles iguais aos das grandes potências. Da mesma maneira, é surpreendente ver as reações, inclusive de alguns dos críticos mais expressivos e diretos da malevolência de Bush, por exemplo, que costumávamos ser “uma nação de ideais morais” e nunca antes de Bush “nossos líderes traíram tão gravemente tudo o que essa nação defende” (Paul Krugman). Para dizer o mínimo, essa visão reflete uma versão um pouco tendenciosa da história.
Algumas vezes, o conflito entre “o que nós defendemos” e “o que nós fazemos” tem sido tratado de forma direta. Um acadêmico renomado que assumiu essa tarefa foi Hans Morgenthau, um fundador da teoria de relações internacionais realistas. Em um estudo clássico, escrito no calor de Camelot, Morgenthau desenvolveu a visão padrão de que os Estados Unidos possui um “propósito elevado”: estabelecer a paz e a liberdade em casa e em qualquer outro lugar, já que “a arena em que os estados Unidos deve defender e promover seu propósito tornou-se mundial”. Mas, como acadêmico rigoroso, ele reconheceu que o registro histórico é radicalmente inconsistente com o “propósito transcendente” da América.
Não deveríamos, no entanto, nos deixar enganar por essa discrepância, avisa Morgenthau: em suas palavras, nós não deveríamos “confundir o abuso da realidade com a própria realidade”. A realidade é o “propósito nacional” inalcançada revelado pela “evidência da história como nossas mentes a consideram”. O que de fato aconteceu é simplesmente um “abuso da realidade”. Confundir abuso da realidade com a realidade é similar ao “erro do ateísmo, que nega a validade da religião em bases similares”. Uma comparação apropriada.
A liberação dos memorandos de tortura levou outros a reconhecerem o problema. No New York Times, o colunista Roger Cohen analisou um livro do jornalista britânico Geoffrey Hodgson, que concluiu que os EUA é “apenas um país grande, mas imperfeito, entre outros países”. Cohen concorda que a evidência apóia o julgamento de Hodgson, mas o considera um erro fundamental. O motivo é a falha de Hodgson em entender que a “América nasceu como uma idéia e, portanto, precisa levar essa idéia adiante”. A idéia americana é revelada pelo nascimento da América como “cidade em uma colina”, uma “noção inspiradora” que reside “no fundo da psique americana” e pelo “espírito especial de individualismo e empreendedorismo americanos” demonstrados na expansão do oeste. O erro de Hodgson é atribuir “as distorções da idéia de América nas últimas décadas” ao “abuso da realidade” nos últimos anos.
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